sábado, 29 de março de 2014

Van Gogh



"Os autorretratos de Vincent reafirmavam a preeminência do indivíduo, do eu, diante do resto do mundo, na situação de adversidade social extrema que esse artista conheceu. Este sou eu, este que vocês veem no seu sofrimento ou na sua alegria, eu existo por essas cores e essas manchas na tela, e tenho razão de prosseguir o caminho que escolhi, do jeito que escolhi. Quanto maior a adversidade e mais próxima parece a morte, tanto mais esse lutador infatigável parece querer nos dar uma lição admirável de coragem moral. No limiar de um século XX que ele sonhava idílico e que foi tão cruel, o conjunto de autorretratos de Vincent, a maioria dos quais realizados em Paris, é como uma nova confirmação da força espantosa de uma civilização paradoxal que inflige às vezes o martírio aos que a renovam, salvando-a da esclerose e da morte."

David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 174

Paisagens de Van Gogh



"Imaginem esse artista sozinho no campo, pintando ajoelhado diante do vento! As pessoas da região por certo logo o tomaram por doido, pois a imagem está muito distante da de um pintor de domingo que medita longamente as pequenas pinceladas. O que elas viam era um louco num campo ventoso e se perguntavam que tesouro ele buscava. Como observou muito bem Meyer Schapiro, são paisagens arrancadas num instante fugaz, e suas cores e a paixão da pincelada fazem delas uma visão do paraíso."

David Haziot. Van Gogh. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 198

sábado, 22 de março de 2014

não somos tão grandes assim



"Certa vez, há cinquenta anos, meu avô me mostrou alguns filmes sobre os foguetes V-2. Você já viu alguma vez o cogumelo de uma bomba atômica, de uma altitude de trezentos mil metros? É uma cabeça de alfinete, não é nada. Com a imensidão aoredor. Meu avô passou o filme do foguete V-2 umas dez vezes, e depois manifestou a esperança de que, algum dia, nossas cidades fossem mais espalhadas, deixando mais espaço para o verde, a terra e o campo, para lembrar às pessoas que nos cabia um pequeno espaço na terra, e que sobrevivemos nessa vastidão que pode tomar de volta o que ela deu com a mesma facilidade com que sopra seu hálito sobre nós ou envia o mar para nos dizer que não somos tão grandes assim. Quando nos esquecermos quanto a natureza está próxima na noite, dizia meu avô, algum dia ela vai entrar e nos pegar, pois teremos esquecido quão terrível e real ela pode ser."

Ray Bradbury (1920-2012). Fahrenheit 451 (1953). São Paulo: Biblioteca Azul, 2012. p. 192

Ele moldava o mundo



"Meu avô morreu quando eu era garoto. Ele era escultor. Também era um homem muito generoso, com muito amor para dar ao mundo, e ajudou a reduzir a miséria de nossa cidade; e ele fazia brinquedos para nós e fez milhões de coisas na vida; sempre tinha as mãos ocupadas. E quando morreu, subitamente percebi que não estava chorando por ele, mas por todas as coisas que ele fazia. Eu chorava porque ele nunca mais as faria novamente, nunca mais esculpiria outra peça de madeira ou nos ajudaria a criar pombos no quintal, nem tocaria violino do jeito que tocava ou nos contaria piadas com aquele seu jeito pessoal. Ele fazia parte de nós e, quando morreu, todas essas coisas morreram com ele, e não havia ninguém para fazê-las do jeito que ele fazia. Ele era único. Era um homem importante. Jamais superei sua morte. Muitas vezes penso: quantas esculturas maravilhosas jamais vieram à luz porque ele morreu. Quantas piadas estão perdidas para o mundo e quantos pombos suas mãos deixarão de tocar. Ele moldava o mundo. Ele fazia coisas para o mundo. O mundo sofreu uma perda de dez milhões de ações generosas na noite em que ele morreu."

Ray Bradbury (1920-2012). Fahrenheit 451 (1953). São Paulo: Biblioteca Azul, 2012. p. 191

quarta-feira, 19 de março de 2014

Fahrenheit 451



"A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas? (...) 

Mais esporte para todos, espírito de grupo, diversão, e não se tem de pensar, não é? Organizar, tornar a organizar e superorganizar super-superesportes. Mais ilustrações nos livros. Mais figuras. A mente bebe cada vez menos. Impaciência. Rodovias cheias de multidões que vão pra cá, pra lá, a toda parte, a parte alguma."

Ray Bradbury (1920-2012). Fahrenheit 451 (1953). São Paulo: Biblioteca Azul, 2012. p. 80-82

Paz



"Se você não quiser que se construa uma casa, esconda os pregos e a madeira. Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem da letra das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra de milho do ano anterior. Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com 'fatos' que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente 'brilhantes' quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia."

Ray Bradbury (1920-2012). Fahrenheit 451 (1953). São Paulo: Biblioteca Azul, 2012. p. 86

terça-feira, 18 de março de 2014

Tudo meu



"Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga sensação de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos fortes. E se há ali perto inimigos morrendo, sejam embora inimigos de pouca monta que um moleque devasta a cacete, a convicção que temos da nossa fortaleza torna-se estável e aumenta."

Graciliano Ramos (1892-1953). S. Bernardo (1934). 87ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 184-5

sábado, 15 de março de 2014

Cinquenta anos!



"Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida paraos filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria!"

Graciliano Ramos (1892-1953). S. Bernardo (1934). 87ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 216

Foto: Graciliano Ramos, jan. de 1953 (Acervo Família Graciliano Ramos)

Paredes azuis



"A casa onde eu morava nessa época tinha algumas qualidades. Uma das mais bacanas era o quarto, pintado de um azul muito escuro. Esse azul muito escuro oferecia um abrigo para muitas ressacas, algumas delas suficientemente brutais para matar um homem, sobretudo numa época em que eu engolia as pílulas que as pessoas me davam sem me preocupar em perguntar o que eram. Algumas noites eu sabia que, se adormecesse, morreria. Ficava dando voltas sozinho a noite toda, do quarto ao banheiro e do banheiro à cozinha, passando pela sala da frente. Abria e fechava a geladeira, repetidas vezes. Abria e fechava as torneiras. Ia ao banheiro e abria e fechava as torneiras. Dava descargas na privada. Puxava as orelhas. Inspirava e expirava. Depois, quando o sol saía, eu sabia que estava salvo. Aí dormia com as paredes azuis azuis azuis, curando-me."

Charles Bukowski (1920-1994). Hollywood (1989). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 58

Escrever nunca foi trabalho para mim



"Escrever nunca foi trabalho para mim. Sempre fora assim, desde quando me lembrava: ligar o rádio numa estação de música clássica, acender um cigarro ou charuto, abrir a garrafa. A máquina fazia o resto. Eu só precisava estar ali. Todo o processo me permitia seguir em frente quando a vida oferecia tão pouco, quando a própria vida era um espetáculo de horror. Sempre havia a máquina para me acalmar, conversar comigo, me entreter, salvar meu rabo. Basicamente, era por isso que eu escrevia: para salvar meu rabo, salvar meu rabo do asilo de doidos, das ruas, de mim mesmo."

Charles Bukowski (1920-1994). Hollywood (1989). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 84

Uma forma de lamento



"Escrever era estranho. Eu precisava escrever, era como uma doença, uma droga, uma forte compulsão, mas não me agradava pensar em mim mesmo como um escritor. Talvez tivesse conhecido escritores demais. Eles levavam mais tempo falando mal uns dos outros do que fazendo seu trabalho. Eram nervosos, fofoqueiros, velhas solteironas; viviam se lamentando, dando facadas, inchados de vaidade. Eram esses os nossos criadores? Sempre fora assim? Provavelmente sim. Talvez escrever fosse uma forma de lamento. Alguns simplesmente se lamentavam melhor que os outros."

Charles Bukowski (1920-1994). Hollywood (1989). Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 91

este é o morto



"Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto

Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente

Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade"

Ferreira Gullar (1930-). Melhores poemas (seleção: Alfredo Bosi). São Paulo: Global, 2004. p. 118

Teu coração


"Teu coração,
esse mínimo pulsar dentro da Via Láctea,
em meio a tempestades solares,
quando se deterá?
Não o sabes pois a natureza ama se ocultar.
E é melhor que não o saibas
para que seja por mais tempo doce em teu rosto
a brisa deste dia
e continues a executar
sem partitura
a sinfonia do verão como parte que és
desta orquestra regida pelo sol."

Ferreira Gullar (1930-). Melhores poemas (seleção: Alfredo Bosi). São Paulo: Global, 2004. p. 256

quarta-feira, 12 de março de 2014

Insignificâncias


"Insignificâncias. No meio das canseiras a morte chega, o diabo carrega a gente, os amigos entortam o focinho na hora do enterro, depois esquecem até os pirões que filaram."


Graciliano Ramos (1892-1953). S. Bernardo (1934). 87ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 176

Insônia



"Não podia dormir. Contava de um a cem, e dobrava o dedo mindinho; contava de cem a duzentos, dobrava o seu vizinho; assim por diante, até completar mil e ter as duas mãos fechadas. Depois contava cem, e soltava o dedo grande; mais cem, o fura-bolo; e quando chegava a dois mil, as duas mãos estavam abertas. Repetia a leseira, imaginava para cada dedo que se movia um conto de réis de lucro no balanço, o que me rendia fortuna imensa, tão grande que me enjoava dela e interrompia a contagem."

Graciliano Ramos (1892-1953). S. Bernardo (1934). 87ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 181

Outra vez te revejo



"Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver..."

Fernando Pessoa (1888-1935). Poemas escolhidos. São Paulo: Klick, 1997. p. 120

Foto: calçada de Lisboa

sábado, 8 de março de 2014

não era ainda



"Não, não era ainda a era da passagem
do nada ao nada, e do nada ao seu restante.
Viver era tanger o instante, era linguagem
de se inventar o visível, e era bastante.
Falar é tatear o nome do que se afasta.
Além da terra, há só o sonho de perdê-la.
Além do céu, o mesmo céu, que se alastra
num arquipélago de escuro e estrela."

Antonio Carlos Secchin (1952-). In: Heloísa Buarque de Hollanda. 26 poetas hoje (1ª edição: 1975). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. p. 130

S. Bernardo



"Tenho visto criaturas que trabalham demais e não progridem. Conheço indivíduos preguiçosos que têm faro: quando a ocasião chega, desenroscam-se, abrem a boca – e engolem tudo.

Eu não sou preguiçoso. Fui feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna a ser-me favorável nas seguintes."

Graciliano Ramos (1892-1953).
S. Bernardo (1934). 87ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 48

Homem de responsabilidades



"João Nogueira lembrou-se de que era homem de responsabilidades. Bacharel, mais de quarenta anos, uma calvície respeitável. Às vezes metia-se em badernas. Mas com os clientes só negócios. E a mim, que lhe dava quarenta contos e oitocentos por ano para ajudar-me com leis a melhorar S. Bernardo, exibia ideias corretas e algum pedantismo. 

Eu tratava-o por doutor: não poderia tratá-lo com familiaridade. Julgava-me superior a ele, embora possuindo menos ciência e menos manha. Até certo ponto parecia-me que as habilidades dele mereciam desprezo. Mas eram úteis – e havia entre nós muita consideração."

Graciliano Ramos (1892-1953). S. Bernardo (1934). 87ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 53-4

quarta-feira, 5 de março de 2014

Vivir al día



"...la Lowell nada ambicionaba, vivía al día, desapegada, libre, sin miedo; no temía la pobreza, la soledad o la decrepitud, todo lo aceptaba de buen talante, la existencia era para ella un viaje divertido que conducía inevitablemente a la vejez y la muerte; no había razón para acumular bienes, puesto que de todos modos a la tumba se iba en cueros, sostenía. Atrás había quedado la joven seductora que tantos amores sembró en San Francisco, atrás la bella que conquistó París; ahora era una mujer en cincuentena de su existencia, sin ninguna coquetería ni remordimientos."

Isabel Allende (1942-). Retrato en sepia (2000). Barcelona: Debolsillo, 2006. p. 230

Poesia marginal


"A brasa do cigarro não perturba o teu sono
Nem o resfolegar surdo da cidade
Não perturbam o teu sono o relógio
E os bêbados na rua
Penso em tirar do silêncio
A coragem para não te acordar"

João Carlos Pádua (1950-2009)
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"Lá onde vais é a tua sorte

é tu
de olhos arregalados:

onde estalam as estrelas
de ver para sempre."

Eudoro Augusto (1943-)
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"não ato
nem desato
desa
r
t
iculo"

Chacal (1951-)
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"...quando a luz do sol vai entrando de novo
dividindo o quarto num tratado de tordesilhas
eu nervoso me olho no espelho
me jogo no sofá me vejo cortado
em duas pontas
penso em você anjo louco
na sua força diabólica
maior Q a força do afrika korps
chego ao terraço – vejo o rio de janeiro
estou de saco cheio – olho a babilônia dos pobres
olho a cidade com a maldição dos renegados
com a glória neurótica do anjo exterminador
fumo uma maconha ligo a vitrola
telefono aos amigos
tomo um conhaque toco todos os sambas-canções
Q conheço de Nelson Gonçalves
procuro entender esse dia rompendo
todos os laços de família
querendo Q os insetos
invadam a casa e destruam as mobílias
sinto no lombo
cem anos de solidão
naufragando no negror da babaquice
MAS TUDO SE MOVE!..."

Adauto de Souza Santos (1950-)

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"Vou tentar a desistência
vou sentar aqui
ficar sem ir
e esperar por mim que vem atrás

os frutos caem
o carro corre
o poeta morre
o mundo marcha para sua manhã
e a sinfonia não pára

– sendo fatalidade, fico aqui –
se em tudo existe a própria máquina
pouco acrescenta ir ou não ir
...
eu vou parar
que venha a noite

se vier com luz
amém

se vier escura
amém

se vier mulher
bem, aí muito bem."

José Carlos Capinan (1941-)


Heloísa Buarque de Hollanda. 26 poetas hoje (1ª edição: 1975). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007

no tengo que agradar a todo el mundo



"La gente habla a mis espaldas, es inevitable; varios parientes y conocidos me han hecho la cruz y si me ven en la calle fingen no conocerme, no pueden tolerar que una mujer abandone a su marido. Esos desaires no me quitan el sueño: no tengo que agradar a todo el mundo, sólo a quienes en verdad me importan, que no son muchos."

Isabel Allende (1942-). Retrato en sepia (2000). Barcelona: Debolsillo, 2006. p. 330-1