domingo, 29 de setembro de 2013

Nem tudo que tentei perdi



"Nem tudo que tentei perdi. Restou 
a intenção de ser alguém ou algo
que não se pode ser, mas só ter sido;
restou a tentação do nada, nunca
tão forte que vencesse esse meu medo
que é a coisa mais honesta que há em mim.
Sobrou também o hábito vadio
de me virar do avesso e esmiuçar
as emoções como quem espreme espinhas.
Mas nada disso dói; a dor é um ácido
que ao mesmo tempo que corrói consola,
é uma coceira que vem lá de dentro
e me destrói sem dignidade alguma."

Paulo Henriques Britto. Mínima lírica. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

O zumbido do silêncio



"O zumbido do silêncio
insiste em nos atordoar
mas as nuvens que ainda restam
desistiram de tentar
parecer alguma coisa
e ao nos ver tão despertos
as derradeiras estrelas
se arregalam espantadas
com nossa imobilidade

e nós inertes e mudos
olhos fixos no escuro
constatamos insones
nossa intensa solidão."

Paulo Henriques Britto. Mínima lírica. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 17

El beso de la mujer araña



"–¿ Pero no se sufre más, después de haber sido feliz y quedarse sin nada?
– Molina, hay una cosa que tener muy en cuenta. En la vida del hombre, que puede ser corta y puede ser larga, todo es provisorio. Nada es para siempre.
– Sí, pero que dure un poquito, por lo menos.
– Es que habría que saber aceptar las cosas como se dan, y apreciar lo bueno que te pase, aunque no dure. Porque nada es para siempre."

Manuel Puig (1932-1990). El beso da la mujer araña (1976). Buenos Aires: Booket, 2011, p. 224

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Um cavalo de olhos azul-esverdeados


"o que você vê é aquilo que vê:
os hospícios raramente 
estão visíveis.

que continuemos caminhando por aí
e nos coçando e acendendo
cigarros

é mais miraculoso

do que os banhos das beldades
do que as rosas e as mariposas.

sentar-se em um pequeno quarto
e beber uma latinha de cerveja
e fechar um cigarro
ouvindo Brahms
em um radinho vermelho

é como ter voltado
de uma dúzia de batalhas
com vida

ouvir o som
da geladeira

enquanto as beldades banhadas apodrecem

e as laranjas e maçãs
rolam para longe."

Charles Bukowski (1920-1994). O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 162

Morto de minh'alma



"Minhas tardes, minhas manhãs, as eleitas entre todas, as que conservei como cartas de amor, pertencem aos mortos. Eu as deposito sobre as suas pálpebras como um ramo de angélicas. Morrem em mim as tardes, as manhãs, quando eles morrem. (...) Teço também uma coroa de afeições para os seus lábios; ponho em suas mãos meus carinhos vividos; coloco a seus pés os caminhos que percorri, atribulações e alegrias do espaço, mais impenetráveis talvez do que os dias perdidos. Olho depois os meus pés imóveis, já desanimados de caminhar.

Desfeito de minhas riquezas, já do tamanho de um defunto, lívido e abandonado como o próprio morto, posso descansar um pouco e conversar com ele. (...)

Morto, morto de minh'alma, boa noite. Vou recomeçar os trabalhos abjetos e os dias ruins. Muito mentirei mas não mentirei a ti. Estarei contigo, de surpresa, nos meus inexpugnáveis silêncios, na sombra de meus espelhos, em meus retratos velhos, em meus cabarés vazios. Prometo usar sempre tua morte em minha lapela, como um distintivo, o teu sinal, o meu sinal."

Paulo Mendes Campos. Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 129-130

prazeres da alma



"Sente-se diante da vitrola
E esqueça-se das vicissitudes da vida
Na dura labuta de todos os dias
Não deve ninguém que se preze
Descuidar dos prazeres da alma

Discos a todos os preços"

Oswald de Andrade (1890-1954). Pau-Brasil. 3ª ed. São Paulo: Globo, 1990, p. 119

este é o problema de ser pobre


"abatido pela gripe
bebendo cerveja
o rádio num volume
suficientemente alto para superar
os sons produzidos
pelo estéreo das pessoas que
recém se mudaram
para a casa
ao lado.
dormindo ou acordados
eles ajustam seu aparelho
no volume máximo
deixando suas
portas e janelas
abertas.

cada um deles tem
18, casados, vestem
sapatos vermelhos,
são loiros,
magros.
tocam de
tudo: jazz,
música clássica, rock,
country, moderna
contanto que esteja
alta.

este é o problema
de ser pobre:
temos que conviver com
o som dos outros.
semana passada foi
minha vez:
havia duas mulheres
aqui
brigando entre si
e elas
correram pela calçada
gritando.
a polícia veio.

agora é a vez
deles.
agora caminho
pra lá e pra cá em
meus calções sujos,
dois tampões de borracha
enfiados bem fundo
em meus ouvidos.

chego a pensar em
assassinato.
esses coelhos
pequenos e rudes!
pedacinhos ambulantes
de ranho!
...
algum dia cada um
deles estará morto
algum dia cada um
deles terá um
caixão separado
e então haverá
silêncio.

mas por ora
é Bob Dylan
Bob Dylan Bob
Dylan por aí
afora."

Charles Bukowski (1920-1994). O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 121-123

São quatro horas da madrugada com silêncio



"São quatro horas da madrugada com silêncio. Só agora estou ouvindo os sapos coaxarem. Já tomei café. Estou fumando. (...). Todos estão dormindo. Menos eu. Tem aqui uma ferradura para dar sorte. Os passarinhos com fome piando. Parece mentira de tão bom que está aqui. Tenho um livro de Simenon – sou doida por ele: o melhor é ler em francês, mas o que tenho aqui é português. Vou citar um trecho: 'Um largo feixe de luz atravessava o quarto, iluminando uma fina poeira, como se de repente se descobrisse a vida íntima do ar.' Não é bom?"

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas de 1967 a 1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 686

A febre do registro


A foto a seguir mostra uma multidão de turistas fotografando a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre, em Paris. É realmente assustador! O quadro é pequenininho, as pessoas não podem nem chegar muito perto, por questões de segurança, e mesmo assim ele atrai multidões, todos os dias, para fotografá-lo. É a febre do registro, da necessidade de fixar o presente (muito mais que vivenciá-lo) e, acima de tudo, mostrar aos outros a experiência (que, muitas vezes, nem apreciada foi). Segundo o fotógrafo Fábio Seixo, em matéria publicada no blog Hypeness, as pessoas viajam hoje "muito mais para marcar território e dizer que estiveram lá do que para curtir a viagem". Reflexão interessante.

O anonimato é suave como um sonho



"Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas de 1967 a 1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 92

sábado, 21 de setembro de 2013

O Gênio das Multidões - Charles Bukowski

Não invejo ninguém



...
"Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante."

Álvares de Azevedo (1831-1852). Melhores poemas (seleção de Antonio Candido). 4ª ed. São Paulo: Global, 2001, p. 71

quando me penso morto


"quando me penso morto
penso em automóveis estacionados
nas vagas

quando me penso morto
penso em panelas de fritura

quando me penso morto
penso em alguém fazendo amor com você
quando não estou por perto

quando me penso morto
respiro com dificuldade

quando me penso morto
penso em todas as pessoas que esperam pela morte

quando me penso morto
penso que nunca mais poderei beber água

quando me penso morto
o ar fica completamente puro

as baratas na minha cozinha
tremem

e alguém terá que jogar
fora minhas cuecas limpas e
sujas"

Charles Bukowski (1920-1994). O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 125

alguma coisa


"estou sem fósforos.
as molas de meu sofá
estouraram.
roubaram minha maleta.
roubaram minha tela a óleo de
dois olhos rosados.
meu carro quebrou.
lesmas escalam as paredes de meu banheiro.
meu coração está partido.
mas as ações tiveram um dia de alta
no mercado."

Charles Bukowski (1920-1994). O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 153

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Chamadas


"agora recebo muitas chamadas de telefone.
todas iguais. 
'é Charles Bukowski,
o escritor?'
'sim', eu lhes respondo.
e eles dizem que entendem minha 
escrita,
alguns deles são escritores
ou querem ser escritores
e estão em empregos estúpidos e
horríveis
e não conseguem nem encarar a sala
o apartamento
as paredes
essa noite...
querem alguém com quem possam
conversar,
não podem acreditar
que não posso ajudá-los
que não conheço as palavras.
não podem acreditar
que agora mesmo
me dobro em meu quarto
segurando minhas entranhas
e dizendo
'Jesus Jesus Jesus,
de novo não!'
eles não podem acreditar
que as pessoas mal-amadas
as ruas
a solidão
as paredes
também são minhas.
e quando desligo o telefone
eles acham que escondi o
jogo.

não escrevo a partir da sabedoria.
quando o telefone toca
eu também gostaria de ouvir palavras
que pudessem aliviar um pouco alguma
dessas coisas.

é por isso que meu nome está
na lista."

Charles Bukowski (1920-1994). O amor é um cão dos diabos (1977). Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 108-9

despertei para a secura e as samambaias estavam mortas


"despertei para a secura e as samambaias estavam mortas;
as plantas nos vasos amarelas como milho;
minha mulher se fora
e as garrafas vazias como cadáveres exangues
rodeavam-me com suas inutilidades;
o sol continuava bom, contudo,
e o bilhete da minha senhoria se rompia num agradável e
condescendente amarelo; do que se precisava agora
era de um bom comediante, ao estilo clássico, um bobo da corte
com piadas capazes de vencer a dor absurda; a dor é absurda
pelo simples fato de existir, nada mais;
barbeio-me com cuidado com uma velha lâmina
o homem que uma vez tinha sido jovem e
que se dizia ter gênio; mas
esta é a tragédia das folhas,
das samambaias mortas, das plantas mortas;
e segui até um hall escuro
onde a senhoria esperava
execrável e resoluta,
mandando-me para o inferno,
gesticulando seus braços gordos e suarentos
e gritando
gritando e exigindo o aluguel
porque o mundo havia nos
decepcionado."

Charles Bukowski (1920-1994). Textos autobiográficos. Porto Alegre: L&PM

domingo, 15 de setembro de 2013

Um ser que elegia



"Ainda muito jovem era um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido, fora se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes, enxergando o que podia e apalpando com as mãos úmidas o que não via, o ser fora escolhendo e por isso indiretamente se escolhia. Aos poucos se juntara para ser. Separava, separava. Em relativa liberdade, se se descontasse o furtivo determinismo que agira discreto sem se dar um nome. Descontado esse furtivo determinismo, o ser se escolhia livre. Separava, separava o chamado joio do trigo, e o melhor, o melhor o ser comia. Às vezes comia o pior: a escolha difícil era comer o pior. Separava perigos do grande perigo, e era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava: só para sopesar com susto o peso das coisas. Afastava de si as verdades menores que terminou por não chegar a conhecer: queria as verdades difíceis de suportar. Por ignorar as verdades menores, o ser já começava a parecer aos outros como rodeado de mistério: por ser ignorante, era um ser misterioso. Tornara-se uma mistura do que pensavam dele e do que ele realmente era: um sabido ignorante; um sábio ingênuo; um esquecido que muito bem sabia de outras coisas; um sonso honesto; um pensativo distraído; um nostálgico sobre o que deixara de saber; um saudoso pelo que definitivamente, ao escolher, perdera; um corajoso por já ser tarde demais e já se ter escolhido. Tudo isso, contraditoriamente, deu ao ser uma alegria discreta e sadia de camponês que só lida com o básico. E tudo isso lhe deu a austeridade involuntária que todo trabalho vital dá. Escolha e ajustamento não tinham hora certa de começar nem acabar, durava mesmo o tempo de uma vida." 

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas de 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 607

Bluebird


"there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.

then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

Charles Bukowski. The Last Night of the Earth Poems. Santa Rosa CA: Black Sparrow, 1992

"há um pássaro azul em meu coração que
deseja sair
mas sou muito durão com ele,
eu digo, fique aí, não vou
deixar ninguém te
ver.

há um pássaro azul em meu coração que
deseja sair
mas eu derramo whisky nele e inalo
fumaça de cigarro
e as prostitutas, os garçons
e os balconistas de mercado
nunca sabem que
ele está
lá dentro.

há um pássaro azul em meu coração que
deseja sair
mas sou muito durão com ele,
eu digo,
fique escondido, você quer me
atrapalhar?
quer estragar os
trabalhos?
quer arruinar minhas vendas de livros na
Europa?

há um pássaro azul em meu coração que
deseja sair
mas eu sou muito esperto, só o deixo sair
algumas vezes à noite
quando todos estão dormindo.
eu digo, eu sei que você está aí,
então não fique
triste.

então o coloco de volta,
mas ele está cantando um pouco
lá dentro, eu ainda não o deixei
morrer
e nós dormimos juntos desse
jeito
com nosso
pacto secreto
e é belo o bastante para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?"

sábado, 14 de setembro de 2013

Noite morta



"Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.

Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...

(Não desta noite, mas de outra maior.)"

Manuel Bandeira (1886-1968). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 49

Um bicho



“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Manuel Bandeira (1886-1968). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 90

O major morreu



"O major morreu.
Reformado.
Veterano da guerra do Paraguai.
Herói da ponte do Itororó.
Não quis honras militares.
Não quis discursos.

Apenas
À hora do enterro
O corneteiro de um batalhão de linha
Deu à boca do túmulo
O toque de silêncio."

Manuel Bandeira (1886-1968). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 54

Chovia



"Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
pensando...
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei."

Manuel Bandeira (1886-1968). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 85

Foto: Manuel Bandeira (à esq.) e Carlos Drummond de Andrade

profundidades tranquilas


"Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas."

Manuel Bandeira (1886-1968). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 90

Foto: Manuel Bandeira (sentado, ao centro)

Belo


"Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou! – de tantas
estrelas cadentes

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia a dentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples."

Manuel Bandeira (1886-1968). Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 80

Dia dos mortos


"Amanhã que é dia dos mortos
Vai ao cemitério. Vai
E procura entre as sepulturas
A sepultura de meu pai.

Leva três rosas bem bonitas.
Ajoelha e reza uma oração.
Não pelo pai, mas pelo filho:
O filho tem mais precisão.

O que resta de mim na vida
É a amargura do que sofri.
Pois nada quero, nada espero.
E em verdade estou morto ali."

Manuel Bandeira. Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 60-1

Foto: da esquerda para a direita: Manuel Bandeira (1886-1968), Chico Buarque (1944-), Tom Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980)

Quando eu tinha seis anos



"Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João 
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues 
Tomásia
Rosa 
Onde estão todos eles?

– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente."

Manuel Bandeira. Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 58

Foto: à esquerda, Clarice Lispector (1920-1977), e à direita, Manuel Bandeira (1886-1968), no casamento da poetisa Marly Oliveira (1935-2007)

Tarde demais



"Quando um dia estiver morta 
e sobre mim caírem os adjetivos mais ternos, 
não vou mover um dedo 
de dentro do meu silêncio: 
vou desdenhar do eterno 
o que sempre chegou tarde, 
demais, quando já nem era preciso."

Marly Oliveira (1935-2007), na foto, no lançamento do seu livro "A suave pantera", com Grande Otelo (1915-1993)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

American history



"He talked about the Nazis and the war, and then he advanced the startling theory that Hitler's admiration of the United States had inspired him to use American history as a model for his conquest of Europe. Look at the parallels, Born said, and it's not as far-fetched as you'd think: extermination of the Indians is turned into the extermination of the Jews; westward expansion to exploit natural resources is turned into eastward expansion for the same purpose; enslavement of the blacks for low-cost labor is turned into subjugation of the Slavs to produce a similar result. Long live America, Adam, he said, pouring another shot of cognac into both our glasses. Long live the darkness inside us."

Paul Auster. Invisible. London: faber and faber, 2009, p. 45

Ser humilde


"Não será difícil ser humilde quando se é grande. Difícil é ser humilde quando se é medíocre. Como é fácil ser generoso quando se é rico e não quando se tem pouco."

Vergílio Ferreira (1916-1996), escritor português. Conta-corrente

Vida normal



"Pois e eu que durmo tão mal, dormi de oito da noite até seis da manhã. Dez horas: senti um orgulho pueril. Acordei com o corpo todo aumentado nas suas células. Ah, isso é vida normal, então? mas então é muito bom!

E eu que nunca fiz luxo para comer, andei há um tempo fazendo dieta para perder uns quilos a mais. Aí experimentei uma vida normal para comer. Andava exasperada como se outros estivessem comendo o que era meu. Então, de raiva e fome, de repente comi o que bem quis. E como é bom comer, dá até vergonha. E certo orgulho também, o orgulho de ser um corpo exigente. Ah que me perdoem os que não têm o que comer; o que vale é que esses não são os que me lêem."

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 196

Quando a noite fechar


"Têm cheiro especial
as bolas de carne cozinhando.
O cachorro olha pra gente
com um olho piedoso,
mas eu não dou.
Comida de cachorro é muxiba,
resto de prato.
Se lembro disto de noite
e estou sozinha no quarto
acho muito engraçado
e rio com estardalhaço:
a vida é mesmo uma pândega!
Dona Ló costurou pra dona Corina
que até hoje não pagou.
E bem que pode, já que exibe no lixo
papel higiênico Sublime,
que é do melhor e mais caro.
Mas os meninos se vingam:
có có có có có corina
có có có có có corina
sua roupa de baixo
tem catinga de urina.
O sol se põe intocado
atrás do morro onde ninguém nunca foi.
É brasa sua viva cor. Tem roxos,
uma angústia pendente
que sorvo em goles de antecipada saudade.
Quando a noite fechar,
dona Corina vai dormir com seu Lula,
homem sem fantasia,
que só faz as coisas de um jeito.
Dona Ló é viúva e dorme com Santa Bárbara
...
Ai, Deus, minha virgindade se consome
entre precisar de feijão,
pó de café e açúcar.
Tem piedade de mim."

Adélia Prado. O coração disparado (1978). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 166-7

Madrugada



"Outra pessoa que me telefonava de madrugada explicara que passava pela minha rua, via a luz acesa, e então me telefonava. No terceiro ou quarto telefonema disse-me que eu não merecia mentiras: na verdade o fundo da casa dele dava para a frente da minha e ele me via todas as noites. Como se tratava de oficial da marinha, perguntei-lhe se tinha binóculo. Ficou em silêncio. Depois me confessou que me via de binóculo. Não gostei. Nem ele se sentiu bem de ter dito a verdade, tanto que avisou que 'perdera o jeito' e não me telefonaria mais. Aceitei. Fui então à cozinha esquentar um café. Depois sentei-me no meu canto de tomar café, e tomei-o com toda a solenidade: parecia-me que havia um almirante sentado à minha frente. Felizmente terminei esquecendo que alguém pode estar me observando de binóculo e continuo a viver com naturalidade. Como vocês vêem isto não é coluna, é conversa apenas. Como vão vocês? Estão na carência ou na fartura?".

Clarice Lispector. A descoberta do mundo (crônicas, 1967-1973). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 194

Campo-santo


"Na minha terra
a morte é minha comadre.
Subo a rua Goiás, atrás de coisas miúdas,
um chinelo, uma travessa, uma bilha nova,
e à medida que subo, mais chego perto do campo
onde dormem sem sobressaltos
o pai, a mãe, a irmã, a menina que no segundo ano
se chamava Teresinha.
A grande tarefa é morrer.
Até lá rondo os muros
e em qualquer parte da cidade oriento-me
pela mão estendida do Cristo de mármore preto
do túmulo do coronel.
No cemitério é bom de passear.
A vida perde a estridência,
o mau gosto ampara-nos das dilacerações.
A gradinha de ferro defende o exíguo espaço,
onde mais exíguos os ossos se confinam,
ossos que andaram, apontaram e voltaram a cabeça
e sustentaram a língua e os olhos e fizeram o arcabouço
para a voz sob o sol: 'santo remédio, erva-de-bicho, dá na beira do rio'. O mistério não me fulmina
porque a inscrição tem erros e no túmulo de Maria Antônia
– que morreu por mão do marido –
os pedidos maiores são de emprego.
Enegrecidas de chuva e velas,
adornadas de flores sobre as quais
sem preconceito as abelhas porfiam,
a vida e a morte são uma coisa só.
Se um galo cantar e for domingo,
será tanta a doçura que direi:
vem cá, meu bem, me dá sua mão,
vamos dar um passeio,
vamos passar na casa de tia Zica
pra ver se Tiantônio melhorou.
Ressurgiremos. Por isso
o campo-santo é estrelado de cruzes."

Adélia Prado. O coração disparado (1978). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 173