sexta-feira, 20 de março de 2015

Kate Gombert

"E o cara velhusco estendia uma trêmula mão espalmada bem embaixo da cara de Kate Gombert, como se quisesse que ela vomitasse ali. A palma era violeta, com manchas de algum tipo de podridão quiçá micótica, e com negras linhas ramificadas onde as róseas linhas da palma das mãos das pessoas que não moram numa lixeira normalmente estão, e Kate ficou examinando distraída aquela palma..."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 731

Um homem catava pregos no chão



"Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais – o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter."

Manoel de Barros (1916-2014). Poesia Completa. São Paulo: LeYa, 2013, p. 381

A loucura do vício



"(...) o negócio é que ele tinha mulher e uma filhinha em casa no Conjunto Habitacional de Perry Hill em Mattapan, e outro bebê por chegar. Ele tinha dado um jeito de não perder o seu empreguinho ancilar de assistente de rebitador nas Arquibancadas Universal logo ali na esquina em Enfield porque o vício dele em cocaína tipo crank não era coisa de todo dia; ele fumava tipo aos montes, mas basicamente só no fim de semana. Mas fumava que nem um psicopata endiabrado que quisesse detonar toda a conta bancária. Era que nem se amarrar num míssil da Raytheon e aí você só para quando o míssil parar, Jim. Ele diz que a mulher dele quebrava um galho de faxineira, mas quando ela trabalhava eles tinham que pôr a menininha numa creche que praticamente comia o salário dela. Então o ordenado dele era tipo a grana toda que eles tinham e esses surtos de fim de semana com o cachimbo de vidro lhes causavam tudo quanto era Insegurança Financeira, que ele pronuncia errado. O que o leva ao seu último surto, o Fundo, que, previsivelmente, ocorreu no dia de receber o salário. O cheque dele simplesmente 'tinha' que ir para compras e aluguel. Eles estavam dois meses atrasados, e não tinha porra nenhuma para comer na casa. Numa pausa para um cigarrinho na Arquibancadas Universal ele tinha cautelosamente comprado só uma dose, só dez paus, pra um consolinho de domingo à noite depois de um fim de semana de abstinência, compras e de tempo passado com a esposa grávida e a filhinha. A esposa e a filhinha iriam encontrá-lo depois do trabalho bem no ponto de ônibus do Brighton Best Savings, bem embaixo do relogião, para 'ajudar' ele a depositar o salário ali mesmo. Ele tinha deixado a esposa combinar o encontro no banco porque sabia de um modo autoenojado mesmo naqueles dias que havia esse risco de incidentes que envolviam o salário graças a surtos de consumo em que ele tinha mergulhado no passado, e a Insegurança Financeira deles agora já era sei lá uma palavra que seja pior que 'fodida', e ele sabia bem pra 'caralho' que não podia ferrar com tudo dessa vez.

Ele diz que era assim que ele pensava nisso quando pensava sozinho: ferrar com as coisas. 

Ele nem chegou ao ônibus depois de bater cartão, ele disse. Dois outros Chagados da rebitagem tinham três doses cada um, doses essas que eles ficaram 'sacudindo' na cara dele. (...) Em resumo foi a loucura de sempre de dinheiro no bolso e nenhuma defesa contra as pulsões, e a ideia da mulher dele com a menininha deles com aquele gorrinho e aquelas luvinhas de crochê paradas embaixo do relogião no gélido crepúsculo de março não foi nem empurrada de lado mas como que encolheu até virar um retrato tamanho-camafeu no centro da parte dele que ele e os Chagados estavam aplicadíssimos em matar com o cachimbo."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 724

Codeína

"Ninguém tinha lhe oferecido comida, mas ele não estava com fome. Havia tubos de soro entrando nas costas das mãos dele e na dobra do cotovelo esquerdo. Outra tubulação lhe saía de um ponto mais lá embaixo. Ele não queria saber. Ficava tentando perguntar ao seu coração se só uma codeína seria uma recaída, na opinião do coração, mas o coração dele estava se negando a responder."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 836

Míni Ewell

"Gately queria dizer pro Míni Ewell que ele se Identificava total, pra caralho, com os sentimentos de Ewell, e que se ele, o Míni, pudesse só segurar a onda, puxar esse fardo e colocar um sapatinho bem engraxado na frente do outro tudo ia acabar superbem, que o Deus conforme Ewell o Compreendia ia dar um jeito de Ewell ajeitar as coisas, e aí ele ia abandonar esses sentimentos desprezíveis em vez de ficar submergindo tudo com uísque, mas Gately não conseguia ligar o impulso de falar à fala propriamente dita, ainda. Ele achou melhor só tentar estender a mão esquerda e dar uns tapinhas na mão de Ewell sobre a grade."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 834

aquela coisa negra da minha personalidade



"Eu forjei elaborados extratos bancários pra mostrar pro clube no banco de reservas. Fiquei mais loquaz e mais imperioso com eles. Nenhum dos caras pensou em me questionar o pincel atômico roxo com que os extratos vinham escritos. Eu não estava lidando com gigantes intelectuais aqui, eu sabia. Eles eram só malícia e músculos, a fina flor da ralé da escola. E eu mandava geral. Vassalos. Eles confiavam totalmente em mim, e no talento retórico. Pensando bem eles provavelmente não conseguiam nem imaginar que um aluno sensato da terceira série, de oclinhos e gravata, ia tentar passar a perna neles, dadas as consequências inevitavelmente violentas. Um aluninho 'sensato' de terceira série. Mas eu não era mais um aluninho sensato de terceira série. Eu vivia só pra alimentar aquela coisa negra da minha personalidade, que me dizia que toda e qualquer consequência poderia ser evitada pelo meu dom e pela minha aura pessoal grandiosa."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 830

sexta-feira, 13 de março de 2015

Imortais



"Gately se tocou que gente de uma certa idade e de um certo nível de tipo experiência na vida acha que é imortal: universitários e alcoólicos/viciados são os piores: eles acreditam bem no fundo que estão isentos das leis da física e das estatísticas que ferreamente governam todas as outras pessoas. Eles resmungam e reclamam até você ficar enjoado se alguém foder com as regras, mas bem no fundo eles não se consideram sujeitos a elas, às mesmas regras. (...) É invariável e meio estraga-humor para um Funcionário ver que a única forma de um viciado um dia aprender alguma coisa é na porrada."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 618

Objetivo


"...é que você atinge o objetivo e percebe a chocante percepção de que atingir o objetivo não completa nem redime você, não deixa tudo em sua vida 'OK' como, em sua cultura, você é educado para presumir que vai, o objetivo, fazer isso. E aí você enfrenta esse fato de que o que você tinha achado que ia ter o sentido não tem o sentido quando consegue, e você é empalado pelo choque. Nós vemos suicídios na história das pessoas nesses pináculos..."


David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 696

Solidão


"O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres. E um dia, ao percebermos que suas ocupações são mesquinhas, que suas profissões são enrijecidas e não estão mais ligadas à vida, por que não olhar para eles como uma criança observa algo de estranho, partir da profundeza do próprio mundo, da amplitude da própria solidão, que é ela mesma um trabalho, um cargo e uma profissão?"


Rainer Maria Rilke (1875-1926). Cartas a um jovem poeta

Ruth van Cleve

"Primeiro dia da srta. Ruth van Cleve fora da Restrição Doméstica de três dias dos residentes novos. Agora com direito de ir a reuniões fora de Enfield desde que acompanhada por algum residente mais veterano que os Funcionários considerem seguro. Ruth van Cleve de salto agulha caminhando ao lado de uma Kate Gombert psicoticamente deprimida na Prospect logo ao sul da Inman Square, Cambridge, um pouco depois das 2200h, matraqueando sem parar.

Ruth van Cleve está se revelando um puta pé-no-saco para Kate Gombert. Ruth van Cleve é de Braintree na South Shore, está muitos quilos abaixo do peso, usa um batom cor de latão e tem um cabelo seco que ela ergue segundo a moda do cabelão de décadas atrás. O rosto dela tem a aparência insétil e côncava dos viciados terminais em Ice. Seu cabelo é uma nuvem seca emaranhada, com olhos e ossos minúsculos e um biquinho se projetando por baixo. Joelle v. D. tinha dito que quase parecia que a cabeça de Ruth van Cleve é que crescia no cabelo em vez do contrário. O cabelo de Kate Gombert parece cortado a faca e tem uma cor reconhecível, pelo menos."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 714

O Grande Tubarão Branco da dor


"...o vazio inerte não é o pior tipo de depressão. A anedonia de olhos mortos é apenas a rêmora do flanco central do verdadeiro predador, o Grande Tubarão Branco da dor. As autoridades chamam essa situação de 'depressão clínica' ou 'involucional', ou 'transtorno disfórico unipolar'. Ao contrário de apenas uma incapacidade de sentir, um amortecimento da alma, a depressão calibre-predador que Kate Gombert sempre sente quando entra em Abstinência da marijuana secreta é 'ela' própria uma sensação. Ela recebe muitos nomes – 'angústia', 'desespero', 'tormento', ou p. ex. a 'melancholia' de Burton ou a mais oficial 'depressão psicótica' de Yevtushenko – mas Kate Gombert, entrincheirada na batalha, a conhece apenas como 'Aquilo'.

'Aquilo' é um nível de dor psíquica totalmente incompatível com a vida humana como a concebemos. 'Aquilo' é uma sensação de um mal radical e onipresente não só como característica mas como a essência da existência consciente. 'Aquilo' é uma sensação de envenenamento que toma todo o eu nos seus níveis mais elementares. 'Aquilo' é uma náusea das células da alma. 'Aquilo' é uma intuição ininerte em que o mundo é plenamente rico e dotado de ânimo e não mapístico e também completamente doloroso, maligno e antagônico ao eu, eu deprimido este em torno do qual 'Aquilo' se enfuna e se coagula e que envolve em suas pregas negras e absorve completamente, de modo que se atinge uma unidade quase mística com um mundo que em cada partícula sua deseja o mal e a dor do eu. O caráter emocional d''Aquilo', a sensação que Gombert descreve que 'Aquilo' é, é provavelmente praticamente indescritível a não ser como uma espécie de beco-sem-saída lógico em que qualquer/todas as alternativas que associamos à ação humana – sentar ou ficar de pé, fazer ou repousar, falar ou ficar calado, viver ou morrer – são não apenas desagradáveis mas literalmente horríveis."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 711

A queda



"A pessoa dita 'psicoticamente deprimida' que tenta se matar não o faz por entre aspas 'desesperança' ou por qualquer convicção abstrata de que os ativos e os débitos da vida não batem. E certamente não porque a morte pareça subitamente atraente. A pessoa em que a agonia d''Aquilo' atinge um certo nível insustentável vai se matar exatamente como uma pessoa encurralada vai acabar pulando da janela de um arranha-céu em chamas. Não se iluda sobre as pessoas que pulam de janelas em chamas. O pavor que elas têm de cair de grandes alturas ainda é tão grande quanto seria para você ou para mim ali parados especulativamente na mesma janela só dando uma olhada na vista; ou seja, o medo de cair é uma constante. A variável aqui é o outro terror, as chamas do incêndio: quando as chamas chegam perto demais, cair para a morte se torna um terror algo menos terrível que o outro. Não é desejar a queda; é o pavor das chamas. No entanto ninguém que esteja lá na calçada, olhando para cima e gritando 'Não faça isso!' e 'Força!' entende o salto. No fundo. Você teria que ter estado pessoalmente acuado e sentindo as chamas para entender de verdade um terror bem maior que a queda."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 712

O Porco Medonho


"Geoffrey Day percebeu que a maioria dos residentes homens da Ennet tem cognomezinhos especiais para a genitália. P. ex. 'Bruno', 'Jake', 'Presa' (Minty), 'O Monge Caolho', 'Fritz', 'Nicanor o Músculo do Amor'. Ele especula que pode ser uma coisa de classe social: nem ele nem Ewell nem Ken Erdedy deram nome para suas Unidades. Como Ewell, Day registra uma certa quantidade de dados de natureza comparativa no seu diário. Doony Glynn chamava o pênis de 'Pobre Ricardinho'; Chandler Foss confessou adotar o apelido 'Bam-Bam'. Lenz se referia à própria Unidade como 'O Porco Medonho'. Day ia morrer antes de admitir que sentia falta ou de Lenz ou de seus solilóquios sobre o Porco, que eram frequentes. O pênis em questão era aqueles curiosos dois ou três tons mais escuro que o resto de Lenz que os pênis das pessoas às vezes são. Lenz brandia aquilo para os colegas de quarto sempre que queria enfatizar algo que dizia. Era curto, grosso e rombudo, e Lenz descrevia o Porco como um exemplo cabal do que ele chamava de Praga Polonesa, a saber, comprimento medíocre mas circunferência considerável: 'Não machuca o fundo mas detona com as laterais, mano'. Era essa a descrição dele da Praga Polonesa."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 708

Anedonia

"Alguns pacientes psiquiátricos – fora uma certa percentagem de pessoas que ficaram tão dependentes de químicos para obter sensações de bem-estar que quando é necessário abandonar os químicos elas passam por um trauma-de-perda que cala bem fundo nos sistemas centrais da alma – essas pessoas sabem de primeira mão que há mais de um tipo da dita 'depressão'. Um tipo é coisa-pouca e às vezes é chamado de 'anedonia' ou 'melancolia simples'. É uma espécie de torpor espiritual em que você perde a capacidade de sentir prazer ou afeição por coisas anteriormente importantes. O ávido jogador de boliche larga o campeonato e fica em casa à noite encarando inerte uns cartuchos de kick-boxe. O comilão perde o apetite. O sexual descobre que sua amada Unidade de repente é só um pedaço de cartilagem sem sensações, só pendurado ali. A esposa e mãe devotada acha a ideia da família dela tão comovente, de repente, quanto um teorema de Euclides. É um tipo de xilocaína emocional, essa forma de depressão, e por mais que não seja francamente doloroso esse amortecimento é desconcertante e... enfim, deprimente. Kate Gombert sempre pensou nesse estado anedônico como uma espécie de abstração radical de todas as coisas, um ocamento das coisas que antes tinham conteúdo afetivo. Termos que os não deprimidos soltam a três por quatro e dão de barato como coisas plenas e carnudas – 'felicidade', 'joie de vivre', 'preferência', 'amor' – são despidos até virarem apenas esqueletos e reduzidos a ideias abstratas. Eles têm, por assim dizer, denotação mas não conotação. A pessoa anedônica ainda consegue falar de felicidade e sentido e tal, mas se tornou incapaz de sentir qualquer coisa nessas palavras, de entender algo nelas, de ter alguma esperança em relação a elas ou de acreditar que elas existem como qualquer outra coisa além de conceitos. Tudo se torna um contorno da coisa. Objetos viram esquemas. O mundo vira um mapa do mundo. Uma pessoa anedônica navega, mas não tem localização."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 708

sexta-feira, 6 de março de 2015

Cansaço da alma



"Este longo cansaço se fará maior um dia,
e a alma dirá ao corpo que não quer seguir
arrastando sua massa pela rosada via,
por onde vão os homens, contentes de viver…"


Gabriela Mistral (1889-1957), poeta chilena

Lenz e o gato

"Na tarde de hoje antes de agora coisa de 1610h Lenz tinha espirrado spray de cabelo masculino marca RIJID na cara de um gato vira-latas caolho da Casa Ennet que tinha entrado por azar dele no banheiro masculino do primeiro andar, mas o resultado: insatisfatório. O gato simplesmente tinha corrido para o térreo, e só deu uma topada na balaustrada. Lenz aí ficou com diarreia, coisa que sempre deixa ele com nojo, e teve que ficar no banheiro, abrir a janelinha empenada de vidro jateado e ligar o chuveiro no F até eliminar os indícios do cheiro, com o merda do Glynn esmurrando a porta e atraindo a atenção berrando tipo quem que estava afogando ganso ali aquele tempo todo e se por acaso não é o Lenz."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 567

Malucos de estrada



"Eu gosto de viajar sozinha. Acho que todo mundo tem que pelo menos uma vez em sua vida viajar sozinho. Porque é uma experiência única PARA VOCÊ, que você não tem que compartilhar, é algo muito pessoal. Se você consegue fazer isso, cresce, de uma maneira ou outra, cresce...".

"Se você não tiver a vocação, velho, e a segurança individual, você se adapta. Você vai agir como todo mundo age. E se você tiver a índole de agir de maneira própria, você fica angustiado, cara, e não vai entender a sua angústia. 'Pô, tô exercendo minha profissão, tô ganhando dinheiro, mas eu sinto uma angústia...'. Você não localiza, porque você se submeteu ao que não é você, não é da sua índole, você só tá fazendo porque todo mundo faz. Isso é um sacrifício, velho, é um sofrimento. Aí nêgo vai pro antidepressivo, vai no psicólogo, que dá a ele um mecanismo pra ele se adequar. O psicólogo nunca vai dizer 'Não, essa estrutura em que você tá vivendo, da sociedade, violenta você de tal maneira que você entra nesse desequilíbrio, você tem que se livrar dessa estrutura', não, ele faz o contrário: 'Você tá com dificuldade de se adequar à estrutura vigente, então vou te dar um exercício mental, um exercício respiratório, e um remedinho, pra você se adequar e entrar na fila'. O problema todo tá na estrutura da sociedade e no que ela nos impõe."

Uma ideia a cada sessenta segundos



"Depois da fase inicial tipo hamster-alucinado-dentro-do-cérebro do começo da Abstinência e da desintoxicação, Bruce Green agora voltou a seu estado cerebral psicorreprimido normal em que tem cerca de uma ideia plenamente desenvolvida a cada sessenta segundos, e só uma de cada vez, uma ideia, cada uma delas se materializando totalmente desenvolvida e ficando ali paradinha e aí sumindo como num lânguido monitor de cristal líquido. O conselheiro dele na Ennet, o extremamente ríspido Calvin T., reclama que ficar ouvindo o Green é como ouvir uma torneira que pinga muito lentamente. O resumo da ópera dele é que Green não parece sereno ou desconectado da realidade mas totalmente desligado, desassociado, e Calvin T. tenta semanalmente fazer Green se ligar deixando ele puto."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 595

terça-feira, 3 de março de 2015

Dor sóbria



"...rola uma dor pesada na sobriedade, você descobre, depois de um tempo. Aí agora que você está limpo e nem tem mais muita vontade de ingerir Substâncias e está querendo chorar e pisotear alguém até fazer patê, por causa da dor, esses AAs de Boston começam a te dizer que você está exatamente onde devia estar e a te dizer pra lembrar da dor sem sentido do vício ativo e a te dizer que pelo menos essa dor sóbria agora serve pra alguma coisa. Pelo menos essa dor significa que você está indo a algum lugar, eles dizem, em vez da repetitiva rodinha-de-hamster da dor do vício."


David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 457

Chef Gately



"Gately é uma escolha imprevista para chef de cozinha da Casa Ennet, já que viveu os últimos doze anos quase exclusivamente de sandubas de segunda e de comidas prontas consumidas sempre em movimento. Ele tem 188 centímetros, 128 quilos e nunca tinha comido brócolis ou uma pera até o ano passado. Cheficamente, ele oferece sem exceção uma rotina de: salsicha cozida; um bolo de carne denso e úmido com pedacinhos de queijo de supermercado e meia caixa de flocos de milho em cima, para dar aquela textura; sopa de creme de galinha sobre macarrõezinhos em formato de espiroqueta; coxas de galinha pré-temperadas ominosamente escuras e ressecadas; hambúrgueres nojentinhamente malpassados; e espaguete com molho de hambúrguer cuja massa ele ferve por quase uma hora. Só os mais safos residentes da Ennet arriscariam uma gracinha declarada sobre a comida que aparece toda noite em cima da longa mesa de jantar ainda nas imensas panelas fumacentas em que foi feita, com o rostão de Gately pairando lunar sobre elas, vermelho e molhado sob o chapéu moloide de chef que Annie Parrot tinha lhe dado como uma piada cruel que ele não havia entendido, com os olhos cheios de ansiedade e da esperança de que todos gostassem bastante, basicamente parecendo uma noiva nervosa que serve seu primeiro prato ao marido, só que as mãos dessa noiva são do mesmo tamanho dos pratos da Casa e têm tatuagens de presidiário, e essa noiva ao que parece não precisa de luvas de forno quando coloca as panelas imensas sobre os panos que precisam ser estendidos para evitar que o tampo de plástico da mesa derreta. Quaisquer comentários culinários têm sempre que ser extremamente oblíquos."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 480

Uma cama que range


"Meu pai girou no eixo dos joelhos, impulsionou o corpo, saiu do colchão, pôs a mão na lombar e se endireitou, continuando a olhar para o colchão.

'Essa porra dessa cama do caralho que sua mãe achou que tinha que manter e trazer com a gente pra cá pelo entre aspas valor sentimental começou a ranger', meu pai disse. O fato dele dizer 'sua mãe' indicava que ele estava se dirigindo a mim. Ele estendeu a mão para pedir o copo de suco de tomate sem precisar me olhar. Ele encarava sombriamente a cama. 'A gente está ficando louco com essa merda.'

Minha mãe equilibrou o cigarro no cinzeiro estreito, largou o cinzeiro no parapeito da janela, se curvou sobre o pé da cama, comprimiu o ponto que meu pai tinha isolado, que rangeu de novo. 

'E de noite esse único pontinho que nós isolamos e identificamos parece que se espalha e se metastatiza até a porra da cama inteira ficar entupida de rangidos.' Ele bebeu um pouco de seu suco de tomate. 'Áreas que tagarelam e rangem', meu pai disse, 'até nós dois acharmos que estamos sendo comidos por ratos.' Ele passou a mão pela linha do queixo. 'Hordas fervilhantes de ratos de rapina ruidosos rangentes e tagarelantes', ele disse, quase tremendo de irritação."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 504

Tavis

"Para Hal, a questão geral com o seu tio materno é que Tavis é terrivelmente tímido perto dos outros e tenta esconder esse fato sendo muito aberto, expansivo, palavroso e áspero, e que é torturante ver isso de perto. A visão de Mario é que Tavis é muito aberto, expansivo e palavroso, mas tão claramente emprega essas qualidades como uma espécie de escudo protetor que isso acaba traindo uma vulnerabilidade amedrontada de que é quase impossível não ter pena."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 529

Randy Lenz



"Randy Lenz descobriu que se conseguir chegar perto o bastante de um gato urbano com um pouco de atum estendido na mão ele consegue meter o saco por cima do bicho e catar aquilo tudo por baixo para o gato ficar no ar e no fundo do saco, e aí conseguia amarrar bem direitinho o saco com o araminho de torcer que vinha junto com cada saco. Ele podia colocar o saco fechado perto do muro ou cerca ou da lixeira mais setentrionais da vizinhança e acender um careta e se agachar perto do muro para ficar assistindo à variedade de formas mutáveis que o saco assumia enquanto o gato agitado ia ficando com menos ar. As formas ficavam cada vez mais violentas e retorcidas e em-pleno-ar com a passagem de um minuto. Depois que ele parava de assumir formas Lenz punha um dedo salivado na ponta da bituca para guardar o resto para mais tarde, levantava, soltava o araminho, olhava para dentro do saco e dizia: 'Isso'. O 'Isso' acabou se revelando crucial para a sensação de estilhaçamento, resolução e finalização de problemas de fúria impotente e medo ineficaz que tipo iam crescendo em Lenz o dia inteiro por ficar preso nas porções nordeste de uma casa de recuperação miserável o dia inteiro com a vida em risco, Lenz se sentia."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 553

O Green

"Ele diz que foi derrubado pela vida, e só vai dizer isso, pessoalmente. O Green. A vida encheu ele de porrada, e ele está reagrupando as tropas. Lenz gosta dele, e é sempre como se o medo que ele sente quando gosta de alguém fosse uma lasca de unha pendurada, que não cai. É como se alguma coisa terrível fosse acontecer a qualquer momento. Menos medo que um tipo de tensão na região da barriga e da bunda, um aperto no corpo todo. Decidir ir em frente de uma vez e decidir que alguém é boa gente: é como se você derrubasse alguma coisa, você desiste de todo o seu poder sobre aquilo: tem que ficar ali impotente esperando que ela venha ao chão: a única coisa que dá pra você fazer é se segurar e sentir o aperto. Lenz meio que fica puto por gostar de alguém."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 567