domingo, 29 de janeiro de 2012

O despotismo do bom senso

Abro "O Idiota", de Dostoiewski, que tanto me deslumbrou outrora. Insensivelmente uma pergunta me vem ao pensamento: que é o senso, o bom senso? A capacidade de se adaptar ao nível comum em que todos vivem. Neste caso, os que não podem, os que possuem arestas que não se adaptam às engrenagens da realidade comum, serão loucos simplesmente? Ou há um nome especial para esta exaltação, este sentimento de impotência e ao mesmo tempo de plenitude?

Ah, como sinto, como vejo, como percebo a ausência de Jesus Cristo - o nome assim atirado fere a página, estremece, lacera a terra morna do hábito, acostumada à visão materialista das coisas...

(...)

O espírito cristão é exatamente a loucura, a falta de senso. Ao longo do tempo, como vimos perdendo suas linhas essenciais, seus ensinamentos, sua própria figura!

(...)

Foi Ele, não há dúvida, foi Jesus Cristo quem mais se insurgiu contra a dura tirania da realidade, o despotismo do bom senso e da complicada maquinaria dos fatos comuns. Penso um minuto, rapidamente, no sistema burocrata tão pateticamente denunciado por Kafka, através dos seus funcionários, juízes, escriturários: há nele uma espantosa imagem do inferno. O funcionalismo público, com suas redes de controle e seu sistema de mecanização, é uma das mais perfeitas invenções do diabo. Que louve, quem quiser louvar, esta mentira trágica do poeta funcionário: este monstro esvaziado de sua verdadeira essência é a última invenção de Satanás para planificar o mundo e reduzir-lhe o espírito poético. O poeta funcionário é um escárnio só admissível no mundo aterrorizante de hoje, é o toque final do diagrama da decomposição, o fêcho, o cimo da obra de abastardamento e de diminuição dos valores maiores que a nossa época assiste sem defesa.

Por esse processo de eleição de valores que nos trucidam e que nos matam é que esquecemos a doença que o Cristo representa, seu perpétuo embate contra o sono e as forças passivas do senso comum.

Lúcio Cardoso, Diário I (1949-1951). Editora Elos: Rio de Janeiro, p. 198-9.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Partir

O jovem Pierre acordou às três da madrugada, todo molhado de suor, apesar do frio intenso que invadia o seu quarto pelas frestas da janela em rajadas de vento e neve.

Enrolou-se num pesado casaco de lã e foi alimentar o fogo na lareira.

Às quatro horas ele daria início à limpeza do cadafalso, pois antes mesmo do nascer do sol haveria uma nova execução, seguida de outras trinta, naquele dia sombrio de inverno do ano de 1793, em Paris.

Esfregou vagarosamente as mãos sobre o fogo que ardia e estalava num dos cantos do quarto, pensando nas expressões de espanto, desespero, ódio, angústia, medo e também de indiferença e resignação que tantas vezes ele vira nos rostos dos condenados minutos antes da lâmina da guilhotina cortar fora as suas cabeças. Algumas rodopiavam no ar antes de cair na cesta de vime que ficava no chão, próximo ao patíbulo. Outras, maiores, mais redondas e gordas, caíam como jacas maduras ou pesados queijos Roquefort, sem muita acrobacia, produzindo, ao atingir o fundo da cesta, um baque só um pouco mais audível que o de uma cabeça menor. Outras, porém, devido ao formato do crânio e da face, ou talvez em decorrência de uma contração muscular mais forte no pescoço do condenado, além de rodopiarem várias vezes no ar, saltavam dos troncos com tanta força, que caíam fora da cesta até dois ou três metros adiante, para delírio da multidão que se aglomerava ao redor da guilhotina.

O que pensavam os infelizes naquela hora? O que passava pelas suas cabeças nos segundos que antecediam a decapitação? O que eles sentiam no momento em que a lâmina ceifava a carne e os ossos dos seus pescoços? E no segundo seguinte, quando a cabeça, já separada do tronco, caía ao chão?

“Tenho que ir”, disse para si mesmo o jovem Pierre, enquanto comia um pedaço de queijo e se dirigia à saída, espantando com o pé esquerdo uma enorme ratazana que seguia lentamente pelo corredor.

Lá fora o frio era cortante, mas Pierre estava bem agasalhado; e também aquele não era o seu primeiro inverno como trabalhador pobre nas madrugadas escuras e geladas de Paris.

Quando ele chegou à praça onde se erguia o cadafalso, o vento soprava preguiçosamente alguns pequenos flocos de neve, castigando-lhe a face desprotegida, que ardia e queimava de frio. Havia neve depositada no chão de terra batida, mas não em quantidade suficiente para esconder as marcas de sangue deixadas por algumas cabeças que tinham sido lançadas ao solo, como balas de canhão, no dia anterior. A lâmina encontrava-se também com manchas e respingos escuros de sangue coagulado e congelado, assim como a parte do estrado que ficava próxima ao local de decapitação.

Seu trabalho era limpar tudo aquilo até a chegada da carroça que traria o primeiro condenado do dia, juntamente com uma multidão de curiosos, que se deliciava com cada espetáculo do Terror.

Começou a limpeza pela lâmina, que ele esfregou com força até que todos os resíduos de sangue desaparecessem, tomando muito cuidado para conservar intactos os seus dedos que, mesmo enluvados, tremiam de frio. Depois começou a esfregar o chão do estrado, cujas manchas resistiam mais à escova e ao sabão. Mas foi interrompido pela chegada de um amigo, que subiu a escada sorrindo, meio cambaleante, como se acabasse de sair de uma festa.

"Olá, Pierre", disse o amigo.

“Olá, Henri!”, respondeu Pierre, levantando-se lentamente e afastando com o pé o balde e a escova para o amigo passar.

“Pierre, meu caro... Não tenho muito tempo para você hoje. Aliás, em breve não terei tempo para mais nada. Só vim para te esclarecer uma dúvida que, na última vez que nos encontramos, neste mesmo cadafalso, você começou a me explicar, mas não terminou, porque fomos interrompidos pela chegada da carroça, lembra?”.

“Claro que me lembro!”, disse Pierre empolgado, com os olhos pregados no rosto pálido do amigo, que perguntou: “E então?”.

Em resposta, Pierre reformulou a sua dúvida: “Naquele dia, o que eu queria saber era se a cabeça, separada do tronco, logo após o encontro da lâmina com o pescoço, tem consciência de que ela se encontra decapitada”.

Henri passou a mão direita em seu pescoço nu, seguindo com os dedos o contorno de uma linha avermelhada e grossa que o rodeava como um cordão apertado, e respondeu:

“Como eu mantive os olhos abertos, pude ver uma parte do estrado e também a cesta de vime, que ficava ali embaixo. Ouvi as pessoas gritando e também o assobio da lâmina que descia veloz. Naquele momento, a única imagem que me veio à mente foi a do meu filho de dois anos correndo e brincando no pátio da nossa casa, feliz, enquanto eu lia um livro de M. de Voltaire. Mas quando a lâmina separou minha cabeça do tronco, no exato momento do corte, tanto a imagem reconfortante da memória quanto a da terrível realidade desapareceram, para no mesmo instante darem lugar a um turbilhão de imagens confusas, mas que eu pude identificar como sendo o céu, o sol, as pessoas, os prédios, o chão, tudo em movimento, girando, girando velozmente, até eu ver, numa espécie de fixidez instável – como se eu estivesse bêbado –, os pés de uma enorme multidão”.

“Mas e depois?”, perguntou Pierre, os olhos brilhando de curiosidade.

“Depois, no instante seguinte, eu vi uma luz, uma luz branca que brilhava intensamente à minha frente, e eu estava de pé, com a cabeça de volta ao tronco, sem dor, sem medo, sentindo uma espécie de chamado, um chamado silencioso, vindo da luz. Mas eu não queria entrar. Eu lutei, desvencilhei-me daquele campo de forças com determinação... gritei que não, que não... E aqui estou eu: um morto que vaga pela cidade, e que é visto por alguns, como você, que possuem um dom especial que eu ainda não sei explicar...”.

Henri fez uma breve pausa, enquanto olhava o vazio, e continuou:

“Mas como eu disse, não dá mais para ficar. Vou me entregar. Eles já me procuram, me cercam, tentam uma aproximação... Vou me entregar, Pierre... vou partir, como muitos outros partiram... Partir...”.

Silêncio.

Os dois amigos se olharam, preparando-se para um abraço fraterno, quando, de repente:

“A carroça”, disse Pierre, levantando os olhos em direção à avenida. No segundo seguinte, voltando-se novamente para o amigo:

“Henri...”.

Mas ele já tinha partido.

Flávio Marcus da Silva

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Pombos

Numa ensolarada tarde de sábado, quando voltavam de um passeio pelo bairro, o jovem professor e sua esposa viram dois pombos cinzentos se esfregando no telhado de sua nova residência, bem em cima da garagem. Naquele dia, o jovem casal não percebeu a dimensão hitchcockiana do problema que em breve eles teriam que enfrentar.

Dois pombinhos de namorico no telhado de uma casa. Que problema há nisso?

Concordo que pode até ser agradável receber de vez em quando a visita de uma dessas aves em casa, ou talvez até tê-la como hóspede definitivo em algum canto do telhado, onde ela pode fazer seu ninho e viver em paz com seus filhotes. (Algumas são até muito bonitas, com suas plumagens em tons brilhantes de cinza, preto e verde). Se fosse só isso – e para corrigir o exagero que eu cometi acima ao empregar a palavra “agradável” – eu diria que seria até suportável. Mas quando o substantivo é “pombo’, não há na sintaxe do discurso que lhe serve nenhum espaço para o advérbio “poucos”. Não existe UM pombo em nenhum telhado do mundo. Se há pombos no seu ou em qualquer outro telhado, eles são muitos, dezenas, centenas, e se reproduzem como ratos, e comem e cagam e fedem como ratos.

Parece que isso nem sequer passou pela cabeça dos dois novos moradores do bairro, pois ao entrarem pelo portão e notarem os dois pombinhos num dos cantos do telhado, eles apenas sorriram um para o outro e entraram na casa, como se flutuassem no ar. E quem tivesse testemunhado de perto aqueles sorrisos e soubesse ler o que se escondia por trás deles, certamente entenderia o motivo da pouca importância que os recém-chegados deram à presença ameaçadora de um casal de pombos em seu telhado – uma imagem que, para ambos, naquele momento, significou o prenúncio do que eles próprios planejavam fazer na cama logo em seguida: dois pombinhos recém-casados, sem filhos e com menos de trinta anos, quando chegam em casa e têm como recepção dois outros pombinhos em plena Lua de Mel só podem pensar mesmo em se empoleirarem na cama e mandarem ver.

Por isso não posso afirmar que o motivo deles não terem estranhado aquela presença alada no telhado, nem tampouco olhado um para o outro com aquele olhar característico de “problema à vista”, fosse a ignorância pura e simples. O mais provável é que, naquele momento, ambos tenham sido desviados da razão pelos hormônios do desejo, que, no início de qualquer casamento convencional, permitem até associações de imagens românticas – óbvias demais, temos que concordar –, como aquelas: um casal de pombos namorando no telhado // um ninho de amor à espera de dois jovens apaixonados, encantados com o início do casamento.

Na tarde seguinte, porém, a associação de imagens foi outra. (Se é que podemos chamá-la de associação de imagens. Talvez melhor seria a percepção de uma semelhança macabra, que significava, naquele momento, um aviso).

Mas, como eu ia dizendo, na tarde seguinte, o olhar do jovem professor foi outro – talvez por não estar numa veia romântica em pleno domingo, com três pacotes de provas para corrigir –, quando viu, ao entrar, sete pombos se acariciando ao redor da caixa d’água.

Aqui cabe um parêntese para explicar que a caixa d’água em questão foi projetada por uma renomada arquiteta para ser um elemento de harmonia no conjunto da fachada da casa: uma combinação de curvas e retas que, no entanto, logo perdeu a simetria planejada para se tornar um mostruário de outras peças decorativas (estas inoportunas e invasoras), cujas características principais, como sabemos, são três: voarem, defecarem e federem.

Naquele momento, ao ver sete ratos alados se esfregando ao redor da caixa d’água, o professor resgatou da sua memória cinematográfica a velha cena do filme “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, em que Tippi Hedren observa, aterrorizada, um bando de corvos empoleirados no parquinho de uma velha escola americana.

Nenhuma outra cena seria mais apropriada. O prognóstico foi perfeito: a caixa d’água do professor se tornou, com o passar dos dias, o ponto de encontro de uma infinidade de pombos, de várias cores e tamanhos, que ali ficavam horas e horas, emporcalhando tudo ao redor. Saíam apenas para seus vôos regulares sobre o bairro ou para alguns passeios estratégicos pelo telhado da casa, onde verificavam os melhores lugares para os seus ninhos.

E como é espantosa a capacidade reprodutiva desses bichinhos! Não preciso nem dizer que as laterais e cantos do telhado do professor se transformaram num verdadeiro pombal.

Nesta altura do texto é importante explicar que o jovem professor não sabia fazer nada que, fora dos planos afetivo e sexual, um marido de verdade deveria saber, pelo menos na opinião do senso comum: consertar pia, desentupir privada, fazer o carro pegar no tranco, trocar lâmpadas fluorescentes (daquelas compridas) e, é claro, subir no telhado para exterminar pombos – com toda a crueldade de macho que o ato exigia, já que não bastava acabar com os pais, era preciso também aniquilar os filhos.

E é mais do que sabido que quando esses pseudo-maridos precisam pagar outro homem para fazer o serviço, eles adiam a decisão o máximo possível, talvez por vergonha ou por avareza (ou as duas coisas juntas), e o problema cresce – no caso dos pombos, de forma assustadoramente rápida.

Mas sejamos justos: o professor tentou pelo menos acabar com as orgias na caixa d’água, jogando traques e naftalina no telhado, o que no final das contas não adiantou grande coisa.

Espingarda de chumbinho? Proibido. Veneno? Proibido. O que resta, então, ao pobre professor? Conviver com os pombos? Enlouquecer? Se ele conseguisse ao menos não ter que se lembrar do filme do Hitchcock toda vez que entrasse pelo portão da garagem, já estaria satisfeito.

Mas eles estão sempre lá, principalmente à tarde, arrulhando, cagando, copulando, fedendo, enfim, vivendo suas vidas, mais ou menos como qualquer outro ser vivo...

Como qualquer um de nós...

Ou quase.

Flávio Marcus da Silva

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Partida

Quero morrer de noite —
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda

Quero morrer de noite.
Irei me separando aos poucos,
Me desligando devagar.
A luz das velas envolverá meu rosto lívido.

Quero morrer de noite.
As janelas abertas.
Tuas mãos chegarão aos meus lábios
Um pouco de água
E os meus olhos beberão a luz triste dos teus olhos.
Os que virão, os que ainda não conheço.
Estarão em silêncio,
Os olhos postos em mim.

Quero morrer de noite.
As janelas abertas,
Os olhos a fitar a noite infinda.

Aos poucos me verei pequenino de novo, muito pequenino.
O berço se embalará na sombra de uma sala
E na noite, medrosa, uma velha coserá um enorme boneco.
Uma luz vermelha iluminará um grande dormitório
E passos ressoarão quebrando o silêncio.
Depois na tarde fria um chapéu rolará numa estrada...

Quero morrer de noite —
As janelas abertas.
Minha alma sairá para longe de tudo, para bem longe de tudo.

E quando todos souberem que já não estou mais
E que nunca mais volverei
Haverá um segundo, nos que estão
E nos que virão, de compreensão absoluta.

Augusto Frederico Schmidt (1906-1965)