sábado, 28 de abril de 2012

Jornal íntimo

Hoje roí cinco unhas até o sabugo e encontrei no cinema, vendo Charles Chaplin e rindo às gargalhadas, de chinelos de couro, um menino claro. Usei a toalha alheia e fui ao ginecologista.

(...)

Acordei com uma coceira terrível no hímen. Sentei no bidê com um espelhinho e examinei minuciosamente o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei uma pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.

Ana Cristina César (1952-1983). 

Trechos tirados do livro "26 poetas hoje" (Aeroplano editora, 2007, páginas 139 e 143), organizado por Heloisa Buarque de Hollanda.

Os subterrâneos

A vez que o vizinho alegre dela o jovem escritor John Golz veio (religiosamente oito horas por dia à máquina de escrever, escreve histórias para revistas, admirador de Hemingway, com frequência dá comida a Mardou e é um rapaz simpático de Indiana e é cheio de boas intenções e está longe de ser um subterrâneo cheio de subterfúgios manhoso feito serpente e interessante e sim um cara aberto, jovial, brinca com as crianças no pátio meu Deus) - veio ver Mardou, eu estava lá sozinho (por algum motivo, Mardou estava num bar dentro do esquema que tínhamos combinado, a noite que ela saiu com um rapaz negro que ela não gostava muito mas só de sarro e ela disse a Adam que estava fazendo isso porque ela queria transar com um rapaz negro de novo, o que me fez ficar com ciúme, mas Adam disse "Se dissessem a ela que você saiu com uma menina branca para ver se você conseguia transar com branca de novo ela certamente ia ficar toda prosa, Leo") - aquela noite, eu estava na casa dela esperando, lendo, John Golz veio filar um cigarro e vendo que eu estava sozinho o garoto quis falar sobre literatura - "Olha, pra mim a coisa mais importante é a seletividade", e eu explodi e disse: "Ah não me vem com esses papos que você aprendeu no colégio que eu já ouvi uma porrada de vezes muito antes de você nascer quase pelamordideus diz uma coisa nova e interessante sobre literatura" - arrasando o rapaz, mal-humorado, principalmente porque eu estava irritado e porque ele parecia inofensivo e portanto parecia não ter perigo nenhum berrar com ele, no que aliás eu estava absolutamente certo - arrasando o rapaz, que era amigo dela, coisa que não se faz - não, no mundo não há lugar para esse tipo de coisa, e então o que a gente faz, e onde? quando? buá buá buá, chora o bebê no estouro da meia-noite.

Jack Kerouac, Os subterrâneos (1958). Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 92-93.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Tenho uma folha

Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:
mudo convite

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera:

Ana Cristina César (1952-1983)

Saudação

A cada animal que abate ou come sua própria
espécie
E cada caçador com rifles montados em
camionetas
E cada miliciano ou atirador particular
com mira telescópica
E cada capataz sulista de botas com seus cães
& espingardas de cano serrado
E cada policial guardião da paz com seus cães
treinados para rastrear & matar
E cada tira à paisana ou agente secreto
com seu coldre oculto cheio de morte
E cada funcionário público que dispara contra o
público ou que alveja-para-matar
criminosos em fuga
E cada Guarda Civil em qualquer país que
guarda os civis com algemas & carabinas
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
posto da barreira em tanto faz qual lado de
qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
de Tortilha
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário
em calças de equitação sob medida &
capacete protetor de plástico &
revólver em coldre ornado de prata
E cada radiopatrulha com armas anti-motim &
sirenes e cada tanque anti-motim com
cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
sob as asas
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
decolam
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
super-estado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
que mata por sua Nação
E cada profeta com arma de fogo ou branca e
quem quer que reforce as luzes do espírito
à força ou reforce o poder de qualquer
estado com mais Poder
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada

Lawrence Ferlinghetti (1968)

La mort des pauvres

C'est la Mort qui console, hélas ! et qui fait vivre;
C'est le but de la vie, et c'est le seul espoir
Qui, comme un élixir, nous monte et nous enivre,
Et nous donne le coeur de marcher jusqu'au soir;

A travers la tempête, et la neige, et le givre,
C'est la clarté vibrante à notre horizon noir;
C'est l'auberge fameuse inscrite sur le livre,
Où l'on pourra manger, et dormir, et s'asseoir;

C'est un Ange qui tient dans ses doigts magnétiques
Le sommeil et le don des rêves extatiques,
Et qui refait le lit des gens pauvres et nus;

C'est la gloire des Dieux, c'est le grenier mystique,
C'est la bourse du pauvre et sa patrie antique,
C'est le portique ouvert sur les Cieux inconnus!

Charles Baudelaire (1821-1867)

terça-feira, 3 de abril de 2012

The Open Road

Afoot and light-hearted, I take to the open road,
Healthy, free, the world before me,
The long brown path before me, leading wherever I choose.

Henceforth I ask not good-fortune—I myself am good fortune;
Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing,
Strong and content, I travel the open road.

The earth—that is sufficient;
I do not want the constellations any nearer;
I know they are very well where they are;
I know they suffice for those who belong to them.

(...)

From this hour, freedom!
From this hour I ordain myself loos’d of limits and imaginary lines,
Going where I list, my own master, total and absolute,
Listening to others, and considering well what they say,
Pausing, searching, receiving, contemplating,
Gently, but with undeniable will, divesting myself of the holds that would hold me.

(...)

Allons! we must not stop here!
However sweet these laid-up stores—however convenient this dwelling, we cannot remain
here;
However shelter’d this port, and however calm these waters, we must not anchor here;
However welcome the hospitality that surrounds us, we are permitted to receive it but a
little
while.

(...)

Allons! with power, liberty, the earth, the elements!
Health, defiance, gayety, self-esteem, curiosity;
Allons! from all formules!
From your formules, O bat-eyed and materialistic priests!

(...)

Allons! the road is before us!
It is safe—I have tried it—my own feet have tried it well.

Allons! be not detain’d!
Let the paper remain on the desk unwritten, and the book on the shelf unopen’d!
Let the tools remain in the workshop! let the money remain unearn’d!
Let the school stand! mind not the cry of the teacher!
Let the preacher preach in his pulpit! let the lawyer plead in the court, and the judge
expound
the
law.

Mon enfant! I give you my hand!
I give you my love, more precious than money,
I give you myself, before preaching or law;
Will you give me yourself? will you come travel with me?
Shall we stick by each other as long as we live?

Walt Whitman (1819-1892)