sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Baixa de Lisboa

Depois de tomar um café duplo na pastelaria da esquina, perto da pensão (e sempre que me batia aquela angústia terrível, que apertava o meu coração sem piedade, eu tomava um café forte, revigorante, numa chávena bem grande), embrulhado no sobretudo ridículo que eu havia comprado em uma loja de roupas usadas em Belo Horizonte (achando que era moda na Europa), peguei o Metro perto dali e desci na Estação Saldanha. Meu primeiro contato com a Baixa foi estranho. Não sei bem como descrever: eu olhava para os lados e via igrejas e prédios enormes dos séculos XVIII e XIX; sentia um cheiro diferente, de passado, de coisa boa, não sei explicar. Era como estar numa Ouro Preto gigante, diria eu, abestalhado, naquela ocasião, sem qualquer outra referência; mas hoje vejo que tudo aquilo era muito diferente da nossa antiga e pobre Vila Rica. A Metrópole era muito mais fria, mais dura, distante e triste.

Flávio Marcus da Silva, fevereiro de 2009.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Versos de Natal

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.

Manoel Bandeira (1939)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Do Rossio à Rua da Madalena

Meu lugar favorito de Lisboa, naturalmente, é o Rossio, onde invariavelmente desemboco pela mesma saída do Metro, em cima da Suíça, uma pastelaria de dezenas de mesas na calçada, em que as pessoas passam o dia todo tomando um cafezinho (uma "bica”) mordiscando bolinhos e paquerando as nórdicas que ali vêm fazer a praça. Graves decisões: vou na direção do Café Nicola ou passo antes pela Praça da Figueira? Nós, vagabundos, temos problemas como quaisquer outros mortais. Pela Praça da Figueira, eu pego a rua da Madalena, onde se situa minha ervanária favorita. Julgo de bom alvitre passar pela ervanária, afinal há muito tempo que não vou lá, preciso saber das novidades. E, assim, imerso num incrível rebuliço de gente, cheiros, cores e ruídos, marcho para a Praça da Figueira. Há um camelô muito sério, demonstrando um fantástico cortador de vidro. Pega lâminas de vidro de uma caixa e, conversando em alta velocidade, corta fatias de vidro como alguém tiraria rodelas de uma cenoura. "Quanto é o cortador aí?" pergunto eu, subitamente, achando que não posso passar sem um cortador de vidro — não há coisa mais indispensável para um escritor. São 150 escudos, pago sem discutir e vou de cortador em punho para a ervanária, cujo cheiro indescritível já começo a sentir desde a esquina. Lembro os prospectos: há chás e tisanas para tudo, inclusive para duas doenças que pretendo divulgar bastante, quando voltar ao Brasil: a fraqueza nervosa (da qual já padeço, esporadicamente) e o afrontamento de senhoras. Ainda não consegui informações precisas a respeito do que é o afrontamento de senhoras e tive vergonha de perguntar ao caixeiro meu amigo, na ervanária. Mas qualquer um concordará que se trata de uma enfermidade a ser gravemente considerada. Resolvo levar alguns sacos de chá para afrontamento de senhoras, quando voltar ao Brasil, em meio a minha bagagem de ervas milagrosas, com as quais pretendo receitar todo mundo. Na ervanária, não muitas novidades, a não ser umas pílulas de alho de fabricação revolucionária, que o caixeiro me recomenda com ênfase. Mas, as antigas? — pergunto eu, hesitante. Continuam boas, responde ele, mas nestas cá vê-se o óleo através das cápsulas. De fato, vê-se o óleo. É um argumento irresistível. Compro duas caixas, umas certas pílulas de pau d'arco, uma garrafinha de extrato de ginseng, mais umas miudezas e, com meu saquinho, volto pausadamente à Praça da Figueira, parando para olhar as vitrinas (as montras, perdão) de comida, arrumadas das maneiras mais caleidoscópicas pelas ruelas em volta do Castelo de São Jorge: sapatas, amêijoas, santolas, chamuças, carapaus, fiambres, chouriços, ginjinhas. De vez em quando, eu entro num desses estabelecimentos, só para ver a exposição das comilanças. Eles vêm ver o que eu quero e, quando explico que estou ali somente para uma espécie de fruir estético, eles até me oferecem, de vez em quando, uma excursão turística pela despensa e pela cozinha. Marco mentalmente o meu almoço: vou ao restaurante de Mimi, no Parque Meyer, comer na varanda, entre as plantas e alguns velhos atores de teatro de revista, conversando com os gatos e tomando o vinho da casa.

João Ubaldo Ribeiro

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Pedido de Adoção

Estou com muita saudade
de ter mãe,
pele vincada,
cabelos para trás,
os dedos cheios de nós,
tão velha,
quase podendo ser a mãe de Deus
— não fosse tão pecadora.
Mas esta velha sou eu,
minha mãe morreu moça,
os olhos cheios de brilho,
a cara cheia de susto.
Ó meu Deus, pensava
que só de crianças se falava:
as órfãs.

Adélia Prado

A rotina perfeita é Deus

Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em Ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá a sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.

Adélia Prado

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Orgulho


Aniquilarei a altivez de sua numerosa população, e sua arrogância transformar-se-á em luto

Baruc, 4


Nunca permitas que o orgulho domine o teu espírito ou tuas palavras, porque ele é a origem de todo o mal

Tobias, 4, 14


Fazei, Senhor, que o orgulho desse homem seja cortado com sua própria espada

Judite, 9, 12


A soberba precede à ruína; e o orgulho, à queda

Provérbios, 16


A zombaria e a ofensa são próprias dos orgulhosos; a vingança os espreita como um leão

Eclesiásticos, 27, 31


[...] para que todas as árvores junto às águas não se exaltem na sua estatura, nem levantem o seu topo no meio dos ramos espessos, nem as que bebem as águas venham a confiar em si, por causa da sua altura; porque todos os orgulhosos estão entregues à morte e se abismarão às profundezas da terra, no meio dos filhos dos homens, com os que descem à cova

Ezequiel, 31, 14


A soberba dos mortais será abatida, e o orgulho dos homens será humilhado. Só o Senhor será exaltado naquele tempo

Isaías, 2, 11

Eu quero

(...) Eu quero a dor do homem na festa de casamento,

seu passo guardado, quando pensou:

a vida é amarga e doce?

Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,

os olhos cheios d'água sob as lentes.


Adélia Prado