sábado, 31 de julho de 2010

Natal em família

"Engoliu a cerveja sem gosto e olhou em volta, o rosto lambuzado pela gordura viscosa do pernil, a camisa salpicada de farofa, os olhos meio baços, uma azia que parecia vir de olhar os rostos à sua volta. Tios, primos, ex-maridos de tias, sobrinhos de primos, pais, irmãos, avós... Essa gente, muitas vezes tão diferente e distante de nós, mas a quem nos sentimos ligados por estranhos laços de ácido desoxirribonucléico e filetes untuosos de porra. Enjoado, ele olha em volta e pensa que até poderia amar sua família, se a visitasse em outra época do ano. Impossível amá-los num período grotesco como este, quando saem vestindo os mais terríveis sorrisos e se lançam desesperados em busca da felicidade, obrigatória nesta época. Impossível amá-los assim, vendo como se enchem de comida, dão gargalhadas furiosas e evitam os assuntos errados, encenando um trato cordial, untuoso como o pernil, tudo para obedecer à ordem de serem felizes, essa felicidade 1984, essa felicidade Admirável Mundo Novo, essa felicidade com dia e horário marcados, decretada pelos comerciais das Casas Bahia, ditada pelos especiais do Roberto Carlos e da Xuxa. Em meio ao funk do rádio no último volume, ele tenta se refugiar na infância. E se lembra de como ele e os irmãos deixaram de acreditar cedo em Papai Noel, mas tiveram vergonha de contar aos pais: era tão constrangedor ver dois adultos fazendo aquele ritual ridículo de, Ei vamos dar uma volta na praça, e a mãe que dizia, Espera, e depois voltava para fechar a porta, e a gente sabia, era tão óbvio, que ela tinha voltado para colocar embaixo da árvore os presentes que estavam trancados dentro do guarda-roupa. E quando, depois do passeio, voltávamos para casa, os pais arregalavam os olhos ao ver os presentes embaixo da árvore, e falavam, Olha o que o papainoel deixou, e nós nos esforçávamos para copiar a mesma cara de espanto e maravilha que eles faziam, para nos mostrarmos tão espantados e maravilhados como eles, porque aquele, afinal, era o dia, o dia de se sentir espantado e maravilhado. Nada mudou, ele pensa, e repara como todos continuam a executar a mesma pantomina de felicidade, numa marcação precisa e antiquada. Nada pode atrapalhar a felicidade, e a mãe com o pé machucado corre de um lado para o outro atirando pratos de pernil, leitoa e peru, é tempo de muita fome, todos devem comer até se estourar. Contempla a fome dos irmãos, os olhos esbugalhados de carência e ciúme, que se atiram sobre a mãe como moscas em esterco, retalhando a coitada em pedaços com sua fome de carinho. Untuosa como o pernil, ele sente a atmosfera carregada de ódios subentendidos e rancores encobertos, menções a cornos, filhos ilegítimos e abusos sexuais que hoje devem ser evitados a todo custo – afinal, haverá outros 364 dias do ano para falar sobre eles. Eles desfilam com imensos sorrisos pregados nos rostos, feitos para não pensar no xingamento de ontem e nem na maledicência de amanhã. Tão cansado quanto ele, o pai se refugia, longe de todos, no outro extremo da casa, diante da TV. É para lá que o filho vai, exausto de tanta fartura e alegria, sem ânimo para competir com os irmãos nas disputas sangrentas pelo amor materno. Na sala, chega a sentir algo como uma imensa ternura ao ver o pai ali, tão distante, tão diferente e indiferente, controle remoto na mão, xingando alguma porcaria da televisão, tão irremediavelmente distante de qualquer felicidade de carnes gordurosas e presentes com laços. O filho sabe, porém, que não tem, como o pai, o dom de se manter apático, ao mesmo tempo ao lado e à parte. O filho contempla uma foto de si próprio, no porta-retrato da sala, a foto do bom filho, um imenso sorriso talhado na cara, transbordando de felicidade. Ele pensa em como esta fotografia nunca irá magoar ninguém com as palavras erradas, nem se aborrecer e ofender aos demais parentes com seu tédio gigantesco. Tudo o que ele quer é sumir dali, fugir para muito longe. Deixar que o porta-retrato assuma o seu papel como filho, de um jeito muito mais apropriado".

Texto de Fausto Salvadori, autor do blog Boteco Sujo

domingo, 25 de julho de 2010

L'âme du vin

Un soir, l'âme du vin chantait dans les bouteilles :
" Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité,
Sous ma prison de verre et mes cires vermeilles,
Un chant plein de lumière et de fraternité !

Je sais combien il faut, sur la colline en flamme,
De peine, de sueur et de soleil cuisant
Pour engendrer ma vie et pour me donner l'âme ;
Mais je ne serai point ingrat ni malfaisant,

Car j'éprouve une joie immense quand je tombe
Dans le gosier d'un homme usé par ses travaux,
Et sa chaude poitrine est une douce tombe
Où je me plais bien mieux que dans mes froids caveaux.

Entends-tu retentir les refrains des dimanches
Et l'espoir qui gazouille en mon sein palpitant ?
Les coudes sur la table et retroussant tes manches,
Tu me glorifieras et tu seras content ;

J'allumerai les yeux de ta femme ravie ;
A ton fils je rendrai sa force et ses couleurs
Et serai pour ce frêle athlète de la vie
L'huile qui raffermit les muscles des lutteurs.

En toi je tomberai, végétale ambroisie,
Grain précieux jeté par l'éternel Semeur,
Pour que de notre amour naisse la poésie
Qui jaillira vers Dieu comme une rare fleur ! "

Charles Baudelaire (1821-1867)

Dedico esta postagem ao meu primo Giovânio, amante do bom vinho

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Trem noturno para Lisboa

Estimado senhor diretor, caro colega Kägi,

O senhor deve ter sido informado de que ontem abandonei a sala de aula sem qualquer explicação e não voltei mais, e o senhor também já deve saber que, de lá para cá, não fui mais encontrado. Estou bem, nada aconteceu comigo. No entanto, ao longo do dia de ontem passei por uma experiência que modificou muita coisa. Ela é por demais pessoal e também ainda muito pouco clara para que eu a possa colocar no papel agora. Preciso simplesmente pedir-lhe que aceite o meu ato abrupto e sem explicação. Imagino que me conhece o suficiente para saber que nada disso aconteceu por leviandade, falta de responsabilidade ou indiferença. Estou partindo para uma longa viagem e ainda está em aberto quando voltarei e de que forma. Não espero que guarde o meu emprego para mim. A maior parte da minha vida foi intimamente entrelaçada com este liceu, e estou certo de que sentirei falta dele. Mas agora algo me impele a partir, e é bem possível que esse movimento seja definitivo. O senhor e eu somos ambos admiradores de Marco Aurélio, e o senhor haverá de se lembrar deste trecho de seus Pensamentos: "Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles, porém, que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são necessariamente infelizes."

Agradeço a confiança que sempre me dispensou e a boa colaboração que nos uniu. Tenho certeza de que encontrará as palavras adequadas quando se dirigir aos alunos, palavras que os fará saber o quanto gostei de trabalhar com eles. Antes de partir, ontem, observei-os e pensei: Quanto tempo eles ainda têm pela frente!


Na esperança de sua compreensão e os melhores votos para o senhor e o seu trabalho sou

Raimund Gregorius

Pascal Mercier, Trem noturno para Lisboa. 6a ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 36-37

Profundezas incertas

Haveria um mistério sob a superfície da atividade humana? Ou seriam as pessoas exatamente como se revelam através de suas ações explícitas?

Pode parecer estranho, mas dentro de mim a resposta se alterna conforme a luz que recai sobre a cidade e o Tejo. Na luz mágica de um dia luminoso de agosto, que produz sombras nítidas e de contornos claros, a ideia de uma profundeza humana oculta me parece absurda e como um fantasma curioso, algo terno, semelhante a uma miragem que aparece quando olho longamente para as ondas que surgem naquela mesma luz. Mas se, ao contrário, a cidade e o rio, num dia triste de janeiro, são envolvidos por uma cúpula de luz sem sombra e tediosamente cinzenta, não conheço certeza maior do que esta: a de que qualquer ação humana não passa de manifestação altamente imperfeita, até mesmo ridícula e indefesa, de uma vida interior oculta de profundezas nunca imaginadas. Uma vida que quer chegar à superfície sem jamais conseguir alcançá-la.

A esta estranha e inquietante incerteza do meu julgamento soma-se ainda mais uma experiência que, desde que a conheci, tem mergulhado a minha vida em uma insegurança perturbadora: é que nessa questão, além da qual não pode existir nada mais importante para nós humanos, eu hesito tanto quanto quando se trata de me analisar a mim mesmo. Quando, por exemplo, estou sentado no meu café preferido, ao sol, escutando as risadas sonoras das senhoras que passam, parece que todo o meu mundo interior está repleto até o canto mais remoto e que eu o conheço todo por ele se esgotar nessas sensações agradáveis. Mas no momento em que uma camada de nuvens prosaica e desmistificadora encobre o sol, tenho subitamente a certeza de que existem em mim profundezas ocultas e baixios dos quais podem irromper coisas nunca imaginadas e que podem me levar de arrastão. Então, procuro pagar logo e vou buscar uma diversão na esperança de que o sol volte logo, restaurando os direitos à superficialidade tranquilizadora.

Amadeu Inácio de Almeida Prado, Um ourives das palavras. Lisboa, 1975

[Ainda não sei se este livro realmente existiu, ou se é apenas fruto da imaginação de Pascal Mercier, autor do livro Trem noturno para Lisboa].

O triunfo da ética protestante

Após a derrota dos radicais, em 1660, e a liquidação definitiva do antigo regime em 1688, os dirigentes da Inglaterra organizaram um império comercial de extrema eficácia e um sistema de dominação de classes que se revelou extraordinariamente resistente à passagem do tempo. A ética protestante impôs-se, pelo menos, às ideias e sentimentos que puderam encontrar expressão impressa. A sociedade produziu grandes cientistas, grandes romances. Inventou o romance. Newton e Locke ditaram normas ao mundo intelectual. Esta foi uma civilização poderosa, que para a maior parte das pessoas representou um progresso face ao que antes existia. Porém que certeza podemos ter, em última análise, de que esse mundo era o melhor dentre os possíveis - um mundo em que poetas enlouqueceram, em que Locke tinha medo da música e da poesia, e Newton tinha ideias secretas e irracionais que não se atrevia a tornar públicas?

(...)

A ética protestante dominou tanto as atitudes morais das classes médias, a filosofia mecanicista dominou tão completamente o pensamento científico, que nem foi preciso renovar a lei de censura ao expirar ela em 1695 - não devido a um possível triunfo dos princípios libertários dos radicais, mas simplesmente porque a censura já não era necessária. Iguais a Newton nesse ponto, os formadores de opinião dessa sociedade se autocensuravam. Nada era impresso que pudesse assustar os proprietários. O que assim passava ao mundo subterrâneo e clandestino só podemos suspeitar. Alguns poucos poetas tinham ideias românticas que destoavam desse mundo; mas não era preciso levá-los demasiado a sério. A autocensura implicava a satisfação consigo mesmo.


Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 366-367.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O mundo de ponta-cabeça

Dizer que uma coisa está de ponta-cabeça, ou posta de pernas para o ar, afinal de contas é uma descrição bastante relativa. A idéia de que esta é a posição errada só vale na medida em que a olhamos de cima para baixo. Marx disse que encontrou Hegel de ponta-cabeça e o colocou na posição correta; mas certamente não era assim que Hegel via a sua própria posição. Marx pensava que a Prússia de seu tempo era um mundo de pernas para o ar. A idéia de que o debaixo possa ir ter em cima, de que o último possa ser o primeiro e o primeiro, último, de que a "comunidade... denominada Cristo ou o amor universal" possa banir "a propriedade, cujo nome é diabo ou cobiça", e de que "as servidões internas da mente" (a cobiça, o orgulho, a hipocrisia, os medos, o desespero e a doença mental) possam ser "causadas, todas, pelas servidões externas que uma espécie de gente impõe a outra" - essas idéias não são necessariamente opostas à ordem: simplesmente contemplam uma ordem diferente. Podemos estar muito condicionados pela via ascendente que o mundo tomou nesses últimos trezentos anos, a ponto de não conseguirmos ser justos com os homens do século XVII que anteviram as possibilidades do avesso, das pernas para o ar, da reviravolta do mundo. Mas pelo menos devemos tentar entendê-los (p. 367).

Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução e apresentação de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Os fuzilamentos da Moncloa

Uma das obras mais visitadas no Museu do Prado, em Madri, é um quadro do pintor Francisco de Goya chamado Os fuzilamentos da Moncloa [pintado em 1814]. Retrata uma cena assustadora ocorrida na noite de 3 de maio de 1808 em Montana Del Príncipe Pio, nos arredores da capital espanhola. Do lado direito do quadro, sobre um fundo de tom escuro e pesado, uma fileira de soldados aponta seus fuzis para um grupo de pessoas ajoelhadas à esquerda. No centro, uma lanterna no chão projeta uma luz fantasmagórica sobre um homem que, de camisa branca e calça bege, ergue os braços em direção aos atiradores. Pede clemência? Tenta explicar alguma coisa? Faz um último ato de protesto? Ninguém nunca saberá. O instante congelado pelas tintas de Goya é de puro medo e desespero. Aos pés do homem de camisa branca estão empilhados três ou quatro cadáveres cobertos de sangue. Ao seu lado, outras pessoas esperam pelo tiro fatal. Algumas cobrem os olhos. Outras pendem a cabeça, num gesto de resignação.

O quadro de Goya é um trágico testemunho dos acontecimentos que abalaram a Península Ibérica no ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. Na véspera daquelas execuções em massa, os espanhóis se rebelaram contra a invasão das tropas francesas e a deposição do rei Carlos IV. A repressão foi violenta e implacável. Entre a tarde do dia 2 e a noite do dia 3, centenas de rebeldes foram fuzilados nos subúrbios de Madri. Começava ali um dos confrontos mais sangrentos das guerras napoleônicas - e que teriam consequências profundas para os dois lados em disputa. (p. 242-243).

Laurentino Gomes, 1808. 3. ed. São Paulo: Planeta, 2009. p. 242-3.

O Brasil e os livros

"O Brasil não é lugar de literatura. (...) Na verdade, a sua total ausência é marcada pela proibição geral de livros e a falta dos mais elementares meios pelos quais seus habitantes possam tomar conhecimento do mundo e do que se passa nele. Os habitantes estão mergulhados em grande ignorância e sua consequência natural: o orgulho". James Henderson, 1821

James Henderson, A History of the Brazil - comprising its geography, commerce, colonization, aboriginal inhabitants. London: Longman, 1821. p. 76.

1808

"Imagine que, num dia qualquer, os brasileiros acordassem com a notícia de que o presidente da República havia fugido para a Austrália, sob a proteção de aviões da Força Aérea dos Estados Unidos. Com ele, teriam partido, sem aviso prévio, todos os ministros, os integrantes dos tribunais superiores de Justiça, os deputados e senadores e alguns dos maiores líderes empresariais. E mais: a esta altura, tropas da Argentina já estariam marchando sobre Uberlândia, no Triângulo Mineiro, a caminho de Brasília. Abandonado pelo governo e todos os seus dirigentes, o Brasil estaria à mercê dos invasores, dispostos a saquear toda e qualquer propriedade que encontrassem pela frente e assumir o controle do país por tempo indeterminado.

Provavelmente, a primeira sensação dos brasileiros diante de uma notícia tão inesperada seria de desamparo e traição. Depois, de medo e revolta.

E foi assim que os portugueses reagiram na manhã de 29 de novembro de 1807, quando circulou a informação de que a rainha, o príncipe regente e toda a corte estavam fugindo para o Brasil sob a proteção da Marinha britânica. Nunca algo semelhante tinha acontecido na história de qualquer país europeu. Em tempos de guerra, reis e rainhas haviam sido destronados ou obrigados a se refugiar em territórios alheios, mas nenhum deles tinha ido tão longe a ponto de cruzar um oceano para viver e reinar do outro lado do mundo. Embora os europeus dominassem colônias imensas em diversos continentes, até aquele momento nenhum rei havia colocado os pés em seus territórios ultramarinos para uma simples visita - muito menos para ali morar e governar. Era, portanto, um acontecimento sem precedentes tanto para os portugueses, que se achavam na condição de órfãos de sua monarquia da noite para o dia, como para os brasileiros, habituados até então a ser tratados como uma simples colônia extrativista de Portugal.

No caso dos portugueses, além da surpresa da notícia, havia um fator que agravava a sensação de abandono. Duzentos anos atrás, a noção de Estado, governo e identidade nacional era bem diferente do que se tem hoje. Ainda não existia em Portugal a ideia de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido - o princípio fundamental da democracia. No Brasil de hoje, se, por uma circunstância inesperada, todos os governantes fugissem do país, o povo ainda teria a prerrogativa de se reunir e eleger um novo presidente, deputados e senadores, de modo a recompor imediatamente o Estado e seu governo. As próprias empresas, depois de um período de incerteza pela ausência de seus donos ou dirigentes, poderiam se reorganizar e continuar funcionando. Em Portugal de 1807 não era assim. Sem o rei, o país ficava à míngua e sem rumo. Dele dependiam toda a atividade econômica, a sobrevivência das pessoas, o governo, a independência nacional e a própria razão de ser do Estado português". (p. 31-32).

Laurentino Gomes, 1808. 3. ed. São Paulo: editora Planeta, 2009, p. 31-32.