quinta-feira, 26 de junho de 2014

Na África



"Tinham vindo para a África tropical, esses pequenos esboços de gente, oferecer suas carnes aos patrões, seu sangue, suas vidas, suas juventudes, mártires por vinte e dois francos ao dia (sem os descontos), contentes, ainda assim contentes, até o último glóbulo vermelho flagrado pelo décimo milionésimo mosquito."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 145

imortalidade



"Não acredito em pressentimentos, e augúrios
Não me amedrontam. Não fujo da calúnia
Nem do veneno. Não há morte na Terra.
Todos são imortais. Tudo é imortal. Não há por que
Ter medo da morte aos dezessete
Ou mesmo aos setenta. Realidade e luz
Existem, mas morte e trevas, não.
Estamos agora todos na praia,
E eu sou um dos que içam as redes
Quando um cardume de imortalidade nelas entra."

Arseni Tarkóvski (1907 - 1989), poeta russo. In: Andrei Tarkóvski. Esculpir o tempo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1990

Foto: Arseni Tarkóvski com seu filho Andrei (década de 30)

Primavera nos dentes


"Quem tem consciência para ter coragem 
Quem tem a força de saber que existe 
E no centro da própria engrenagem 
Inventa a contra-mola que resiste 

Quem não vacila mesmo derrotado 
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera"


João Apolinário (1924-1988), poeta português. Primavera nos dentes. In: Modo de usar & Co. (Blog)

O mundo só sabe é matar você


"O mundo só sabe é matar você como quem está dormindo e se vira, o mundo, em cima de você, tal como quem está dormindo mata as próprias pulgas. Isso sim, é que decerto seria morrer muito bestamente, penso eu com meus botões, como todo mundo, quer dizer. Ter confiança nos homens já é se deixar matar um pouco."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 191

domingo, 22 de junho de 2014

Me desculpe



"Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpem a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo os fios das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgues má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves."

Wislawa Szymborska (1923-2012), escritora e poeta polonesa. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

O poeta em Lisboa


"Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos."

António José Forte (1931-1988), poeta português. O poeta em Lisboa: Blog: Modo de usar & Co.


Memórias do subdesenvolvimento



“Tenho 38 anos e já sou um velho. Não me sinto mais sábio nem mais maduro. Mais estúpido. Mais podre do que maduro. Como uma fruta podre. Como o bagaço. Talvez tenha algo a ver com o trópico. Tudo amadurece e apodrece com facilidade aqui. Nada persiste... 

Já sou velho. Desde os 13 anos nos prostíbulos. Aos 15, achava-me um gênio. Aos 25, dono de uma elegante loja de móveis. Depois Laura... 

Minha vida é como um vegetal monstruoso e fofo, de folhas enormes e sem frutos.”

Do filme "Memórias do subdesenvolvimento" (1968), de Tomás Gutiérrez Alea

inabilidades



"Perdemos a maior parte de nossa juventude por conta das inabilidades. Saltava aos olhos que ela ia me abandonar, minha bem-amada, de vez e em breve. Eu ainda não havia aprendido que existem duas humanidades muito diferentes, a dos ricos e a dos pobres. Precisei, como tantos outros, de vinte anos e da guerra para aprender a me manter na minha categoria, para perguntar o preço das coisas e dos seres antes de tocá-los, e em especial antes de desejá-los."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 90

silêncio


"nada se ouve.
o telefone não toca as chaves
não tilintam na porta
que não se abre.
ninguém pisa duro no chão
para desgosto da senhora
que mora embaixo.

ela deve estar contente, agora.

das caixas de som não sai
ruído ou balada
hip hop ou lamento
tantos discos garimpados
compositores raros

nenhum toca, agora.
naquela manhã, o telefone tocou pela primeira vez –
o alt-country que sempre me acordava
mas era de manhã, e eu
sonolenta, resmunguei
deixei que tocasse

quando o telefone tocou pela segunda vez,
estava no banho. não quis molhar o tapete, o chão
e se escorregasse?

o telefone tocou pela terceira vez. eu me precipitava
pelas escadas
atrasada, como de regra.
aonde ia, tão apressada?

não voltei para atender.

o telefone vibrou na bolsa.
dessa vez respondi.
é como dizem: certas notícias correm rápido.
da janela, disseram. vigésimo andar.

desde então as gentes me olham, enternecidas
recebo muitos abraços.
dizem que você faria de toda maneira

se não naquele dia,
em outro
em breve.
dizem que já estava decidido.

e eu me pergunto: o que o teria movido
naqueles últimos instantes

uma despedida?
odiava bilhetes. não deixou nenhum
dramáticas, você dizia
– das pessoas que deixavam bilhetes.
você sempre disse
que gostaria de ir em silêncio
sem alvoroço
que não houvesse choros ou censuras
que a morte era de cada um para escolher
o momento.
eu cobria os ouvidos.

só depois – agora –
quietude.
como você queria.
escuto:
nada toca
você não entra com estrépito pela porta
não assovia desafinado
ou dança catira para incomodar a vizinha

silêncio. de ruído apenas
o som dos telefonemas
daqueles três telefonemas
que soaram
ressoaram

e eu não atendi."


Jeanne Callegari (1981-), escritora e poeta brasileira, nascida em Uberaba. Blog: Modo de usar & Co. Editores: Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck

Orai


"enquanto os vermes te dissolvem no Nada
entras gloriosa nos Campos da Paz Celestial
enquanto tuas moléculas se reúnem desintegradas 
para decidir se te mutam em violino ou máquina de costura
as sete trombetas te anunciam na nave dourada do Sol
enquanto tua carne cansada se mineraliza
tua alma liberta encara a fila para o Juízo Final

ouço o ranger de dentes na sala de espera desse SUS cristão
onde a alta é o passe livre para o paraíso
e o castigo é permanecer ad eternum no limbo
onde ninguém sabe o que foi, o que é, o que será
onde mesmo as moléculas não sabem no que se transmutarão
e seus átomos desorientados, apenas tramam"

Chacal (1951-). orai. Blog: Modo de usar & Co. Editores: Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck

Morreu



"– Para começar, como é que ele morreu, o sujeito?
– Pegou uma granada bem no meio da fuça, meu chapa, e para completar uma imensa, lá em Garance, era o nome do lugar... na Meuse, na beira de um rio... Não se encontrou nem 'isso' do cara, meu velho! Ficou só a lembrança, sabe... E pensar que era alto e parrudo, o sujeito, forte, e esportivo, mas contra uma granada, hein? Não há quem resista!
– É verdade!
– Mortinho da Silva, foi como ele ficou... A mãe dele ainda se nega a acreditar nisso, até hoje! Por mais que eu diga e repita... Quer que ele esteja só desaparecido... É completamente cretina uma ideia dessas... Desaparecido! Não é culpa dela, coitada, nunca viu uma granada, não pode entender que a gente some pelos ares assim, que nem um peido, e que depois tudo acaba, sobretudo porque é o filho dela..."

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 117

Singrávamos para a África



"Nosso navio tinha nome: Amiral-Bragueton. Só devia se manter em cima daquelas águas mortas graças à sua pintura. Tantas demãos acumuladas tinham acabado por lhe formar uma espécie de segundo casco para o Amiral-Bragueton, que nem uma cebola. Singrávamos para a África, a verdadeira, a grande; essa das insondáveis florestas, dos miasmas deletérios, das solidões invioladas, rumo aos grandes tiranos negros aboletados nos cruzamentos de rios que nunca mais que acabam. Em troca de um pacote de lâminas Pilett eu ia contrabandear com eles marfins do tamanho de um bonde, pássaros flamejantes, escravas menores de idade. Juro que ia. Isso é que é vida, ora se é!" 

Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Viagem ao fim da noite (1932). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 123

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sobre um tema de Confúcio



"Que fique pelo menos um homem
sozinho num bar deserto pensando
em nada de especial e curtindo
pessoas atarefadas que passam.

Que a ele pelo menos aquilo
tudo — a pressa das tarefas e os carros —
pareça uma paisagem vazia
e até certo ponto sem cabimento.

Que esse homem sentado, soterrado
talvez em decepções amargas, se oriente
para ouvir a canção além dos passos
e além de sua própria pessoa

que assim no delírio urbano ressoa
sem função social senão deixar
que a boca filosofe assobiando
e o ouvido obediente perceba."

Leonardo Fróes (1941-). Sobre um tema de Confúcio. Fonte: Blog: Modo de usar & Co. Editores: Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Proprietário!



"A International Computers se dispõe a adiantar aos novos empregados o pagamento da entrada de uma casa adequadamente modesta. Em outras palavras, com uma assinatura pode se tornar proprietário (ele! proprietário!) e ao mesmo tempo comprometer-se com os pagamentos da hipoteca, que o ligarão a esse emprego pelos próximos dez ou quinze anos. Em quinze anos, será um velho. Uma única decisão precipitada, e terá renunciado à sua vida, renunciado a todas as chances de se tornar um artista. Com uma pequena casa própria numa fileira de casas de tijolo vermelho, será absorvido na classe média britânica, sem deixar traço. Todo o necessário para completar o quadro será uma esposa e um carro."

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (2002). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 138

Princípio de realidade


"É um mundo do qual pode escapar – não é tarde demais para isso. Por outro lado, pode fazer as pazes com esse mundo, como vê os homens à sua volta fazerem, um a um: contentando-se com o casamento, com uma casa e um carro, contentando-se com o que a vida tem de realista para oferecer, mergulhando as energias no trabalho. Fica mortificado de ver como o princípio de realidade funciona bem (...)."

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (2002). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 146

O que é a verdade afinal?



"Não gosta de más notícias. Acima de tudo não gosta de más notícias a respeito de si mesmo. 'Já sou bastante duro comigo mesmo', diz consigo; 'não preciso da ajuda de ninguém'. É um sofisma a que recorre uma vez ou outra para fechar os ouvidos às críticas: aprendeu seu uso quando Jacqueline, da perspectiva de uma mulher de trinta anos, lhe deu sua opinião sobre ele como amante. Agora, assim que um relacionamento começa a ficar sem gás, ele se retira. Abomina cenas, explosões de raiva, verdades íntimas ('Quer saber a verdade sobre você?'), e faz tudo o que pode para escapar disso. O que é a verdade afinal? Se ele é um mistério para si mesmo, como pode ser algo diferente de um mistério para os outros?".

J. M. Coetzee (1940-). Juventude (Youth). São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 130-1