sábado, 30 de julho de 2016

Fantasmas


"Dizia-se que os grandes túneis, como o Simplon e o St. Gotthard, eram mal-assombrados, que quando o trem entrava e a luz do mundo, do dia ou da noite, tinha que ser deixada para trás durante o tempo necessário para atravessá-lo, por mais breve que fosse, e o ronco mineral tornava impossível a conversa, então certos espíritos que outrora haviam optado por entregar-se à feroz escuridão intestina da montanha apareciam entre os passageiros pagantes, ocupavam os lugares vazios, bebiam um pouco dos copos marcados com o monograma da ferrovia nos vagões-restaurantes, assumiam a forma da fumaça que subia dos cigarros, cochichavam uma propaganda de memória e redenção para os vendedores, turistas, profissionais do ócio, ricos além de qualquer redenção e outros praticantes do olvido, que eram incapazes de perceber a presença dos visitantes com a clareza dos fugitivos, exilados, sobreviventes e espiões – ou seja, todos aqueles que haviam entrado num acordo, e mesmo numa relação de intimidade, com o Tempo."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 665

A missão de Reef

"Reef estava sozinho no vagão para fumantes, em alguma hora de treva sem nome, quando uma presença não completamente opaca surgiu no banco estofado em frente ao seu.

'O que é que você tinha na cabeça?', perguntou. Era uma voz que Reef jamais ouvira, mas que ele reconheceu assim mesmo.

'Como assim?'

'Você tem mulher e filho pra cuidar, um pai pra vingar, e no entanto está aí, usando um terno que não foi você que pagou, fumando charutos cubanos que normalmente você nem saberia como encontrar, e muito menos teria como comprar, na companhia de uma mulher que nunca teve um pensamento que não se originasse entre as pernas dela.'

'Nada de rodeios, não é?'

'Porra, o que aconteceu com você? Você era um jovem dinamitador promissor, filho de seu pai, tinha jurado alterar a situação social, e agora você não é muito melhor que as pessoas que antes você queria explodir. Olhe para elas. Excesso de dinheiro e tempo de lazer, e falta de compaixão, Reef.'

'Eu fiz jus a isso. Já cumpri meu turno.'

'Mas você nunca vai merecer o respeito dessas pessoas, elas não vão sequer lhe conceder credibilidade. Vai ser só desprezo, mesmo. Tire da sua cabeça todas essas babaquices alegres e tente se lembrar pelo menos de como o Webb era. Depois volte seus pensamentos pro homem que mandou assassiná-lo. Scarsdale Vibe é um alvo fácil no momento. Scarsdale Vibe, o homem do <>. Vá atrás dele quando você estiver em Veneza. Melhor ainda, faça pontaria nele. Pare com essa fodelança vazia, dê meia-volta e volte a ser quem você era.'"

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 666

Noites de Cloral

"Entre os alunos de matemática, o hidrato de cloral era a droga predileta. Mais cedo ou mais tarde, fosse qual fosse o problema enfrentado, tendo sido levados por suas obsessões a sofrer de insônia todas as noites, eles começavam a tomar remédios fortes para dormir – o próprio Geheimrat Klein era um grande defensor da substância – e quando davam por si haviam se tornado habitués, que se reconheciam mutuamente através dos efeitos colaterais, em particular as erupções de espinhas vermelhas, conhecidas como 'cicatrizes de duelo da cloralomania'. Nas noites de sábado em Göttingen, havia sempre pelo menos uma festa de cloral, ou Mickifest.

Era uma reunião estranha, que só de vez em quando ficava, digamos, animada. As pessoas falavam descontroladamente, muitas vezes com seus próprios botões e sem fazer qualquer pausa perceptível para respirar, ou então ficavam largadas numa paralisia agradável por cima dos móveis, ou então, à medida que se prolongava a noitada, no assoalho, numa narcose profunda."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 627

Cardenal

"Eu caminhava, suado e com o cabelo grudado
na cara
quando vi Ernesto Cardenal que vinha
em direção contrária
e à guisa de saudação eu lhe disse:
padre, no Reino dos Céus
que é o comunismo,
tem lugar para os homossexuais?
Sim, ele disse.
E para os masturbadores impenitentes?
Os escravos do sexo?
Os brincalhões do sexo?
Os sado-masoquistas, as putas, os fanáticos
dos inimigos,
os que não podem mais, os que de verdade
já não podem mais?
E Cardenal disse que sim
E ergui os olhos
E as nuvens pareciam
sorrisos de gato levemente róseos
e as árvores que despontavam a colina
(a colina que havemos de subir)
agitavam os galhos.
As árvores selvagens, como se dissessem
um dia, mais cedo do que tarde, há de vir
a meus braços mirrados, a meus braços ossudos,
a meus braços frios. Um frio vegetal
que te arrepiará os cabelos."


Roberto Bolaño (1953-2003). Poesia de Roberto Bolaño. Organizado por Letras in.verso e re.verso, p. 9

Viagem


"Depois, as pessoas perguntariam a Kit por que ele não levara uma câmera fotográfica portátil. Àquela altura, já havia reparado que muitos europeus começavam a definir a si próprios em termos das viagens que tinham condições financeiras de fazer, e parte do processo consistia em matar de tédio todas as pessoas dispostas a examinar aquelas fotografias instantâneas mal enquadradas e fora de foco.

Ele guardara alguns dos canhotos de passagens, e assim sabia de modo geral que sua trajetória passara por Bucareste, chegando a Constança, onde tomara um vapor pequeno e decrépito, costeara o litoral do mar Negro até chegar a Batumi, onde dava para sentir o cheiro dos limoeiros antes mesmo de vê-los, e lá tomara um trem, atravessando o Cáucaso, onde russos parados à porta das dukháni ficavam a vê-los passar, levantando os copos de vodca num brinde simpático. Campos de rododendros derramavam-se pelas encostas, e gigantescos troncos de nogueira flutuavam rio abaixo, tendo como destino saloons semelhantes àqueles do Colorado onde outrora, ainda menino, Kit ficara a matar o tempo. A última parada da linha era Baku, à margem do mar Cáspio, onde ele teve a impressão, ainda que não uma prova fotográfica, de um porto de petróleo muito remoto, varrido pelo vento cheio de areia, noite em pleno dia, céus infernais, a ferver em vermelho e negro, tons de negro, não havia como escapar daquele cheiro, ruas que não davam em lugar algum, onde se estava sempre a um passo de um estupor narcótico ou da lâmina de um árabe, onde a vida era não apenas barata, mas por vezes tinha mesmo valor negativo."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 756

Capitalismo

“As pessoas dedicam toda a sua vida ao trabalho, a produzir riqueza, para poder consumir, para gerar esse crescimento econômico. Mas a vida não é só trabalho. É preciso viver, é preciso amar, é preciso ser feliz, precisa-se de tempo para viver, amar e ser feliz. Ninguém compra cinco anos de vida no supermercado.”

“A acumulação capitalista necessita que compremos, compremos e gastemos e gastemos. Vendem mentiras até que te tiram o último dinheiro. Essa é a nossa cultura e a única saída é a contracultura.”

Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai

Oriente

"Àquela hora a cidade já estava saturada de sombras, as mulheres deslizando com suas vestes soltas e véus de crina, cúpulas e minaretes silenciosos e inexpugnáveis destacando-se contra um fundo azul de uma profundidade indesejável, os mercados riscados pelo vento e vazios, todas as visões já experimentadas por viajantes enlouquecidos no deserto, por apenas um momento, tornadas plausíveis."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 772

O vento

"O vento, um ser vivo, consciente, que não simpatizava com viajantes, tinha o hábito de surgir no meio da noite. Os cabelos eram os primeiros a farejá-lo, depois lentamente todos os membros do grupo começavam a ouvi-lo, num crescendo irreversível, que não lhes dava tempo suficiente para improvisar um abrigo, e portanto muitas vezes a única saída era submeter-se a ele, apertar-se contra o chão como uma folha de relva e tentar não ser arrebatado para o céu."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 778

Lago Baikal

Há lugares que tememos, lugares com que sonhamos, lugares de que nos tornamos exilados e só ficamos sabendo disso, às vezes, quando é tarde demais.

Kit sempre imaginara que de algum modo haveria de voltar aos montes San Juan. Jamais lhe ocorrera a possibilidade de que seu destino estivesse ali, de que ali, na Ásia Central, ele haveria de escalar seus picos mais elevados e enfrentar as neves do deserto, cavaleiros aborígenes, estalagens à beira-trilha e mulheres totalmente incompreensíveis, que por algum motivo eram sempre mais desejáveis no momento em que havia outros assuntos, muitas vezes de vida ou morte, a ocupá-lo.

Foi só quando viu por fim o lago Baikal que Kit compreendeu por que fora necessário ir até ali, e por que, no decorrer desse percurso, a penitência, a loucura e os descaminhos eram inevitáveis. [...]

O lago tinha um quilômetro e meio de profundidade, segundo lhe dissera Auberon Halfcourt, e nele viviam criaturas que não existiam em nenhum outro lugar em toda a Criação. Tentar navegar naquele lago era perigoso e imprevisível – os ventos surgiam de repente, as ondas transformavam-se em pequenas montanhas. Uma viagem até ele não era um passeio de férias. Ele percebia com uma certeza não de todo compreendida que aquele lugar, tal como o monte Kailash ou o Tengri Khan, era um desses locais que fazem parte de uma ordem supraterrestre e apenas provisoriamente estão encerrados nesta nossa ordem, inferior e fracionada."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 773-774

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Saloon


"Frank se deu conta de que não ia conseguir dormir, e seguiu para o saloon mais próximo. À porta do estabelecimento, onde outrora só havia cavalos amarrados, agora viam-se Silent Gray Fellows da Harley-Davidson e V-twins da Indian, adaptadas para uso naquela terra, com embreagens, correias, correntes e caixas de mudança reforçadas. Por toda a Main Street, nesses saloons misturavam-se motociclistas que faziam proezas no circuito de circos do interior, em busca de uma mudança de ares, e bandoleiros fedelhos cantando a várias vozes 'Pie in the sky' de Joe Hill para um público de velhos trabalhadores niilistas assumidos, em cujas palmas das mãos as linhas do amor e da vida, os montes de Vênus e tudo o mais haviam sido soterrados, com o passar dos anos, sob um mapa de inscrições lívidas e profundas que nenhuma cigana de parque de diversões ousaria ler, traçadas por incêndios, muros de pedra, arame farpado desenrolado depressa demais, baionetas nos xilindrós de Coeur d'Alene... Membros motorizados da famigerada Gangue de Four Corners, sediada em Cortez, pagavam doses duplas de uísque de milho para entusiastas que vinham de lugares tão distantes quanto Kansas, arrancados não de todo à força de alguma excursão de clube, e passavam a noite conversando sobre embreagens e cárteres até o sol surgir na janela."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 471

Clarice

"Clarice Lispector é traduzida e estudada no Brasil e fora dele. Seus livros tornaram-se universais porque é universal a sua angústia, a sua maneira de refletir o revés do espelho. Do livro de contos 'Laços de família': 'A vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver'. Qualquer um de nós, num exercício de livre pensar, concordará que as regras impostas pela sociedade, a obediência servil, a lobotomia autorizada com que conduzimos nossas vidas, tudo isso é muito mais demente do que seguir os seus próprios instintos e tentar iluminar o breu que há dentro de nós. [...]

Saber onde fica o norte e o sul, saber se amanhã vai chover, saber a parada do ônibus em que devemos saltar, tudo isso nos dá a falsa sensação de estarmos protegidos. No entanto, estaremos sempre em perigo enquanto soubermos tão pouco sobre nós mesmos. Clarice Lispector, em sua literatura de auto-investigação, entendeu-se dentro do possível e aceitou-se no impossível."

Martha Medeiros. Trem-bala. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 130-1

infinito

"Zangar-se com as pessoas significa que se considera os atos delas importantes. É necessário deixar de sentir assim. Os atos dos homens não podem ser bastante importantes para impedir nossa única alternativa viável: nosso imutável encontro com o infinito."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 26

Caminhos


"Qualquer coisa é um entre um milhão de caminhos. Portanto, um guerreiro deve sempre manter em mente que um caminho é apenas um caminho; se achar que não deve segui-lo, não deve permanecer nele em nenhuma circunstância. Sua decisão de permanecer no caminho ou abandoná-lo deve estar livre de medo ou ambição. Ele deve olhar cada caminho, de perto e deliberadamente. Há uma pergunta obrigatória que o guerreiro tem de fazer: esse caminho tem coração?

Todos os caminhos são iguais: não levam a lugar algum. Entretanto, um caminho sem coração nunca é agradável. Por outro lado, um caminho com coração é fácil – ele não faz um guerreiro se esforçar para gostar dele; ele torna a viagem alegre; e, enquanto um homem o seguir, é um só com ele."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 27

Leve e fluido

"Sentir-se importante faz a pessoa tornar-se pesada, desajeitada e vaidosa. Para ser um guerreiro, é preciso ser leve e fluido."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 40

Vitória e derrota


"O homem comum é vitorioso ou derrotado e, dependendo disso, se torna um perseguidor ou uma vítima. Essas duas condições prevalecem enquanto a pessoa não 'vê'. 'Ver' desfaz a ilusão da vitória, ou da derrota, ou do sofrimento."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 61

Experiências

"Somente a ideia da morte torna o guerreiro suficientemente desprendido para ser capaz de se entregar a qualquer coisa. Ele sabe que a morte o espreita e não lhe dará tempo de se agarrar a nada, de modo que ele experimenta, sem ansiedade, tudo de todas as coisas."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 67

Fantasmas


"Deuce, que tinha medo de fantasmas, vivia esperando a hora em que Webb o encontraria. Em sonhos que em nada diferiam da sua juventude desgraçada, ele largava Lake no meio da noite, saía gritando pelas trevas inexploradas nas profundezas de celeiros mal-assombrados, desafiando o que quer que estivesse ali a sair no espaço aberto, o qual por si só se tornara malévolo. Ficava esperando até o mais fundo da noite sem relógio por montanhas com quilômetros de altura que só saíam à noite, esperando a hora de conduzir uma carroça sem dono morro acima até chegar a um cemitério outonal e ser encontrado pelo homem que ele matara. Mosquitos do tamanho de animais domésticos, com olhos tão reencarnados e expressivos quanto os de um cão, e corpos quentes e bons de apertar como coelhos, esbarravam nele lentamente...

Por vezes Deuce tinha a impressão de que havia enfiado a cabeça num cômodo muito pequeno, pouco maior do que uma cabeça humana, sem eco, fechado, silencioso... 'É... quem sabe', ele mal conseguia ouvir sua própria voz, 'eu seria capaz de sair por aí matando um monte de pessoas? E aí eu não ia me sentir desse jeito por causa daquela única morte...'."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 483

O Clube dos Desempregados

"Existem várias confrarias, seitas e o diabo a quatro de grupinhos de afinidades que buscam o bem (às vezes o mal, vai saber) comum. Como sou um reles pé-rapado, um recém-formado que volta e meia dá seus pulos para conseguir uns trocadinhos, nunca tentei e também não tenho esperanças de entrar em um desses grupos de ajuda mútua. Mas isso também não é o fim do mundo.

Já que eu não tenho a manha para adentrar e participar dos seletos núcleos que se fecham neles mesmos, decidi, junto com mais alguns amigos, criar o meu próprio grupo. Ele se chama Clube dos Desempregados.

O Clube dos Desempregados é um grupo, não muito homogêneo e pouco organizado, de jornalistas recém-formados que se reúnem em datas acertadas previamente para tomar cerveja, comer quitutes não muito saudáveis, falar mal da vida das pessoas, especular sobre o que os outros amigos e colegas estão fazendo no momento, ligar para alguns outros desocupados para compartilharem a mesma fossa e, às vezes, saber se existe alguma vaguinha no tão temido MERCADO DE TRABALHO!

Estamos preocupados? Balela! O grande barato do Clube dos Desempregados — visto como Clube dos Vagabundos pelos detratores — é simplesmente aproveitar o maior prazer daqueles que estão à margem do sistema: não fazer nada, tomar cerveja em plena tarde de terça-feira (ou durante o horário comercial, como dizem os inseridos).

Outra importantíssima atividade do CD: ligar para os amigos que estão trabalhando e, como quem não quer nada, atiçar a vontade alheia dizendo que estão fulano, sicrano e beltrano reunidos sem fazer nada. Mas que vidão!

Ok! Confesso que entre um gole e outro, sempre tem alguém que diz: 'Putz, tô sem grana' ou 'Cara, preciso arrumar alguma coisa. Nem que seja pela metade do piso!'. Outros não param de olhar o celular, achando que do além a Gazeta, a Tribuna ou qualquer outro grande veículo ou assessoria de imprensa vá entrar em contato, respondendo ao envio do currículo. Isso não tem acontecido com muita frequência.

No meu caso, o prazer em não fazer os que alguns tanto querem é diferente. Não estou desempregado por incompetência, por não ter uma rede de contatos ou qualquer outro motivo que sempre vira pauta nas reuniões do clube. Estou desempregado por opção. Sim! Larguei um emprego em que ganhava milão, sem nenhum benefício e também sem nada que me motivasse a continuar. Prefiro não me ver como um desempregado, e sim como um talento desperdiçado. Mas também acho que seria muita pretensão criar o Clube dos Talentos Desperdiçados ou algo semelhante.

Enfim. Procuro algo que eu realmente goste, mas isso é uma grande ilusão. Sei que daqui um tempo o desespero e as dívidas podem bater na minha porta e a “metade do piso” vai ser uma fortuna e uma bênção de Deus. Enquanto isso, vou levando a vida, escrevendo aqui e ali, tirando um miudinho daqueles que ainda acreditam que eu sou capaz! Mas vem cá… Você não sabe de alguma vaga para jornalista recém-formado?"

Felipe Rodrigues. O clube dos desempregados. Crônica publicada no blog Vida Breve em julho de 2011

Cavalo com antolhos


"Enquanto um homem acha que ele é a coisa mais importante no mundo, não pode apreciar de verdade o universo em volta de si. É como um cavalo com antolhos, só vê a si próprio separado de tudo o mais."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 90

Morte


"A morte é nossa eterna companheira. Está sempre à nossa esquerda, à distância de um braço atrás de nós. A morte é a única conselheira sábia que um guerreiro tem. Toda vez que ele sente que tudo está errado e que ele está prestes a ser aniquilado, pode virar-se para sua morte e perguntar se é assim mesmo. A morte lhe dirá que ele está errado; que nada realmente importa, além do toque dela. Sua morte dirá a ele: 'Ainda não o toquei'."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 91

Imagem: cena do filme "O Sétimo Selo" (1957), de Ingmar Bergman

Auto-importância

"A auto-importância é o maior inimigo do homem. O que o enfraquece é sentir-se ofendido pelos atos e omissões de seus semelhantes. A auto-importância exige que se passe a maior parte da vida ofendido por alguma coisa ou por alguém."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 240

Posses

"A recomendação para os guerreiros é não possuir quaisquer coisas materiais nas quais focalizem seu poder, mas focalizá-lo no espírito, no verdadeiro voo para o desconhecido, não em trivialidades.

Qualquer um que queira seguir a senda do guerreiro tem de se livrar da compulsão para possuir e se apegar às coisas."

Carlos Castaneda (1925-1998). A roda do tempo (1998). Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 199

Sem alma

"Preferia o fim do verão, não o outono, que talvez até já tivesse começado, mas, de qualquer forma, fazia muito frio na praia, por onde gostava de passear à beira d'água logo depois do pôr do sol, sem ninguém por perto, e o mar com cara de sujeira, de perigo, e as gaivotas recusando-se a ir dormir, com ódio do sono, e descendo em voo rasante pra lhe arrancar os olhos, a alma, o que dela restasse.

Quando já se está quase sem alma e se tem consciência disso, é porque ainda se existe."

Charles Bukowski (1920-1994). Fabulário geral do delírio cotidiano - Parte II. Porto Alegre: L&PM, 2015, p.150

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Tempestade


"'Que história é essa?', indagou Wren.

O velho hábito de negar informações, em particular às jovens em que ele estava interessado no momento, entrou em ação mais ou menos a essa altura. Uma vez, no planalto de Uncompahgre, Frank, voltando a cavalo de Gunnison ou de algum outro lugar, viu uma única nuvem de tempestade, escura e compacta, a quilômetros de distância, e deu-se conta de que, apesar da predominância do sol e da imensidão do céu, por mais que mudasse de direção agora ia ter que cruzar com aquela nuvem, e não deu outra, menos de uma hora depois ficou escuro como se fosse meia-noite e ele ficou encharcado e congelado, momentaneamente ensurdecido pelos trovões que explodiam a sua volta, inclinado sobre o pescoço do cavalo para tranquilizar o animal, o qual, por ser cavalo de rancho, já tinha visto coisas muito piores e estava ele próprio tentando tranquilizar Frank. Agora, no Albany, Frank percebia que Wren havia chegado exatamente ali após uma infinidade de quilômetros e Passos da Cruz – na luz refletida pelo espelho enorme, seu rosto, estranhamente sem sombras, estava azul-celeste, o rosto de uma pessoa em busca de algo, foi o que pensou Frank, e que tinha vindo até ali para lhe fazer a pergunta que ele estava menos disposto a responder. Frank compreendia que havia presenças assim espalhadas pelo mundo, e que, embora fosse possível viver uma vida inteira sem cruzar com uma delas, se isso acontecesse era uma obrigação das mais sérias responder a ela."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 284

Máscaras

"Quando todas as máscaras são removidas, trata-se na verdade de uma investigação sobre nosso próprio dever, nosso destino. O qual consiste em não penetrar na Ásia em busca do lucro. Não morrer nos desertos do mundo sem ter atingido nosso objetivo. Não ascender nas hierarquias do poder. Não descobrir fragmentos de nenhuma Vera Cruz, seja lá como ela for imaginada."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 256

Onde não deveria estar

"Ele que, em circunstâncias normais, era uma pessoa cheia de bom senso, naquela incandescência sem alma sentiu-se invadido de todos os lados por presságios de violência, todos dirigidos a ele. Barbas que havia semanas não tinham contato com navalhas de aço, caninos amarelados expostos, olhos avermelhados por algum desejo incontrolável... Suando de apreensão, Frank se deu conta de que estava justamente onde não deveria estar. Em desespero, olhou para trás, em direção à estação, mas o trem já estava lentamente descendo o vale outra vez, a ré. Querendo ou não, agora ele fazia parte daqueles que seguem sua intuição diretamente até o fundo de um barril e o final de uma fila, apertados contra aquela muralha de montanhas de quatro mil e duzentos metros de altura, e um nível de ódio entre o sindicato dos mineiros e os proprietários de minas, perigosamente alto mesmo para o Colorado, que dava até para cheirar."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 288

Dally

"Assim, Dally, uma garota que já era dotada de uma boa quantidade de bom senso inato, acabou adquirindo muitas informações úteis no Popcorn Alley. [...]

Com o que ganhou trabalhando um mês na mina, comprou de uma dançarina do Pick and Gad um revólver 22, que ela ostentava o tempo todo, em parte por não ter nenhum vestido ou saia em que pudesse escondê-lo, mas também porque a simples presença da arma, não tão evidente em seu corpo miúdo quanto seria uma arma de maior porte, não deixava nenhuma dúvida quanto à sua capacidade de sacar, fazer pontaria e atirar, algo que ela praticava religiosamente sempre que tinha oportunidade, em vários montes de escória, chegando mesmo a ganhar uns trocados de vez em quando com apostas que fazia com supostos grandes atiradores entre os mineiros. 'Annie Oakley!', gritavam os finlandeses quando ela aparecia, jogando pequenas moedas para cima na esperança de que ela fizesse um furo numa delas, coisa que de vez em quando ela tinha a felicidade de conseguir fazer, proporcionando a muitos dos que viriam a retornar à Finlândia um amuleto a que se apegar nos tempos de guerra civil e de Terror Branco, saques e massacres – algo que indicava a possibilidade de vencer, de vez em quando, a lei das probabilidades e realizar o contrafactual naquele mundo gélido que os aguardava."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 310

Pelas noites azuis

"Pelas noites azuis de verão, irei em atalhos sob a lua,
Picotado pelos trigos, pisar a grama pequena:
Sonhador, sentirei nos pés o frescor que acena.
Deixarei o vento banhar minha cabeça nua.

Não falarei, não pensarei em nada sequer:
Mas me subirá na alma o amor soberano,
E irei longe, bem longe, feito um cigano,
Pela Natureza – feliz como se estivesse com uma mulher."

Arthur Rimbaud (1854-1891). Poemas escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 49

domingo, 3 de julho de 2016

Liberdade

“O mundo proclamou a liberdade, sobretudo ultimamente, e eis o que vemos dessa liberdade deles: só escravidão e suicídio! Porque o mundo diz: ‘Tens necessidades e por isso satisfaze-as, porque tens os mesmos direitos que os homens mais ilustres e ricos. Não temas satisfazê-las e até procura multiplicá-las' – eis a atual doutrina do mundo. É nisso que veem a liberdade. E o que resulta desse direito à multiplicação das necessidades? Para os ricos o isolamento e o suicídio espiritual, para os pobres, a inveja e o assassinato, porquanto esses direitos foram concedidos mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. Asseguram que, quanto mais tempo passar, mais o mundo irá unir-se, irá constituir-se num convívio fraterno porque isso reduz as distâncias, transmite as ideias pelo ar. Ai, não credes nessa união dos homens.

Compreendendo a liberdade como a multiplicação e o rápido saciamento das necessidades, deformam sua natureza porque geram dentro de si muitos desejos absurdos e tolos, os hábitos e as invenções mais disparatadas. Vivem apenas para invejar uns aos outros, para a luxúria, a soberba. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados escravos eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida, a honra, o amor ao homem, e até se matam se não conseguem saciá-la. Vemos a mesma coisa naqueles que não são ricos, e entre os pobres o não saciamento das necessidades e a inveja ainda são abafados pela bebedeira. Em breve, em vez do vinho haverão de embebedar-se com sangue, para isto estão sendo conduzidos.

Eu vos pergunto: esse homem é livre?”

Fiodor Dostoievski (1821-1881). Os irmãos Karamázov (1880). 2ª parte - Livro VI: Um monge russo

Usamo-nos uns aos outros

"...o fato é que usamo-nos uns aos outros, muitas vezes com efeito mortal, desligando os sentimentos, a consciência... cada um de nós sabendo que em algum momento há de chegar a nossa vez. Não haverá para onde fugir, apenas um deserto hostil e morto."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 151

Frações

"O único restaurante aberto àquela hora da noite era o Narvik's Lanches Rápidos Cozinha Setentrional, cheio de fregueses a qualquer hora, normalmente com fila na porta. Hunter previa uma longa espera. Não apenas a fila andava a uma velocidade insuportavelmente lenta, como também, quando andava, avançava apenas uma fração do espaço ocupado por um corpo. Como se alguns dos que estavam esperando ali estivessem presentes, sabe-se lá como, de modo fracionário."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 139

Cores


"Quando a luz do dia desapareceu da cidade naquela noite, a iluminação de rua estava muito mais fraca do que de costume. Era difícil enxergar o que quer que fosse com clareza. As barreiras sociais comuns estavam reduzidas ou simplesmente ausentes. Os gritos que prosseguiam por toda a noite, ignorados como ruído de fundo durante o dia, agora, na ausência do clamor do tráfego, assumiam um tom de urgência e desespero – um coro de sofrimento prestes a passar do domínio do invisível para algo que talvez tivesse de ser enfrentado. Vultos que tarde da noite só apareciam em níveis de cinzento, agora, constatava-se, possuíam cor, não os tons da moda que se viam durante o dia, porém matizes de vermelho-sangue, amarelo-necrotério, verde-veneno."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 156

Infernos

"...ele era capaz de apostar que essa mesma estrutura de infernos industriais envolta em silêncio público poderia ser encontrada em qualquer lugar. Sempre havia alguma Forty-seventh Street, sempre alguma legião de gente invisível num dos lados do livro de contabilidade, em contrapartida com um punhado de pessoas que estavam ficando muito ou mesmo incalculavelmente ricas às custas das outras."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 179

Lew Basnight

"Lew saiu do escritório do impressor, que era apenas um galpão de madeira improvisado, e voltou a descer o vale. Até agora, naquela viagem, ninguém tentara atirar nele, ou pelo menos não havia prova de tal coisa, mas o pressentimento de que isso ia acontecer havia aumentado nos últimos dias quase a ponto de se transformar num problema estomacal. Desde que arranjara aquele emprego, só dava atenção à paisagem, fosse natural ou urbana, até onde ia o alcance das armas de fogo mais comuns utilizadas pelos malfeitores possíveis – estando fora desse raio, todas aquelas montanhas e pores do sol teriam que se virar sem os olhares admirados de Lew Basnight."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 177

Loucura

"Lew tinha a impressão de que cada cabana, cada galpão, cada taberna e casa de fazenda que ele via dali continha histórias que nada tinham de pacíficas – cavalos belíssimos enlouquecidos, retorcendo-se como cobras e arrancando de seus cavaleiros nacos de carne que nunca mais seriam recuperados, esposas servindo aos maridos iguarias preparadas com cogumelos capazes de enegrecer uma moeda de prata, fazendeiros matando pastores por conta de uma olhadela de esguelha, menininhas muito quietinhas da noite para o dia transformadas em enlouquecidas e escandalosas noivas da multidão, obrigando os homens de sua família a tomar medidas que nem sempre contribuíam para a tranquilidade pública, e, como base do contrato com seu destino, a terra continha os espíritos para sempre inquietos das gerações de utes, apaches, anasazis, navajos, chirakawas, ignoradas, traídas, estupradas, roubadas e assassinadas, prestando testemunho na velocidade do vento, saturando a luz, sussurrando sobre os rostos e penetrando os pulmões dos invasores brancos numa música tão monótona quanto a das cigarras, tão implacável quanto uma sepultura assinalada ou perdida."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 178

destinos

"Lake voltou à cabana uma vez para pegar algumas de suas coisas. A casa esvaziada estava cheia de ecos. Webb estava de serviço, Mayva estava na rua fazendo compras. Todos seus irmãos homens já tinham ido embora havia muito tempo, sendo que entre eles era de Kit que ela sentia mais falta, pois eles eram os dois mais moços e tinham em comum uma espécie de teimosia, uma ânsia por um destino jamais sonhado, ou talvez apenas uma aversão implacável à vida cotidiana a que os outros haviam se acostumado."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 195