segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Homem Urso

Um estudo magistral sobre a loucura, com imagens inesquecíveis!

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Case-se com ele

Quando percebeu que jamais voltaria à dieta e começou a engordar, o prestigiado escritor de novelas policiais decidiu derrubar as paredes que separavam seu amplo escritório do quarto de hóspedes e transformar tudo em uma kitnet particular, com todas as comodidades que um homem de letras obeso e preguiçoso necessitava: uma escrivaninha em madeira maciça com quatro gavetas; duas cadeiras antigas muito resistentes (herança da avó portuguesa); uma confortável poltrona em couro; uma cama King Size em ferro, estilo Art Nouveau; um guarda-roupa de mogno com espelho; um computador conectado à internet; uma impressora a laser; uma televisão 38 polegadas, bem no centro de uma enorme estante em estilo clássico, projetada especialmente para ele por um amigo designer, onde também se encontravam um CD player, um sofisticado aparelho DVD e vários filmes de seus diretores favoritos: Almodóvar, Hitchcock, Bergman, Woody Allen e Buñuel; um banheiro; uma mini-cozinha e uma outra estante (esta em estilo rústico, herança de um tio professor que havia se matado aos 40 anos) cheia de livros, com destaque para os romances policiais, sobretudo os ingleses das décadas de 30, 40 e 50, e obras clássicas de autores brasileiros, ingleses, franceses e russos.

Tratou também de se afastar o máximo possível da sociedade: parou de ir a velórios e festas, de ligar para amigos e parentes, de atender a telefonemas [embora adorasse receber notícias da família: "Ontem seu tio tentou se matar tomando uma cartela inteira de remédio para dormir". "Seu primo comprou um carro importado e no dia seguinte arrebentou-o num muro: deu perda total, coitado". "Sua irmã continua apanhando do marido" (...) - "Bem feito", dizia ele. E gostava também de receber notícias de seus ex-colegas de faculdade. Há alguns meses ficou sabendo que, tirando ele, que era um escritor de sucesso, só dois da turma tinham seguido carreira no mundo das letras: tinham terminado o Mestrado em Lingüística e trabalhavam corrigindo redações em cursinhos pré-vestibulares (e na época da faculdade, eram os mais metidos, com suas intervenções "brilhantes" - que ninguém entendia nada - cheias de referências a autores estrangeiros: "Pessoal, esse texto ainda não foi traduzido para o português, mas vou indicá-lo assim mesmo". "Essa citação eu tirei de uma palestra proferida pelo Barthes na Sorbonne, que infelizmente está em francês, e não tem legenda".) "E eu pergunto", disse o escritor, ao desligar o telefone: "Para que estudar tanto e saber tantas línguas, se vão acabar mesmo é corrigindo redação em cursinho ou, quando muito, dando aulas em escolinhas infames ou em faculdades de quinta categoria, recebendo uma miséria?". Os outros ex-colegas estavam em melhor situação: eram comerciantes, pequenos empresários, donas de casa, jornalistas...].

A esposa, que desde o início do casamento sentia náuseas só de vê-lo nu, ao perceber as mudanças no seu corpo – a cabeça se arredondando, a barriga crescendo, os membros inchando –, deixou definitivamente de transar com ele nos finais de semana (o que antes ela fazia por obrigação), recolhendo-se ao seu quarto todas as noites por volta de nove horas. Trancava a porta, despia-se e chorava, remoendo no peito a dor que a acompanhava desde que aceitara casar-se com ele, “o famoso escritor”, vinte anos mais velho, sistemático, mal-humorado, narcisista e arrogante. Mas a mãe insistiu: "Case-se com ele, minha filha, ele é rico, experiente, tem prestígio, vai cuidar bem de você".

E ela se casou.

Flávio Marcus da Silva

Aniversário

Ele chegou em casa por volta de oito da noite. Tirou a roupa e, de frente para o espelho, apalpou a indesejada barriguinha, que crescia a olhos vistos desde que completara trinta anos (embora já tivesse experimentado várias dietas: da sopa, da proteína, do carboidrato, dos pontos, do tipo sangüíneo...). Aproximou o rosto do espelho e observou as rugas que se formavam na testa e ao redor dos olhos, os pêlos que saíam das duas narinas cheias de muco, a barba de cinco dias falhada nos pontos onde as cicatrizes de espinha eram mais profundas, o cabelo oleoso e despenteado, o olhar vazio, sem vida.

Era seu aniversário de trinta e três anos. Estava sozinho em casa, sem qualquer esperança de receber uma visita ou um telefonema. Não tinha amigos e há muitos anos não dava notícias à família, que vivia no interior. Ocupava um cargo importante no Estado, mas odiava o seu trabalho. Todos os dias era a mesma rotina de processos, procurações, requerimentos e ofícios; o mesmo formalismo no vestir, andar e falar; a mesma sensação de vazio e tempo perdido, que nem o prestígio e o alto salário conseguiam preencher. Seus únicos prazeres eram o passeio pelo centro da cidade após o expediente, quando visitava livrarias e jantava em restaurantes requintados, e a TV a cabo, que assistia todas as noites em casa, deitado no enorme sofá da sala, completamente nu.

Naquela noite ele trouxe para casa um bolo de aniversário que havia encomendado em uma confeitaria perto do prédio onde trabalhava. Ele mesmo havia escolhido o recheio: de nozes e damasco; e a cobertura: de limão e caramelo. Assim que se despiu, dirigiu-se à cozinha e se serviu de um pedaço, que comeu em pé, enquanto abria a geladeira e pegava uma latinha de guaraná diet. Levou a caixa com o bolo e o refrigerante para a sala, onde ligou a televisão e se acomodou no sofá, preparando-se para assistir a mais um episódio do seu seriado americano favorito. Com a mão esquerda, sem usar faca ou qualquer outro talher, serviu-se de mais um pedaço do bolo, lambuzando a boca e o queixo enquanto comia. Do nariz escorria um líquido gelatinoso, que ele espalhava pelo rosto com as mãos e depois limpava no peito, na barriga ou nas almofadas do sofá. Os olhos estavam úmidos e avermelhados.

Às duas horas da madrugada, ele desligou a TV, foi para a janela que dava para a frente da casa e acendeu um cigarro. Deve ter ficado ali uns dez minutos fumando e observando a rua deserta, até que o velho casal de aposentados apareceu na calçada, do outro lado, e começou a fuçar o lixo do vizinho. Ele conhecia a história daquele casal, sabia de suas excentricidades e maluquices, mas mesmo assim resolveu tentar uma abordagem. Chamou-os com rápidos movimentos dos braços, que imediatamente foram vistos pelo velho. A mulher observava atentamente uma cabeça de boneca, segurando-a com as duas mãos, bem perto dos olhos, quando recebeu um cutucão do marido. Da janela, o rapaz continuava a fazer sinais, pedindo para que o casal se aproximasse. Quando os dois atravessaram a rua e pararam em frente ao portão da casa, ele disse: “Eu tenho aqui um bolo de aniversário. Vocês querem um pedaço?”. O velho balançou a cabeça em sinal de afirmação.

O que havia sobrado do bolo foi entregue ao casal, que pareceu nem ter notado a nudez do rapaz quando ele se aproximou do portão. A velha colocou o bolo junto com a cabeça de boneca em uma sacola de plástico e saiu na frente, sem dizer nada. O velho ficou parado, olhando a casa e as plantas do jardim por alguns segundos. Depois, baixou a cabeça e seguiu a mulher.

Ao ver que os dois haviam virado a esquina, o rapaz entrou, foi à cozinha, fez um café e esperou o dia raiar.

"Mais um...".

Flávio Marcus da Silva

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Baratas

Ele devia ter uns vinte e oito anos. Morava com a mulher e o filho na casa da sogra – uma viúva gorda e vaidosa –, que com a pensão deixada pelo marido militar sustentava a casa sozinha e ainda pagava a faculdade do genro, sem chiar.

Ao acordar todos os dias por volta de onze e meia da manhã, ele almoçava – quase sempre reclamando da comida "sem sal" ou "salgada demais", "com gosto de queimado" ou "sem gosto de nada" –, levava o filho de cinco anos à escola e ia direto para a Biblioteca Pública estudar.

Em casa, a jovem esposa gostava de ouvir música Punk e fumar maconha a tarde inteira, o que impedia qualquer um de se concentrar no que quer que fosse. Por isso, nesse período, a casa era só dela.

Na Biblioteca, porém, o que ele menos fazia era estudar. Ficava fuçando os livros nas estantes, reclamando da "bagunça", da "sujeira", da falta disso e daquilo, do atendimento das funcionárias "mal vestidas", "incompetentes" e "burras", do barulho, do calor, da iluminação.

Depois de encher bastante o saco do pessoal da Biblioteca, ele costumava dar uma volta pelo centro da cidade. Como a esposa dividia com ele a mesada que recebia da mãe, ele costumava fazer compras à tarde: sapatos, calças, camisas, bermudas, chinelos, CDs, chocolates, remédios; e quase todos os dias tomava café numa lanchonete em frente à igreja, onde também reclamava de tudo: do pão de queijo "sem queijo", do pastel de carne "sem carne", do café "fraco demais" ou "forte demais", da empadinha "sem recheio", dos mosquitos pousando nos bolos e biscoitos, das tortas "sem gosto".

Uma vez ele quase levou uma surra do dono da lanchonete que, sentado na cozinha, ao ouvi-lo reclamar pela quinta vez de um bolo de fubá, levantou-se num salto e, com os punhos fechados, dirigiu-se à porta que dava para o balcão, disposto a arrancar a socos todos os dentes da sua boca – mas foi impedido pela filha, que jogou um tabuleiro de empadinhas recém saídas do forno sobre a mesa e correu pra frente da porta implorando "Pai, pelo amor de Deus, não faça isso".

Para ele, humilhar e constranger as pessoas era um prazer a mais na sua vida. Distribuía críticas e comentários venenosos, sorrisos irônicos e olhares de escárnio a qualquer um que cruzasse o seu caminho. Achava-se superior a todo mundo, imbatível, dono de todas as verdades.

Mas de muitas verdades ele nem desconfiava.

Não desconfiava, por exemplo, que em casa, pelo menos duas vezes por semana, sua jovem e linda esposa recebia a visita de um rapaz negro, estudante de Enfermagem, que a fazia gozar como nunca na cama do casal; que as funcionárias da Biblioteca imitavam o seu jeito de falar meio fanhoso e efeminado, riam do seu "cabelinho de bicha" e comentavam detalhes das últimas transas da sua mulher com o "enfermeiro tripé", primo de uma delas; que vários professores deixavam as provas dele para serem corrigidas por último, com muita atenção, para que a elas fossem atribuídas as piores notas possíveis, sem que ele tivesse a mínima condição de reclamar; que requerimentos entregues por ele em repartições públicas da cidade eram sempre misturados aos últimos da fila; que lojistas, frentistas e mecânicos faziam questão de passá-lo pra trás, sempre que possível; e por aí vai.

Mas a pessoa que mais o odiava era a filha do dono da lanchonete.

Uma vez por semana, ela entrava na velha casa abandonada da esquina e escolhia duas ou três baratas bem gordas entre as milhares que infestavam o lugar. Deixava-as em uma caixa de papelão e, na sexta-feira (dia dele ir à lanchonete comer pastel de carne com refrigerante), ela preparava o recheio.

Por volta de três da tarde, usando uma caneta vermelha, a jovem riscava uma das trinta baratinhas desenhadas em uma lista intitulada Baratas, que ela levava toda sexta-feira para a lanchonete. Depois, escolhia a barata mais gorda da caixa e a picava bem fininho, em minúsculos pedacinhos, usando uma faca afiada reservada especialmente para isso. Misturava à barata alho, sal, pimenta do reino, salsinha, cebola picadinha e refogava tudo em óleo, acrescentando, em seguida, o extrato de tomate e a carne.

Sua meta era fazê-lo comer trinta baratas gordas.

Flávio Marcus da Silva

domingo, 23 de agosto de 2009

Atrás da montanha

Da enorme janela panorâmica, que ocupava uma parede inteira da sua sala de estar, o homem tinha uma visão privilegiada da cidade, com suas casas e prédios estendendo-se até as margens do rio de águas escuras que cortava a região e desaparecia atrás de uma imponente montanha ao sul. Desde que conseguiu fraudar a Previdência Social e se aposentar por invalidez, ele se dizia todas as manhãs, ao se levantar, que naquele dia atravessaria a cidade a pé, alugaria um barco e desceria o rio até o vilarejo mais próximo, onde ficaria hospedado em uma pensão barata por dois dias. Dez anos de aposentadoria já haviam se passado e ele não conhecia o rio, nem o vilarejo, que, diziam, tinha o cemitério mais antigo da região.

O homem adorava cemitérios. Todo sábado à tarde, depois de tomar uma xícara de café preto bem forte, ele vestia uma calça jeans surrada e uma camisa de algodão, calçava um velho par de tênis, besuntava o rosto e os braços com protetor solar fator 50 e saía em direção ao cemitério local. Era lá que estavam enterrados seus avós, pais, tios e alguns poucos amigos.

Na cidade, seu único parente vivo era uma tia corcunda de oitenta anos, que vivia sozinha numa velha casa de madeira, construída no início do século XIX pelos primeiros membros da sua família que chegaram à cidade, vindos de Sintra, Portugal. Os historiadores locais, que viviam de compilar documentos e publicar textos que ninguém lia, diziam que os primeiros moradores daquela casa haviam sido expulsos de Portugal, acusados de bruxaria.

No cemitério, visitava primeiro os túmulos dos ricos, quase todos erguidos com blocos de granito ou mármore escuro, com conjuntos estatuários de bronze esculpidos por artistas de renome e belas inscrições gravadas na pedra ou em metal, impecáveis; depois visitava os dos pobres, que ficavam no alto de um morro sem árvores, com acesso dificultado pela topografia do terreno e pela estreiteza dos caminhos. "Como na vida", dizia para si mesmo, enquanto caminhava entre túmulos de alvenaria, pintados com tinta barata ou cal, ou cobertos de azulejo ou pedra ardósia. Olhava, melancólico, as fotos das pessoas falecidas, a maioria velhos; mas ultimamente vinha notando um aumento muito grande do número de jovens mortos em acidentes de trânsito ou assassinados.

No último sábado, notou que o velório estava lotado. Parou na porta, pensativo. Não conseguiu ler o nome do defunto, mas sabia que era alguém importante, pelo número de carros de luxo no estacionamento, homens de terno e gravata entrando e saindo, coroas de flores (das mais caras e requintadas) dispostas no passeio público e, também, pelo silêncio sepulcral que reinava no recinto, sem gritos de desespero, sem prantos, sem escândalo. O homem não entrou. Achava o cúmulo da hipocrisia ir a velórios quando mal se conhecia o morto e sua família, e cumprimentar parentes e amigos enlutados, com ar grave, fingindo tristeza, só para satisfazer uma curiosidade mórbida ou o desejo sádico de assistir à dor do outro.

Quando morreu seu pai, não contou para ninguém. Velou-o sozinho, em casa, com o caixão aberto em frente à janela panorâmica, tomando café e vendo a cidade se movimentar para cumprir a sina de mais um dia, enquanto, ao fundo, o rio de águas escuras corria lentamente em direção à montanha. No enterro, caía uma chuvinha fina e gelada. Quando a urna atingiu o fundo, convidou o coveiro a fazer uma prece silenciosa e, em seguida, enterraram o velho. A tia corcunda observava tudo de longe, protegida por uma sombrinha, e tão de repente quanto havia surgido, desapareceu.

Naquele dia, voltou para casa, preparou um café com torradas e sentou-se numa poltrona, bem ao lado de onde tinha estado o corpo do pai. Olhou para a janela e acompanhou um barco que descia o rio, até desaparecer na curva que terminava atrás da montanha.

Sob os últimos raios de sol do dia, as águas escuras brilhavam.

Flávio Marcus da Silva

sábado, 22 de agosto de 2009

Vermelho sangue

Na sala de espera da clínica psiquiátrica o jovem professor aguardava sua vez de ser atendido pela psicóloga, enquanto observava um casal de idosos sentado num dos confortáveis bancos à sua frente. [Naquele dia, antes de se encontrar com o médico, ele teria que conversar de novo com a psicóloga]. Olhou para o casal e perguntou em voz alta: “Será que são sempre os mesmos lugares?”. Os velhos se olharam, sem entender, e o jovem acrescentou, com voz de mulher: Hoje você está em uma cabana de madeira, no meio de uma floresta escura e úmida, com uma vassoura na mão. A cabana está suja e você vai limpá-la... “Pelo amor de Deus! Vocês já passaram por isso?”. O casal continuou em silêncio, com os olhos esbugalhados. De um salto, o rapaz se levantou, serviu-se de uma xícara de chá de erva cidreira e resmungou, enquanto bebia: “Assim que eu terminar essa maldita limpeza e pegar a receita, vou sair correndo daqui e tomar um café bem forte no primeiro boteco que eu encontrar".

Foi para a janela e acendeu um cigarro. "Não agüento mais essa gente doida. Hoje tá até bom, só tem dois velhinhos, mas tem dia que é duro: é adolescente chorando, gente retorcendo as mãos, arrancando os cabelos, roendo as unhas, batendo a cabeça na parede, você precisa ver. Às vezes encontro alguns deitados nos bancos ou no chão, prostrados, totalmente grogues, duros que nem defuntos. Mas os que mais me enchem o saco são os falantes. Uma vez um rapaz ficou meia hora na frente do espelho do lavabo olhando uma marca de espinha na testa e gritando: 'Eu sei que é câncer, só pode ser câncer... ai meu Deus, meu Deus... ', e eu não agüentei, tive que rir. Outra vez acompanhei o caso de uma jovem que não aceitava o fato dela não ser a mais bonita, a mais inteligente, a mais rica, a mais importante, enfim, a melhor de todos em tudo na escola onde estudava, e mesmo medicada, sua fala era uma só: 'Naquele dia eu tirei o primeiro lugar', e eu ganhei isso, ganhei aquilo... Coitada. E a mãe escutava aquela ladainha, talvez se sentindo culpada por ter criado um mundo de fantasias em torno da menina, enchendo-a de brinquedos, vestidos, sapatos, celulares... Mas e você? O que tá fazendo aqui? Veio buscar uns remedinhos também? Quer um cigarro?".

Depois de “varrer” uma meia dúzia de arquivos infectados do seu inconsciente, o jovem professor entrou na sala do psiquiatra, descreveu para ele alguns sintomas que guardava na manga para quando precisasse de alguma coisa mais forte, e saiu feliz da vida, com uma receita azul suficiente para mais dois meses. "Foi até fácil convencê-lo a dobrar a dosagem", disse em voz alta, ao entrar no carro, "você não acha?", perguntou. Silêncio... "Amanhã vou convencer o médico-perito a me dar mais uma licença. Se eu tiver que voltar para a sala de aula semana que vem, eu mato o primeiro aluno que me fizer uma pergunta idiota, você pode ter certeza disso".

Parou numa loja de conveniências de um posto de gasolina e pediu um capuccino bem forte, com muito café e chocolate. Enquanto saboreava a bebida, folheou um dos jornais da cidade. "Peraí, esse cara eu conheço...", disse ao ver a foto de um rapaz de trinta e poucos anos ao lado de uma linda jovem estrangeira. "O veado vai se casar com uma alemã!?", exclamou, surpreso. "Será que ninguém desconfia que ele é gay?". Saiu do posto e parou numa farmácia para comprar o remédio. Pediu um copo d'água ao farmacêutico e tomou um comprimido ali mesmo.

A poucos metros do prédio onde morava, numa rua estreita de um bairro de classe média, dois carros bloqueavam a passagem. O cara que estava no banco do passageiro de um Honda prateado tinha descido, e com uma latinha de cerveja na mão, conversava com a loira oxigenada que guiava o outro carro, um Peugeot preto. O professor, no seu Santana de cor não identificada, esperou dois minutos e buzinou. O cara fez sinal para ele ter paciência e voltou a conversar, com os braços debruçados na janela do Peugeot. O professor buzinou de novo, e o outro gritou: "Vai pra putaquetepariu".

Ao ouvir aquilo, o professor deu uma ré, respirou fundo e arrancou com violência pra cima dos dois carros. Com o impacto, o rapaz e a latinha voaram longe; a loira arrebentou a cabeça no vidro da frente; e o motorista do Honda saiu correndo com o rosto todo lambuzado de sangue e caiu ao lado do outro cara, que gemia e gritava de dor no asfalto quente. Mesmo machucado, o professor deu outra ré e arrancou de novo, acabando com o seu carro na traseira da loira que, dessa vez, perdeu todos os dentes da frente e desmaiou encima do volante.

Antes que qualquer pessoa o segurasse e chamasse a polícia, o professor desceu do seu Santana destruído, entrou no Honda, arrancou o carro e passou por cima dos dois homens, indo e voltando umas quinze vezes, enquanto gritava Bloody red, bloody red, com os olhos cheios de ódio.

Depois, com o carro parado, abriu a caixa de CDs e colocou This is not America, de Bowie e Metheny. "Que coincidência", disse, virando-se para o banco de trás. "Estava pensando justamente nessa música". Fixou o olhar num ponto próximo à janela direita do carro e perguntou: "Era isso que você queria?".

Silêncio.

"Anda, fala alguma coisa, caralho".

For this is not America, sha la la la la...


Flávio Marcus da Silva

This is not America

Outras atividades

Antes de completar trinta e cinco anos, o professor de química mais dedicado e talentoso de que se tinha notícia na cidade abandonou a sala de aula e comprou uma perua adaptada para vender lanches, com a qual passou a ganhar o triplo do que recebia como professor, com a vantagem extra de não ter que preparar aulas nem corrigir trabalhos e provas nos finais de semana.

Todas as manhãs ele parava a perua em frente à entrada de um abatedouro de frangos e vendia café com leite e pão com ovo na chapa para os empregados que saíam do turno da noite ou que começavam o trabalho pela manhã. Anotava os lanches em um caderno e cobrava dos clientes só no dia do pagamento.

Gostava de vê-los comer. Alguns chegavam a dar três mordidas no pão antes de engolir, e ainda bebiam café com leite por cima, misturando tudo na boca, com enorme prazer. O cheiro de vísceras e fezes de frango abatido tomava conta do ar, tornando-o quase irrespirável, mas os trabalhadores nem ligavam; conversavam e riam enquanto comiam, segurando os sanduíches e os copos descartáveis com mãos calejadas, enrugadas, as unhas pretas, sujas de sangue. Alguns eram quase crianças; outros, velhos; mas a maioria era jovem, de vinte, trinta anos no máximo, exibindo suas tatuagens de dragões, lagartos e borboletas; seus dentes podres; lábios trincados; pele encardida, ressecada.

Alguns tinham sido seus alunos no Ensino Médio. Chegavam ao primeiro ano semi-analfabetos, e assim continuavam, até se formarem (quando não desistiam antes, por falta de perspectivas). Os próprios professores, mal pagos, estressados e infelizes, desestimulavam o estudo, com aulas que eram a mais pura enrolação: Insuportáveis! É claro que havia alguns excelentes educadores, mas eram poucos, e diminuíam cada vez mais. Enquanto funcionários do alto escalão do governo elaboravam projetos sofisticados e produziam materiais didáticos com metodologias avançadas para a Educação, os professores abandonavam a sala de aula, deixando para trás, muitas vezes, um ideal, uma paixão, para se dedicarem a outras atividades, mais rentáveis.

Por volta de dez horas da manhã, o ex-professor chegava em casa e encontrava a esposa no fogão, preparando os marmitex que ele entregava todos os dias nas confecções e lojas do centro da cidade. Arroz, feijão, macarrão, salada e bife de frango, porco ou boi. O tempero da mulher era muito elogiado pelos clientes, sempre fiéis. Muitas sacoleiras que vinham de outras cidades para comprar roupa também levavam os marmitex; e para ele era um prazer vê-las sentadas nos degraus das lojas ou nas calçadas, comendo com colheres e garfos descartáveis, levando os bifes à boca com as próprias mãos, lambuzadas de molho e gordura de porco. Ao terminarem, lambiam os dedos e os beiços com sofreguidão.

Às cinco da tarde, estacionava a perua em uma vaga reservada para ele na praça principal da cidade, onde às seis horas muita gente passava, voltando para casa depois do trabalho; às nove, vários casais de namorados passeavam de mãos dadas; e às onze, prostitutas, travestis e garotos de programa ofereciam seus corpos a homens e mulheres à procura de prazer sem compromisso. Ali, vendia cachorro quente e vários tipos de sanduíches, que eram servidos com refrigerante ou suco. Enquanto esperavam seus lanches, os casais de namorados ficavam em silêncio, sentados nos bancos da praça, olhando o movimento. As namoradas geralmente pediam cachorro quente e suco, e os namorados sanduíche de pernil - com cebola, pimentão e bacon - e um copo de refrigerante. Elas comiam com delicadeza; eles, com avidez.

Uma noite, quando se preparava para ir embora, viu uma prostituta novata se aproximar de um carro e imediatamente reconheceu-a: era uma ex-aluna. Na noite seguinte, reconheceu um garoto de programa: era um ex-professor de Educação Física que, como ele, havia desistido da profissão para tentar a sorte em outras atividades.

Flávio Marcus da Silva

Foto: Sebastião Salgado

Vivaldi

Antonio Vivaldi (1678-1741)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Sobre os crimes também

"Ele ficou desapontado...", pensou o jovem estudante, ao entrar sozinho no elevador e cumprimentar o velho advogado do 1002. “E eu também”, murmurou para si mesmo, tentando disfarçar a vontade de rir.

Por mais que refletisse, não conseguia entender o bolo que a namorada havia lhe dado. Pensativo, encostou a cabeça no espelho, fechou os olhos e acabou se esquecendo de apertar o número do seu andar. Quando percebeu, já era tarde.

O elevador parou e o velho saiu. Na mão direita levava uma sacola plástica bem volumosa, contendo o seu jantar especial de sexta-feira. Mas antes de chegar à porta do apartamento, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos no chão. O jovem, que assistiu à cena, saiu correndo do elevador para ajudá-lo. "O senhor está bem?", perguntou. "Sim, não se preocupe", respondeu o velho; mas o outro não acreditou: "Eu acho que não, vovô", pensou, e disse, levantando-o: "Venha. Eu ajudo o senhor a entrar". Abriu a porta do apartamento e, com cuidado, colocou o velho deitado no sofá. Foi à cozinha, deixou a sacola com o jantar na bancada da pia e voltou para a sala. "E agora?", se perguntou em silêncio. "Vou embora e deixo-o aqui sozinho?". O velho gemia de dor. "Não, não posso deixá-lo", concluiu. "Sua esposa não está?", perguntou só por perguntar, pois já sabia a resposta. O velho balançou a cabeça negativamente.

"Onde o senhor está sentindo dor?", perguntou. Como resposta, o velho colocou a mão no joelho direito. O rapaz se abaixou para olhar. "Posso ver?". Desceu a calça do velho, olhou o joelho com atenção e coçou a cabeça, preocupado. "Não se mexa. Vou fazer uma compressa de gelo". Foi novamente à cozinha, livrou a sacola plástica do seu conteúdo (uma lasanha congelada, dois pedaços de torta holandesa e uma garrafa de vinho) e desenformou nela trinta pedras de gelo. "Segura aqui, Doutor P". Os dois se olharam. "Você sabe o meu nome...", disse o velho, como se pedisse uma explicação. O jovem ficou sem graça. "Eu já li sobre o senhor nos jornais. Eu gosto de acompanhar notícias sobre processos criminais", disse. Não era mentira, mas o que realmente havia despertado o interesse do jovem pela vida do velho advogado criminalista foi tê-lo visto assistindo a uma transa sua com a namorada.

"Quantos anos você tem?", perguntou o velho.

"Vinte e dois".

"Estuda?".

"Jornalismo".

"Gosta de ler?".

"Sim".

"Então entra ali", disse o velho, indicando uma porta à esquerda.

Ao entrar na biblioteca, o jovem estudante ficou impressionado com a quantidade de obras-primas da literatura que se enfileiravam nas prateleiras, a maioria delas no idioma original.

Na sala, de olhos fechados e com o joelho latejando de dor, o velho revia uma cena do seu post-mortem que a cada dia ganhava contornos mais nítidos na sua imaginação. Nela, suas filhas apareciam encaixotando os livros da biblioteca, junto com o dono de um sebo, um velho barbudo e asqueroso, que avaliava e colocava preço em tudo. Enquanto as obras eram empilhadas nas caixas de papelão, ele fazia comentários depreciativos sobre o estado de conservação dos livros, a qualidade dos textos, dos autores, etc., sem qualquer contestação das três herdeiras, que não viam a hora de se livrarem daquele lixo para sempre.

Uma hora depois, o jovem voltou para a sala e perguntou: "O senhor guarda os registros dos casos em que atuou?". O velho abriu os olhos, assustado, como se não tivesse entendido a pergunta, mas respondeu quase imediatamente: "Claro que sim. Tenho tudo guardado, inclusive os discursos que eu escrevi para inocentar alguns dos bandidos mais perigosos que esse país já conheceu. É um verdadeiro festival de horrores: assassinos cruéis endinheirados se livrando da cadeia, enquanto ladrões de galinha são condenados a anos de prisão por culpa de seus advogados incompetentes, incapazes de escrever um simples ofício, quanto mais uma petição ou um discurso de defesa". O jovem o olhava intrigado.

"Você sabe escrever?", perguntou o velho.

"Sim".

"Estou procurando alguém para escrever um relato sobre a minha vida. Quero que ele seja distribuído a todas as pessoas que comparecerem ao meu velório. Você tem interesse?".

"Um relato...".

"Sim".

"Sobre os crimes também?".

"Sobre os crimes também".

Flávio Marcus da Silva

Objetos

Os dois não tinham amigos nem parentes na cidade. Viviam trancados em casa durante o dia, saindo de madrugada para catar objetos e comida nos lixos deixados nas portas de residências e estabelecimentos comerciais. O marido era um engenheiro civil aposentado. A esposa, uma professora de História que havia abandonado a profissão em 1971, após ter sido presa e torturada por defender idéias consideradas subversivas pelo governo militar. Não tiveram filhos. Ninguém se importava com eles.

Mas quando o corpo de um homem de cerca de quarenta anos foi descoberto no porão da casa onde moravam, jornais e emissoras de rádio e TV enviaram dezenas de repórteres para investigar o passado deles. Cenas e relatos aterradores eram transmitidos diariamente do local, para deleite de milhares de leitores, ouvintes e espectadores de todas as camadas sociais, que além dos vícios mais corriqueiros, como álcool, cigarro e tranqüilizantes, não abriam mão também de sua dose diária de desgraça alheia.

As primeiras cenas do interior da casa mostraram cômodos imundos, infestados de ratos e baratas, onde dar alguns passos era tarefa quase impossível, de tanto lixo espalhado pelo chão. As câmeras registraram imagens de vários objetos na imundície, alguns bastante insólitos: uma coroa de flores mortas, enfeitada com pano roxo e fitas negras pendentes; a garrafa vazia de um vinho francês da Borgonha; um recorte de jornal com a foto de uma linda jovem da Alta Sociedade; um secador de cabelo; o pedaço de uma pedra de mármore preto, com a inscrição Descanse em paz em letras douradas; um álbum de fotos antigas, roído pelos ratos; uma folha de papel trazendo o resultado de um antigo exame de sangue; uma revista pornográfica; um velho dicionário alemão-português; uma medalha enferrujada; uma tese de doutorado em História, com as folhas manchadas de fezes e urina de ratos; um velho lampião do século XIX; um aparelho de medir pressão; um livro de Direito Penal; uma touca de natação; uma novela policial de Dorothy L. Sayers; uma cabeça de boneca; e, finalmente, a arma do crime: uma pistola de pregos elétrica para estruturas.

A polícia descobriu que o velho era muito rico. Desde a infância era obcecado com a estória da cigarra e da formiga e desprezava todas as pessoas que gastavam dinheiro com futilidades. Quando começou a trabalhar em uma construtora, passou a economizar a maior parte do seu salário, com medo de enfrentar dificuldades financeiras caso perdesse o emprego. Com o tempo, o transtorno do velho piorou e acabou contaminando a esposa, que depois da prisão e das torturas havia se fechado na dor de uma existência de sombras, povoada de visões e delírios em que era constantemente perseguida por seus algozes.

O casal vivia como mendigos, comendo restos de comida jogados no lixo por donos de restaurantes no centro da cidade e vestindo roupas usadas distribuídas por associações de caridade. De suas incursões noturnas, traziam para casa tudo que achavam ser de utilidade, espalhando pelos quartos, salas e banheiros da casa uma infinidade de objetos que nunca seriam usados.

Numa fria tarde de sábado, o integrante de uma quadrilha de bandidos que tinha acabado de roubar uma loja de ferramentas nas proximidades separou-se do grupo e invadiu a casa dos velhos para se esconder de uma patrulha da polícia, achando tratar-se de um imóvel abandonado. Trazia uma mala cheia de ferramentas.

Dois meses depois, seguindo uma pista fornecida por um dos ladrões (que havia sido preso), um policial encontrou o corpo do fugitivo enterrado no porão da casa. No IML, o médico legista descobriu que o crânio do homem havia sido perfurado por trinta pregos de cabeça redonda de noventa milímetros de comprimento.

Flávio Marcus da Silva

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Leituras

O velho advogado desligou a televisão, vestiu um pijama e foi para a biblioteca, onde vasculhou as estantes em vários locais, até encontrar, atrás de alguns clássicos franceses do século XIX, uma volumosa pasta preta cheia de papéis velhos. Sentou-se na escrivaninha, abriu a pasta e, com cuidado, retirou a última folha do maço. Ali, escrito em letra cursiva pequena e elegante, na primeira linha, destacava-se o título: Livros que li no ano de 1958. Sorriu, emocionado, ao ler alguns comentários que havia escrito sobre suas leituras preferidas naquela época: os romances policiais da Coleção Amarela, editados a partir do início da década de 1930: O Mistério da Escada Circular, Os Três Punhais, Um Cadáver no Jardim, A Mão Decepada, A Pista da Vela Dobrada, O Mistério dos Fósforos Queimados, e muitos outros. Na folha anterior, que continha os comentários sobre as leituras feitas em 1959, o nostálgico advogado (que acabara de completar setenta anos) confirmou o título do primeiro livro que havia lido em inglês: Death on the Nile, de Agatha Christie.

Mas entre os inúmeros romances policiais ingleses e americanos, que ocupavam a maior parte das folhas amarelas da antiga pasta de recordações do advogado, apareciam também clássicos da literatura mundial dos séculos XIX e XX, romances e contos contemporâneos, obras de importantes cientistas sociais brasileiros, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, e várias teses de mestrado e doutorado em Sociologia, História, Ciência Política e Direito. Ficou particularmente espantado com a quantidade de obras lidas na década de 1970, quando já era um advogado em ascensão, casado e com três filhas pequenas.

Foi aí que se lembrou de como era obcecado com o sucesso profissional. Ficava no escritório até tarde, todos os dias, em reuniões intermináveis com sócios e clientes, e ainda virava noites estudando processos em casa. Tinha aulas de inglês, francês, alemão, espanhol e italiano, e se obrigava a ler pelo menos três horas por dia (inclusive nos finais de semana) textos originais em todas essas línguas, além do português. Utilizava um cronômetro para marcar o tempo que se dedicava à leitura, interrompendo a contagem sempre que era obrigado a abandonar o livro para ir ao banheiro ou atender a algum chamado importante. Era obrigado a fechar a semana com no mínimo vinte horas de leitura, em todas as línguas que conhecia, pois achava que o seu diferencial na profissão seria um vasto conhecimento das culturas e civilizações do mundo, adquirido através de suas literaturas, lidas, de preferência, no original; e como era advogado criminalista, dedicava-se com especial afinco à leitura dos melhores contos e romances policiais do mundo, com destaque para Conan Doyle, Chesterton, Dorothy L. Sayers e Agatha Christie.

Guardou as folhas de volta na pasta. Levantou-se com cuidado, apoiando-se na escrivaninha para não cair, e moveu lentamente a cabeça de um lado para o outro, visualizando, em toda a sua grandiosidade, as três enormes estantes repletas de livros. "Será que valeu a pena?", perguntou a si mesmo, enquanto caminhava em direção a uma prateleira, no lugar reservado aos autores russos do século XIX. Ao chegar bem perto, escolheu uma edição francesa de Crime e Castigo e dirigiu-se ao banheiro, no final do corredor. Ali, tirou a calça, sentou-se no vaso, abriu o livro e releu trechos que ele próprio havia marcado em 1977, ano em que entrou em contato pela primeira vez com o fascinante e sombrio universo de Dostoïevski.

Dessa primeira leitura, lembrava-se perfeitamente dos delírios de Raskolnikov, deitado em seu sofá no quarto miserável que alugava, ou andando sem rumo pelas ruas imundas de São Petersburgo. E de outras incursões literárias dessa mesma época recordava-se com detalhes de várias cenas: beijos, assassinatos, funerais, festas, duelos, guerras e discursos. Mas quando pensava nas três filhas, com dois, cinco e sete anos em 1977, poucas lembranças lhe vinham à cabeça, pois raramente tinha tempo para elas. "Hoje elas estão casadas, com filhos, e não as conheço", pensou com tristeza. "Valeu a pena?", perguntou novamente, dessa vez com os olhos fixos na imagem de seu rosto refletida no espelho (os cabelos brancos, a pele vincada), enquanto limpava com cuidado o ânus, maltratado por duas décadas de ataques recorrentes de hemorróidas.

Vestiu novamente a calça do pijama, apertou a descarga e caminhou em direção à sala. Recolheu os restos do jantar, jogados sobre a mesa em frente à televisão, e foi para o seu quarto, onde colocou um DVD, sentindo-se quase feliz por não ter que compartilhar a cama com a esposa naquele final de semana. O filme era o espanhol Tudo sobre minha mãe. Numa cena, ouviu uma frase que o fez suspirar:

Sucesso não tem cheiro, não tem sabor, e quando você se acostuma, é como se não existisse.



Flávio Marcus da Silva

Dia da Mentira


Assim que foi demitido, no final de uma tarde fria de segunda-feira, o jovem economista pegou suas coisas (um porta-retratos com a foto da filha e uma mochila), despediu-se de alguns amigos e foi direto para o clube onde nadava três vezes por semana.

A piscina estava vazia, mas aquecida. Sentou-se numa das bordas, de sunga, touca e óculos já postos, com as pernas cruzadas, e deixou-se levar pelo turbilhão de imagens que se sucediam em sua cabeça, provocando sensações ao mesmo tempo de alívio e medo, alegria e angústia.

Entrou na piscina e iniciou um perfeito crawl, com respiração, braçadas e pernadas lentas, bem sincronizadas, resultado de dez anos de dedicação a uma de suas maiores paixões: a natação. Enquanto sentia o agradável calor da água percorrendo o seu corpo, reviveu a horrível experiência de ter sido demitido de mentira durante uma brincadeira de primeiro de abril, havia dois anos, quando chegou a se humilhar para o funcionário encarregado de fazer a encenação, dizendo: "Pelo amor de Deus, minha esposa está desempregada e a gente tem uma filha de um ano que precisa de tratamento médico especializado pelo resto da vida, por causa de uma doença genética que ela tem". O diretor e três outros funcionários da empresa estavam escondidos atrás de uma porta, no fundo da sala, divertindo-se com o seu desespero. Quando saíram, rindo e gritando "Primeiro de abril! Primeiro de abril!", a única coisa que fizeram foi elogiar o desempenho do funcionário do RH, que riu, sem graça, perturbado e arrependido pelo que acabara de fazer.

Naquela fria tarde de segunda-feira, ao ser chamado pelo mesmo funcionário que fizera a encenação de dois anos atrás, sentiu seu coração disparar. Mas quando entrou na sala em que havia sido humilhado e vilipendiado da outra vez e recebeu o rápido comunicado de sua demissão, estava calmo e sereno. Os dois se cumprimentaram. O funcionário renovou as desculpas pela brincadeira de mau gosto que fora obrigado a fazer havia dois anos, e, meia hora depois, com uma mochila nas costas e um futuro incerto pela frente, mais um economista desempregado caminhava pelas ruas da capital do país.

Ao passar em frente à Faculdade de Filosofia, no centro da cidade, lembrou-se de uma piada que ouvira de um amigo professor de História: O repórter percorreu a longa fila de desempregados, parou bem próximo a um grupo de engravatados e disse, olhando para a câmera: 'Não são só filósofos, historiadores, sociólogos e economistas que engrossam as filas do desemprego. Pessoas úteis também procuram desesperadamente uma vaga no mercado de trabalho'.

Ao mudar seus movimentos para um harmonioso nado de peito, o jovem se viu na casa de seus pais, após o tradicional almoço de domingo, pedindo dinheiro ao velho para pagar o aluguel do apartamento e comprar os remédios da filha, enquanto seus dois irmãos bem sucedidos mostravam para a mãe as fotos das últimas viagens que haviam feito ao exterior.

Saiu do clube ao final da tarde, depois de um demorado banho. Caminhou tranquilamente pelas ruas da cidade, parando em uma livraria – onde comprou um exemplar do mais novo livro de P. D. James –, e em um Café – onde experimentou um delicioso expresso do Cerrado –, até chegar ao apartamento onde morava com a esposa (ainda desempregada) e a filha de três anos.

Às onze da noite, desligou a televisão, cobriu a filha já adormecida e deitou-se, beijando com carinho a testa de sua companheira, como sempre fazia, sem contar para ela que, a partir daquele dia, ele também estava desempregado.

De manhã, acordou assustado com o barulho do telefone. Atendeu-o no primeiro toque e disse, segundos depois: "Já estou indo, fica calmo". A esposa perguntou quem era. "Era o vizinho do 402", respondeu o marido, enquanto vestia uma calça às pressas. "Parece que teve um acidente. Bateu a cabeça na quina de um móvel e não consegue andar. Disse que eu posso arrombar a porta".

"Cuidado, amor".

Flávio Marcus da Silva

Perfume

Diante de um enorme espelho retangular (com moldura esculpida em granito Blue Pearl importado), no banheiro de um luxuoso Shopping da capital, o jovem estudante de Direito levou as duas mãos à cabeça e, com movimentos rápidos, ajeitou sua vasta e bem cuidada cabeleira. Em seguida abriu um sorriso perfeito de rapaz sedutor e observou, com orgulho, seus impecáveis dentes brancos (trinta e duas estruturas bem alinhadas que nunca tinham entrado em contato com café, Coca-Cola ou nicotina).

Enquanto se admirava no espelho, ouviu um empregado da limpeza dizer para o seu colega: “Quando eu tiver dinheiro, eu quero abrir um negocinho para trabalhar para mim mesmo, sabe?”. O outro respondeu com um grunhido zombeteiro que, mesmo abafado pelo irritante barulho da escova no vaso sanitário, parecia querer dizer em alto e bom som: “Vai sonhando, meu amigo, vai sonhando”.

O jovem estudante terminou de se ajeitar e sem qualquer preocupação com os destinos daqueles dois pobres miseráveis saiu do banheiro para se encontrar com duas colegas de faculdade em frente a uma loja de CDs importados, de onde partiriam para mais uma corrida na praça.

Todos os dias os três se encontravam ali e subiam a avenida em direção à bela praça centenária, onde, no início de cada noite, homens e mulheres de várias idades, sobretudo jovens preocupados com a beleza e velhos tentando evitar a decadência do corpo, reuniam-se para dar voltas e mais voltas ao redor de seus lindos jardins e fontes.

Na subida da avenida, o assunto dos três estudantes naquele início de noite era um professor recém contratado que, com medo de ser rejeitado pela turma, preparava as aulas com tanto esmero e organização, que ninguém saía da sala com dúvida. “Eu não gosto dele”, disse o jovem com voz firme. “Prefiro os professores anárquicos", continuou, "que deixam os pensamentos e reflexões fluírem livremente, conduzindo as discussões de maneira mais solta, sem muita ordem... Aquele cara é muito certinho”. As duas colegas concordaram. “Ele é ridículo”, disse uma delas, encostando de leve a coxa esquerda na perna do rapaz e pensando em como seria maravilhoso levá-lo para um motel naquela noite, depois da corrida. A outra comentou, tentando impressioná-lo: “Ontem eu fiquei a tarde inteira lendo o Tratado de Direito Penal do Martins e percebi que ele tira todas as aulas dali. É a mesma coisa! Não tem nada de original, nenhuma reflexão crítica que seja dele! Mas a turma baba no cara, só porque ele domina o conteúdo, fala bem e faz aquele teatro todo para parecer interessante e amigo de todos".

Chegaram à praça e começaram a correr. Era sexta-feira. No dia seguinte, pela manhã, o jovem estudante teria quatro aulas de inglês e logo depois pegaria a estrada em direção à sua cidade natal, onde moravam seus pais: um rico empresário, dono de uma rede de escolas de Ensino Fundamental e Médio, e uma bem sucedida advogada, especialista em Direito Tributário.

Todo sábado era a mesma coisa: depois de uma hora e meia de viagem, ele chegava em casa por volta de duas da tarde, almoçava, estudava um pouco, tomava um banho, jantava, e à noite saía com os amigos para dançar e ficar com as meninas bem nascidas do lugar.

O final de semana terminou para o jovem estudante quando, voltando para a capital no domingo à noite, com um enorme livro de Direito Penal jogado no banco de trás do seu carro e o porta-malas cheio de comida e roupas limpas, ele ouviu o som de uma buzina e sentiu um misterioso perfume de rosas no ar.

Depois disso não sentiu mais nada.

Flávio Marcus da Silva

A Flauta mágica

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Vinte por treze

Às cinco da manhã, o jovem assessor parlamentar acordou com o início do que seria, ao final da tarde, uma forte dor de cabeça, já pensando na agenda do seu chefe para aquela terça-feira, cheia de reuniões inúteis e compromissos banais. Mas ao tentar colocar o pé no chão, não conseguiu. Levantou a cabeça lentamente e levou um susto ao ver que, além de enrijecido, o seu joelho direito parecia uma batata gigante, de tão inchado. Deu um giro na cama e, apoiando-se no joelho esquerdo, que funcionava, dirigiu-se até o computador, para uma rápida consulta ao seu médico de plantão, o Dr. Google.

Em menos de um minuto vasculhava sites sobre reumatismo, artrite, artrose, e em menos de quinze já havia chegado à assustadora conclusão de que a súbita inflamação do seu joelho indicava uma única coisa: artrite reumatóide, a pior doença reumática conhecida, por ser crônica, incurável, degenerativa, acometer todas as articulações do corpo e ter alto poder de destruição.

Parado diante do computador, o rapaz pensava em seu futuro sombrio: nas deformidades que transformariam seu corpo após vários processos inflamatórios descontrolados; nas bengalas, muletas e coletes que teria que usar; nos efeitos colaterais causados pelos antiinflamatórios hormonais, não-hormonais e outras drogas de controle da doença, que teria que suportar, até chegar à cadeira de rodas, deformado pelos inúmeros nós e calombos nas articulações, com o corpo todo inchado por causa dos corticóides e dependente de doses cada vez mais fortes de analgésicos, para aliviar as dores insuportáveis.

Ficou mais de uma hora parado, sofrendo por antecipação e vasculhando seu passado à procura de alguma coisa que ele tivesse feito para merecer castigo tão terrível e cruel: “Uma vez minha mãe me disse que, na infância, eu era muito egoísta e malvado: que eu pulava da gangorra só para ver meu amiguinho cair; que eu apagava a luz do quarto e fechava a porta, deixando meu primo de três anos sozinho lá dentro; que eu só emprestava meus brinquedos depois que o meu pai me obrigava; que eu batia sem dó em qualquer pessoa que me ameaçasse; que eu mentia olhando nos olhos; que eu era respondão, gritava e esperneava quando desapontado, e estava sempre pronto para humilhar e diminuir as crianças que me causavam inveja...”. O homem enxugou uma lágrima que escorria em seu rosto e continuou: “Mas ninguém é perfeito (meus primos e amiguinhos também não eram santos) e Deus sempre perdoou as crianças”. Passou a mão direita no joelho inchado e sentiu que a enorme batata estava quente e latejava. “Não, não pode ser na infância”, disse para si mesmo. “Com certeza foi depois”. E lembrou-se das vezes que puxou o tapete de colegas de trabalho para subir na vida; que aceitou dinheiro público como pagamento extra por serviços de caráter privado; que mentiu para salvar seu chefe da fogueira. “Será?”.

Retorceu as mãos em desespero, e ao se apoiar no joelho esquerdo para se levantar, sentiu que ele também começava a perder flexibilidade. “Meu Deus!”, gritou alto. Ao ficar de pé, com muito custo (suando frio e com o coração acelerado), perdeu o equilíbrio e caiu, batendo a cabeça na quina da escrivaninha. Apoiou-se com a mão esquerda no chão e com a outra sentiu o sangue que escorria em abundância pela sua testa, até o pescoço. Arrastou-se até o telefone e ligou para um vizinho, que chegou cinco minutos depois, arrombando a porta para entrar no apartamento.

No hospital, levou alguns pontos na cabeça, tomou um analgésico e, mais calmo, exigiu a presença de um médico reumatologista, que após examiná-lo longa e calmamente (pois a consulta era particular), tranqüilizou-o, dizendo que aquele processo inflamatório tinha sido provavelmente uma manifestação psicossomática, devido ao estresse e às preocupações, mas que, por via das dúvidas, pediria alguns exames e acompanharia o seu caso de perto.

Dez dias depois, medicado e recuperado, o jovem assessor riu de si mesmo ao se lembrar do seu desespero irracional. “Vou seguir o conselho do médico e procurar ajuda psicológica”, pensou.

No domingo, saiu bem cedo para uma caminhada ao redor da lagoa, mas antes de começar o percurso, resolveu parar no quiosque de uma farmácia para medir a pressão. Puf, puf, puf, puf, puf... ssssssssssssss...: Treze por oito. “Meça de novo, por favor”, pediu ele à moça da farmácia. Puf, puf, puf, puf, puf, puf... sssssssssssssssss...: Quatorze por oito. “Mas o que é isso?”, perguntou ele, desesperado. “O senhor ficou nervoso”, tentou explicar a moça, “e a pressão subiu um pouco, é normal”. Ele pediu para repetir, mas a moça tentou acalmá-lo, dizendo que treze por oito já era uma boa medida para a idade dele, e que se ela medisse novamente, provavelmente o resultado seria um número maior que quatorze por oito. “Meça de novo”, insistiu ele. Ela mediu. Dito e feito: Dezesseis por nove. Saiu dali desesperado, esquecendo-se da caminhada. Foi à farmácia mais próxima e comprou um aparelho digital para medição da pressão arterial.

Em seu apartamento, passou o domingo inteiro medindo a pressão e anotando os números obtidos em uma folha de papel, para no dia seguinte poder apresentá-los a um cardiologista.

Às dez da noite, com os dois braços latejando e doloridos de tanto puf, puf, puf, o jovem assessor parlamentar obteve o último resultado das centenas de medições realizadas naquele domingo, poucos segundos antes de um vaso sanguíneo arrebentar em seu cérebro:

Vinte por treze.

Flávio Marcus da Silva

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O Lobo da Estepe

"Vi a mim mesmo arrastando-me pelo deserto do além, como um peregrino morto de cansaço, carregado com os inúmeros livros inúteis que havia escrito, com todos os artigos e opúsculos que havia publicado, seguido de um exército de leitores que se viram obrigados a tragar tudo aquilo. Meu Deus! E além disso, ali estavam também Adão e a maçã, e toda a restante culpa hereditária. Tinha de purgar tudo aquilo e só então poder-se-ia levantar a questão se havia algo pessoal, algo próprio que considerar, ou se todos os meus atos e suas conseqüências não seriam mais que espumas boiando no mar, ondulação sem sentido na torrente dos acontecimentos".

Hermann Hesse (1927)

domingo, 16 de agosto de 2009

Rosas marrons

O professor se olhou no espelho e o que viu foi um rosto pálido, desfigurado pelo ódio. Por mais que tentasse afastar o desejo de vingança recorrendo a livros de auto-ajuda e a orações, não conseguia evitar os maus pensamentos, que o assombravam dia e noite com cenas assustadoras de sofrimento e morte.

O culpado de toda a sua desgraça era um empresário de cinqüenta e oito anos, casado com uma advogada tributarista, com quem tinha um único filho, que estudava na capital.

Quinze anos haviam se passado desde que foram apresentados em uma festa, na casa de uma amiga. Naquela época, embora fosse professor recém-formado, estava bem de vida, pois tinha acabado de receber a herança do pai, um rico criador de gado na região. Resolveu, então, atender ao pedido da amiga e emprestar ao empresário uma enorme quantia em dinheiro, para um “investimento infalível” no ramo da telefonia móvel. O negócio não deu certo, a loja fechou as portas e a dívida que o empresário tinha com ele não foi paga.

Mas o empresário prometeu pagar tudo, com juros, se o jovem professor entrasse de sócio com ele em uma empresa de importação, que daria “lucros fabulosos” em menos de dois anos. Como era inexperiente, investiu muito dinheiro na empresa, acreditando nas conversas do empresário e da sua esposa advogada que, em segredo, organizaram e mantiveram em funcionamento durante oito anos um complicado esquema de importações fraudulentas envolvendo notas fiscais falsas e propinas a funcionários da Receita Federal.

Quando o esquema foi descoberto pela Polícia, tudo o que ele possuía havia sido investido na empresa. Seu nome foi publicado em todos os jornais do país e divulgado em programas de rádio e TV em escala nacional. Sua esposa o abandonou, levando com ela o filho de dez anos para viver em Goiânia, onde moravam os pais dela, dois velhos e pobres comerciantes aposentados.

O esquema havia sido planejado de forma que, se fosse descoberto, um excelente bode expiatório estaria pronto para ser apresentado à Justiça: ele. Foi o que aconteceu. As provas que o casal de criminosos havia preparado eram irrefutáveis, e com base nelas seus advogados conseguiram facilmente convencer o juiz de que aquele tímido professor de trinta e sete anos havia sido o único responsável pelos crimes.

Ao sair da prisão, quatro anos depois, numa fria tarde de julho, o amargurado professor descobriu que seu filho tinha se tornado um viciado em crack, com poucas chances de recuperação, e que sua ex-esposa havia falecido após tomar uma overdose de remédios para dormir, seis meses após a morte dos pais em um acidente de carro, na estrada de Caldas Novas.

Continuava olhando seu rosto no espelho, perdido em pensamentos sombrios, quando ouviu o barulho de um avião que cortava o céu, despertando-o do seu torpor. Saiu do banheiro e sentou-se no sofá da sala. Vivia sozinho em um apartamento alugado no centro da cidade, de onde só saía para fazer alguns bicos como desentupidor de pias e lavador de carros. De vez em quando via o empresário e sua esposa desfilando pela rua principal da cidade em carros e caminhonetes que mais pareciam veículos lunares ou tanques de guerra futuristas, de tão grandes, imponentes e sofisticados. Outras vezes via os dois no noticiário da TV local ou nas colunas sociais, recebendo prêmios de honra ao mérito, de reconhecimento profissional, de glamour, ou participando de festas VIPs, sempre muito alinhados e bem vestidos. O filho deles vinha todo final de semana para visitar os pais, curtir com os amigos as noites de sábado numa das melhores danceterias do estado e ficar com as meninas ricas da City, que se orgulhavam de estar na companhia dele - um estudante de Direito com futuro promissor, filho de uma renomada advogada tributarista e de um poderoso e rico empresário do ramo educacional: era assim que costumavam destacar os jornais locais.

Naquele dia, o professor foi mais uma vez à igreja pedir perdão pelo seu ódio e desejo de vingança, mas assim que voltou para casa e se deitou na cama, foi novamente tomado pelos maus pensamentos.

À noite, sonhou que caminhava por uma estrada deserta, cercada de árvores enormes, e que à sua frente seguia uma figura esguia, vestida de negro, carregando um lampião aceso em uma das mãos e uma rosa marrom na outra. Ao chegarem a uma velha casa de madeira, na beira da estrada, a misteriosa figura indicou com um movimento do lampião que eles deveriam entrar. Seus olhares se cruzaram por um instante, mas o professor não soube dizer se era um homem ou uma mulher. Só notou os cabelos curtos e pretos, os olhos escuros e as mãos magras, de gestos delicados. Entraram, e, para sua surpresa, a mesma figura esguia de cabelos curtos e escuros aparecia em vários lugares ao mesmo tempo, como réplicas ou clones de um mesmo fantasma, sempre ao lado de um homem ou de uma mulher. Numa das paredes da enorme sala havia uma foto do rico empresário, de paletó, camisa social e gravata, ao lado de sua bela esposa advogada. Ao redor da foto, como uma moldura, havia um arranjo de aspecto funesto, feito de pregos enferrujados e dezenas de rosas marrons. A misteriosa figura que o acompanhava dirigiu-se lentamente até a foto, espetou a rosa marrom que trazia na moldura, junto com as outras, e chamou-o para junto de si. O professor se posicionou ao seu lado, fechou os olhos e, sem qualquer resistência, deixou-se guiar pelos labirintos sombrios do inconsciente, onde uma seqüência de imagens era projetada repetidamente, numa velocidade assustadora: um carro em alta velocidade, um livro no banco de trás; um rio de águas barrentas; uma carreta desgovernada; sangue e membros mutilados em meio a ferros retorcidos.

Acordou assustado às duas da madrugada e correu para o banheiro, onde vomitou um líquido escuro, de odor nauseabundo. Voltou para o quarto, ligou a televisão num canal evangélico, deitou-se na cama e permaneceu imóvel, sem dormir. Levantou-se às seis da manhã, lavou o rosto e saiu para ir ao bar da esquina comer alguma coisa. Ali, pediu um café bem forte, um pão de queijo com lingüiça, e foi para uma mesa afastada, próximo aos banheiros. Ao sorver o primeiro gole do café, viu que um freguês encostado no balcão encarava-o, espantado. Imediatamente o professor reconheceu-o como uma das pessoas do sonho, que se encontrava de pé na sala da casa de madeira, ao lado de um dos clones da misteriosa figura vestida de negro. O homem pareceu indeciso por alguns segundos, mas logo veio em sua direção, e ao se aproximar, disse: “O filho deles morreu em um acidente de carro ontem à noite, às vinte e três horas, quando voltava para a capital”.

Ao ouvir aquilo, o professor levantou-se num salto e saiu correndo em direção à igreja.

Flávio Marcus da Silva

sábado, 15 de agosto de 2009

Fragmentos

O historiador solicitou os documentos, fechou os olhos e se preparou para mais um encontro com os seus mortos.

Todos os dias, após o almoço, ele se dirigia ao belo prédio do século dezenove, onde se localizava o Arquivo Público, para ler alguns documentos manuscritos da Seção Colonial: leis, editais, testamentos, inventários e processos-crime do século dezoito, produzidos, em sua maior parte, em Ouro Preto, Mariana, Sabará e São João Del Rei, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal.

Sua preparação consistia em se imaginar no ano de 1725 (exatamente duzentos e cinqüenta anos antes do seu nascimento), na praça principal de uma vila mineira, repleta de escravos, roceiros, mineradores, negociantes, prostitutas e negras vendendo quitutes em tabuleiros. Procurava esquecer o presente e suas interferências: desde visões de mundo e idéias sobre o certo, o errado, o justo e o injusto, até o irritante barulho dos notebooks pertencentes a três outros pesquisadores que, todas as tardes, como ele, marcavam presença no Arquivo - cada um ouvindo, à sua maneira, as vozes do passado.

Ao receber os documentos, o historiador colocou as luvas de borracha, ajustou os óculos e a máscara de proteção com cuidado, pegou o primeiro manuscrito e começou a leitura. Era um processo-crime contra um minerador de vinte e cinco anos acusado de assassinar um fazendeiro na cidade de Mariana em 1748. O rapaz era descrito como um faiscador de ouro, solteiro, sem escravos, que vivia em Mariana desde 1745, quando havia chegado de Lisboa com o tio, um comerciante do Algarve, assassinado por um bando de salteadores no Caminho do Sertão quatro meses após o seu desembarque no porto do Rio de Janeiro.

O advogado responsável pela defesa do rapaz era um nobre português formado na Universidade de Coimbra, já conhecido do historiador, pois aparecia em outros processos, sempre defendendo autoridades do governo, mineradores poderosos e negociantes abastados. Mas por que estaria ele atuando na defesa de um minerador pobre, que vivia de faiscar ouro nos morros, mal conseguindo o suficiente para sobreviver?

Continuou a leitura do documento e pouco a pouco foi sendo apresentado aos personagens daquele complexo drama humano: uma viúva desequilibrada, que havia acertado um tiro na perna do marido dois dias antes dele ser assassinado; um ex-escravo, que jurava estar na companhia do acusado na hora do crime; um atravessador de mantimentos, que comprava milho, feijão e azeite de mamona do falecido; uma prostituta que, ao voltar para casa, na noite do crime, teria visto o acusado rondando a fazenda do morto; um fiscal da câmara acusado de contrabando de ouro, amigo do acusado desde a infância, em Lisboa; uma negra forra que afirmava serem o fiscal da câmara e o fazendeiro assassinado inimigos mortais; e uma velha bruxa, acusada de ter jogado um feitiço no fazendeiro alguns dias antes dele ser morto.

Por trás da incômoda máscara de proteção, o historiador conversava com o documento, pedindo mais detalhes, mais informações que lhe permitissem visualizar melhor todo aquele quadro, mas faltavam páginas e, o mais importante, o desfecho do processo. Não encontrou qualquer resposta para as suas perguntas: Quem havia assassinado o fazendeiro? Qual o motivo do crime? Por que o ilustre advogado havia atuado naquele caso, quando não era seu costume defender gente pobre?

O historiador saiu do Arquivo decepcionado. Havia ficado quase cinco horas debruçado sobre aquele processo sem conseguir transcrever qualquer informação útil para a sua tese, e o que era pior: sem desvendar o instigante mistério.

Subiu lentamente a avenida em direção à bela praça centenária, pensando nos milhares de homens e mulheres do século dezoito cujas vidas tinham se perdido na noite dos tempos.

A praça estava em movimento. Dezenas de pessoas caminhavam ou corriam ao redor dos jardins e fontes que, certamente, naquele início de noite, proporcionavam perfume e frescor a muitas almas em sofrimento, obcecadas com o sucesso profissional, a posição social, a riqueza e o poder. “Será que daqui a duzentos anos algum historiador vai se interessar pelos registros deixados por essas pessoas?”, perguntou a si mesmo, ao se sentar em um banco da praça, observando um rapaz e duas moças que corriam juntos, tão sérios e cheios de si que ele quase acreditou estar testemunhando a passagem de três deuses e não de simples mortais.

Levantou-se e caminhou lentamente até o pequeno cinema localizado um quarteirão abaixo da praça. Comprou ingresso para o último filme do Almodóvar, e, como tinha tempo, tomou um café expresso e entrou na livraria, ao lado da entrada principal. Passou vinte minutos folheando os livros, pensando se um dia teria seu trabalho publicado por alguma editora. Tinha quase certeza que sim. Só não sabia se um público não especializado se interessaria pelos fragmentos da vida de tantas pessoas mortas, quando, em pleno século vinte e um, o que o homem cultuava, acima de tudo, era o AGORA, com todas as suas promessas de prosperidade e felicidade para o futuro. "É quase certo que ficarei restrito à Academia", pensou, enquanto se dirigia à sala de exibição para um reencontro fascinante com o universo almodovariano.

Flávio Marcus da Silva

Nelson Rodrigues

"Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade! A dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura".

"As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado".

"Antigamente, o defunto tinha domicílio. Ninguém o vestia às pressas, ninguém o despachava às escondidas. Permanecia em casa, dentro de um ambiente em que até os móveis eram cordiais e solidários. Armava-se a câmara-ardente numa doce sala de jantar ou numa cálida sala de visitas, debaixo dos retratos dos outros mortos. Escancaravam-se todas as portas, todas as janelas; e esta casa iluminada podia sugerir, à distância, a idéia de um aniversário, de um casamento ou de um velório mesmo".

Nelson Rodrigues (1912-1980)

Otto Lara Resende (1922-1992) entrevista seu amigo Nelson Rodrigues, na TV Globo, em 1977:

Parte 1
Parte 2
Parte 3

Zbigniew Preisner

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Tempestade

No dia seguinte ao enterro de sua esposa, o jovem escritor retomou o trabalho com ânimo revigorado. Já não precisava mais interromper a difícil arte de criar cenas e diálogos para receber a mulher em casa, quando ela voltava do consultório ou dos plantões de final de semana, mal-humorada, cansada e triste, sentindo o peso da idade e a desconfiança (cada vez mais próxima da certeza) de que o marido, vinte anos mais jovem que ela, só a recebia com um beijo todos os dias e a levava para a cama uma vez por semana por ela o sustentar, garantindo-lhe casa, comida, roupa lavada e ainda alguns luxos, como jantares requintados e viagens ao exterior, enquanto ele se dedicava à escrita do seu primeiro romance, que não acabava nunca.

Naquele dia, sentou-se diante do computador e escreveu um capítulo inteiro. Ao terminar, olhou para a janela do escritório e viu que o céu estava escuro, iluminado apenas por alguns relâmpagos, que indicavam a aproximação de uma tempestade. Estava exausto. Nunca havia escrito um trecho tão longo em tão pouco tempo. Fechou os olhos por alguns segundos e disse para si mesmo que sua única preocupação, a partir daquele dia, seria com o seu livro. Sua sobrevivência e extravagâncias estariam garantidas pelo dinheiro que receberia do seguro de vida da esposa, pelos dez imóveis alugados que ela possuía (todos em bairros nobres) e pelas aplicações milionárias que ela mantinha em três bancos na cidade. Isso, porque, além de ser uma renomada cardiologista, a defunta era de família rica, e, por incrível que parecesse aos parentes e amigos à época, o seu casamento com o jovem intelectual desempregado, que se dizia escritor, havia sido com comunhão total de bens.

Sorte dele.

O jovem escritor tirou a camisa, a bermuda e os chinelos, levantou os braços, como se espreguiçasse, e, só de cueca, começou a andar pelo enorme apartamento de luxo que, a partir daquele dia, passava a ser só seu. Ao chegar à cozinha, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de vinho francês, aberto na tarde anterior durante uma longa pausa entre dois parágrafos do seu romance, pouco antes de receber o telefonema do hospital comunicando a morte da esposa. Olhou para a garrafa e disse sorrindo: “Que pena”. Pegou uma taça e encheu-a até a borda. “Podia ter vivido pelo menos mais vinte anos”, pensou, bebendo um enorme gole do vinho, “mas quis o destino que ela morresse justamente do mal que tentava evitar, a todo custo, em seus pacientes”. Mais um gole.

Foi para a sala e ligou a TV no canal francês. “Preciso encomendar alguns livros na Livraria Francesa”, pensou antes de se virar para o lado e dormir.

Sonhou que estava no colégio, aos quatorze anos de idade, durante a cerimônia de entrega das medalhas aos melhores alunos do ano. Eles eram chamados pela diretora, que prendia com alfinetes as peças de metal dourado e prateado em seus peitos estufados de orgulho, com direito a fotos, abraços e aplausos por terem se destacado na difícil arte de memorizar questionários, datas, fórmulas, nomes de rios, de cordilheiras, de montanhas.

Além das melhores notas - que ele nunca tirava -, disputava-se também, naquele colégio, a admiração dos colegas mais populares, para o que ele também era um péssimo competidor, por ser tímido, pobre e esquisito, ficando sempre de fora das rodinhas de amigos e a quilômetros de distância das meninas ricas e importantes da sociedade local. Uma vez, no intervalo, uma norte-americana gordinha, intercambista do Rotary, ao passar perto dele, virou para a sua colega brasileira (que adorava exibir seu inglês medíocre, de quem nunca leu um bom livro, nem em português) e disse: He’s so weird! E elas riram, jogando as cabeças para trás, sem disfarçar.

Na seqüência do sonho, logo após a entrega das medalhas, ele estava sentado sozinho em um canto afastado do pátio do colégio, lendo um conto de Poe, quando, de repente, levantou-se, foi até sua sala, abriu a mochila, tirou um fuzil automático de uso exclusivo do Exército e saiu disparando para todo lado.

O massacre foi noticiado no mundo inteiro.

Quando um casal de americanos se aproximou de uma bancada de cimento, no necrotério do hospital, para reconhecer o corpo da filha cravado de balas, o jovem escritor acordou assustado com o barulho ensurdecedor da tempestade que desabava sobre a cidade às três horas da madrugada.

Flávio Marcus da Silva

domingo, 9 de agosto de 2009

Bullying

Crueldade entre crianças e adolescentes é mais comum do que a gente imagina. O Bullying começa na infância e, muitas vezes, na própria família.

Vídeo educativo para crianças
Depoimento
Reportagem

É IMPORTANTE QUE TODOS OS PAIS E EDUCADORES SE UNAM CONTRA ESSE PROBLEMA!

sábado, 8 de agosto de 2009

Teatro

Ao chegar à fazenda, o professor de alemão foi recepcionado pela elegante dona da casa, uma socialite de cinqüenta e seis anos, casada com um dos homens mais ricos do estado. O filho mais velho do casal acabara de chegar da Alemanha com a namorada e mais dois amigos, e a mãe resolveu convidar um grupo seleto de pessoas da High Society para um final de semana na fazenda. Ali, a presença dos recém chegados seria festejada com muita música, bebida, comida e corpos esculturais desfilando de biquíni e sunga pra todo lado.

Junto com os mais destacados colunistas sociais da City (que fariam o registro da festa), o professor de alemão havia recebido um convite especial para o final de semana; não pela sua aparência – era magro demais e tinha o rosto todo deformado por cicatrizes de espinha –, nem pelo seu dinheiro – pois era pobre como qualquer outro professor da cidade –, mas pela sua vasta cultura e refinada educação. A dona da festa esperava que ele animasse os bate-papos, conversando com os visitantes em alemão e traduzindo o que eles dissessem, já que os três não falavam muito bem o inglês e nem arranhavam o português.

A sede da fazenda era uma mansão de três andares cercada de grama verde bem cuidada, jardins exuberantes, piscina aquecida, quadras de futebol, vôlei e peteca, e uma enorme área coberta – com banheiros, sauna, cozinha e churrasqueira –, tudo perto da casa, para facilitar o vai-e-vem das pessoas.

Era sábado de manhã e a mansão estava cheia de convidados.

Conduzindo o professor até a entrada principal, a socialite parou no caminho para chamar o filho, que conversava com a namorada junto ao portão que dava acesso à quadra de peteca. Quando o casal se aproximou, o professor foi imediatamente hipnotizado pela beleza encantadora da jovem alemã – mas não deixou de notar também o olhar triste e inteligente do rapaz que chegava de mãos dadas com ela. A moça era realmente linda, e quando o professor perguntou em alemão se ela estava gostando do Brasil, o sorriso que se abriu em seu rosto antes de responder que “nunca tinha visto gente tão simpática e bonita” tornou sua beleza ainda mais estonteante.

Ao chegarem à porta da sala, que se encontrava aberta, a socialite arregalou os olhos de espanto, esperou alguns segundos, e, tomada de um súbito impulso, tocou a campainha três vezes para chamar a atenção do jovem alemão que, sem camisa e com a bermuda toda amarrotada, beijava ardentemente a boca de uma linda brasileira de seios exuberantes e parcialmente à mostra no sofá. O filho da dona da casa olhou furioso para o amigo que, sem graça, levantou-se e pediu desculpas a todos em alemão. Um pouco constrangido com a situação, o professor foi apresentado ao casal, que saiu imediatamente em direção à piscina. Logo em seguida, a outra alemã (uma linda loira de olhos azuis) saiu de um quarto de mãos dadas com um rapaz brasileiro de pele escura e corpo sarado, ambos em trajes de banho sensuais. “Wir gehen ins Schwimmbad”, disse a jovem, enquanto puxava seu par em direção à porta.

Aproveitando a oportunidade, o filho da socialite e sua namorada pediram licença e seguiram os outros casais até a piscina.

O professor foi conduzido pela sua anfitriã a um luxuoso quarto de hóspedes no segundo andar. Colocou a mala no chão, tirou a roupa e se deitou na cama para descansar.

O almoço foi servido na área da churrasqueira, próximo à piscina. O velho fazendeiro, sentado na ponta da mesa, mantinha um silêncio sepulcral. A esposa, ao contrário, não parava de falar. Contava que o filho havia conseguido uma bolsa de doutorado em Ciência da Informação na Universidade de Berlim com apenas 25 anos de idade, “e hoje trabalha em uma empresa de softwares em Frankfurt, onde ocupa um dos cargos mais importantes e mais bem remunerados do primeiro escalão dos executivos”; que ele morava em um apartamento enorme, no centro da cidade, para onde levaria a esposa, “essa linda moça que vocês estão vendo aqui”, quando se casassem; que ele conhecia toda a Europa e os Estados Unidos, e que estava planejando passar a Lua de Mel em Istambul, “uma das cidades mais lindas do mundo”; que além do alemão, falava inglês, francês e espanhol [pausa].

“Vocês estão gravando tudo?”, perguntou a socialite aos três colunistas sentados à mesa. “É claro que sim, querida”, responderam os três ao mesmo tempo. E ela continuou debulhando o rosário de qualidades do filho que, aos trinta e dois anos, parecia não ter mais para onde subir na vida. Até os colunistas, acostumados com esse tipo de gente, acharam o almoço cansativo. Os únicos que se divertiram de verdade e comeram de tudo várias vezes, se deliciando com as iguarias exóticas de uma farta mesa brasileira, foram os três alemães, que, para felicidade deles, não entenderam nada do que a mulher havia falado.

O filho manteve-se silencioso o almoço inteiro, como o pai, que às vezes dirigia ao rapaz um olhar sério e pensativo.

À tarde, todos se dispersaram, a maioria indo para o interior da casa, para uma soneca. O professor, ao contrário, resolveu dar uma volta a pé pela fazenda, para respirar um pouco de ar fresco e pensar na vida.

Ao se aproximar de um pequeno bosque, distante da casa uns trezentos metros, ouviu dois homens conversando em alemão. Eram o filho da socialite e o rapaz alemão que havia sido surpreendido beijando a brasileira de seios fartos no sofá da sala.

Sorrateiramente, o professor se escondeu atrás de uma árvore para ouvir a conversa.

O brasileiro estava tendo uma crise de ciúmes. O alemão tentava explicar, dizendo que só queria se divertir um pouco, que já não transava com mulheres havia um bom tempo, que aquilo não iria se repetir, etc. O outro parecia não acreditar, e andava de um lado para o outro, arrastando os pés sobre as folhas secas que cobriam o chão. Depois de uma pausa, o brasileiro falou, com voz firme: - Já sei o que eu vou fazer. Vou contar tudo para a minha mãe e para os colunistas amigos dela. Vou dizer toda a verdade: que a minha vida na Alemanha é uma merda; que morar na Europa ou nos Estados Unidos, depois de um tempo, é a mesma coisa que morar em qualquer outro lugar do mundo (é a mesma rotina, o mesmo tédio asfixiante); que eu fui demitido da empresa onde trabalhava por incompetência e não arrumo emprego em lugar nenhum; que o meu pai me sustenta até hoje, sem ninguém saber; que aquela linda moça com quem minha mãe acha que eu vou me casar é uma prostituta de luxo, estudante universitária, paga com o dinheiro do meu pai para vir ao Brasil fingir ser minha namorada; que a outra vagabunda ‘é a irmã desse meu amigo aqui’, uma chantagista sem vergonha que, para vir conosco sem pagar nada, ameaçou encontrar um tradutor em Frankfurt e escrever uma carta para a minha mãe contando que, além de idiota e fracassado, eu sou gay e tenho um caso com o irmão dela, um puto que até hoje não sabe se gosta de homem ou de mulher.

O alemão começou a rir. “Você vai matar a sua mãe; é isso que você quer?”, perguntou. O outro colocou as mãos na cabeça, em desespero, e respondeu: “Não, de jeito nenhum, eu... eu só estou confuso. Confuso e puto com você. Só isso”. Com as duas mãos o alemão segurou o companheiro pelos ombros e disse: “Olha para mim e me escuta. Primeiro nós curtimos o Brasil. Depois nós voltamos para Frankfurt e damos um jeito na nossa vida: você pára de cheirar cocaína, eu paro de beber e de ficar com mulheres, arrumamos empregos decentes e vamos morar juntos. Não vai ser legal?”. Depois de alguns segundos, o brasileiro acabou se deixando levar pela tranqüilidade do outro: “É, vai ser legal... vai ser muito legal, pode ter certeza”, disse.

Depois que os dois saíram, o professor ficou ainda meia hora atrás da árvore pensando no que acabara de ouvir.

Na sexta-feira de manhã, antes de ir para a academia, o professor abriu um dos jornais locais, que tinha acabado de chegar. No caderno Sociedade, viu uma página inteira com fotos do fim de semana na fazenda da rica socialite. Numa delas, viu os três alemães se divertindo na beira da piscina; noutra, a socialite beijando o filho no rosto; noutra, alguns jovens de biquíni e sunga jogando peteca; e noutra, a linda alemã de mãos dadas com o jovem brasileiro, doutor em Ciência da Informação, executivo de uma importante empresa alemã, que acaba de anunciar, para o próximo mês, o seu noivado com uma linda estudante universitária de Frankfurt.


Flávio Marcus da Silva

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Felicidade clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruiva­dos. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implo­rar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, na­dava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tran­qüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquan­to o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhe­ra para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Clarice Lispector, 1971