sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Um jovem escritor

Aquela cena do escritório se entranhou em mim. Aqueles charutos, as roupas finas. Pensei em belos bifes, longos passeios por passagens cheias de curvas que levavam a casas maravilhosas. Boa vida. Viagens à Europa. Mulheres de alta classe. Eles eram assim tão mais espertos do que eu? O que nos diferenciava era a grana e o desejo de acumulá-la.

Eu também poderia fazer isso! Economizaria meus tostões. Eu teria uma grande idéia, pegaria um financiamento. Contrataria e despediria. Manteria garrafas de uísque na gaveta da minha escrivaninha. Teria uma esposa com enormes peitos e um rabo que faria o jornaleiro da esquina gozar nas calças só de vê-lo balançar. Eu iria traí-la e ela saberia e ficaria quieta para continuar morando comigo e usufruindo minha riqueza. Eu demitiria os sujeitos só para ver a palidez de seus rostos. Demitiria mulheres que não mereciam tal destino.

Isto era tudo de que um homem necessitava: esperança. Era a falta de esperança que desencorajava um homem. Lembrei de meus dias em Nova Orleans, vivendo de duas barras de caramelo de cinco centavos por dia, ao longo de várias semanas, para ter tempo livre para escrever. Mas passar fome, infelizmente, não melhora a arte. Apenas a obstrui. A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago. Um homem pode escrever muito melhor após comer um belo pedaço de filé acompanhado de uma dose de uísque do que depois de uma barra de caramelo de um níquel. O mito do artista faminto é um embuste. Uma vez que você percebe que tudo é um embuste, você fica esperto e passa a sangrar e queimar seus semelhantes. Eu ergueria um império sobre as carcaças e vidas destroçadas de homens, mulheres e crianças indefesos - eu os atropelaria. Eu lhes daria uma bela lição!

Eu tinha chegado à pensão. Subi as escadas até meu quarto. Girei a chave, acendi as luzes. A sra. Downing havia colocado uma correspondência junto à porta. Era um evelope pardo, grande, enviado por Gladmore. Recolhi-o do chão. Estava pesado pelos manuscritos rejeitados. Sentei-me e abri o envelope.

Caro sr. Chinaski:

Estamos devolvendo esses quatro contos, mas vamos ficar com Minha alma embriagada de cerveja é mais triste do que todas as árvores de Natal cortadas sobre a face da Terra. Temos acompanhado o seu trabalho por longo tempo e estamos felizes de aceitar essa história.

Atenciosamente,

Clay Gladmore

Levantei-me da cadeira, segurando ainda a carta de minha aceitação. MINHA PRIMEIRA. Da revista literária número um da América. O mundo nunca parecera tão bom, tão cheio de promessas. Fui até a cama, sentei-me, voltei a lê-la. Estudei cada curva da assinatura à mão de Gladmore. Levantei-me, fui com a aceitação até a cômoda, guardei-a lá dentro. Depois me despi, apaguei as luzes e fui para a cama. Não conseguia dormir. Levantei-me, acendi as luzes, fui até a cômoda e voltei a ler a carta:

Caro sr. Chimaski...

Charles Bukowski, Factótum (1975). Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 52-3.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A morte de Ivan Ilitch

De repente ocorria-lhe mudar todos os álbuns de lugar e colocá-los no canto da sala onde estavam as plantas. Chamava o empregado, mas quem vinha em seu socorro era sua mulher ou sua filha, que nunca concordavam com ele, contrariavam-no e ele discutia e acabava se irritando. Mas estava tudo bem, desde que ele não pensasse nela. Ela não estava ali.

Mas bastava sua esposa dizer, assim que o via carregar ele mesmo alguma coisa: "Deixe que os empregados fazem isso, você vai se machucar outra vez" e imediatamente ela punha os olhos para dentro do abrigo que o protegia. Ele podia vê-la. Ela só dera uma espiada e ele tinha esperanças de que desaparecesse, involuntariamente. Via-se esperando por ela - e lá estava, a mesma de antes, doendo, doendo o tempo todo e agora já não podia esquecê-la e ela o olha atentamente por detrás das flores. "De que adianta isso tudo?"

(...)

Ele então ia para seus aposentos, deitava-se e outra vez ficava a sós com ela. Cara a cara com ela. E não havia nada que ele pudesse fazer com ela, a não ser olhar e estremecer.

(...)

O que mais atormentava Ivan Ilitch era o fingimento, a mentira, que por alguma razão eles todos mantinham, de que ele estava apenas doente e não morrendo e que bastava que ficasse quieto e seguisse as ordens médicas que ocorreria uma grande mudança para melhor. Mas ele sabia que nada do que fizessem teria outro resultado que não mais agonia, mais sofrimento e a morte. E a farsa desgostava-o profundamente: atormentava-o o fato de que se recusassem a admitir o que eles e ele próprio bem sabiam, mas insistiam em ignorar e forçavam-no a participar da mentira. Esse fingimento que se estabeleceu em torno dele até a véspera de sua morte, essa mentira que só fazia colocar no mesmo nível o solene ato de sua morte, suas visitas, suas cortinas, seu caviar para o jantar...eram-lhe terrivelmente dolorosos.

(...)

Quando o exame terminou o médico olhou para o relógio, e Praskovya anunciou a Ivan Ilitch que naturalmente ele decidiria, mas ela já havia procurado um célebre especialista que o examinaria e se reuniria depois com Mihail Danilovich (o médico da família).

- Por favor, não faça objeções. Estou fazendo isso por mim - disse cinicamente, dando a entender que estava fazendo isso por ele e só dizia o contrário para não lhe dar o direito de recusar. Ele ficou em silêncio, franzindo as sobrancelhas. Sentia-se emaranhado em uma rede de tamanha falsidade que ficava difícil livrar-se do que quer que fosse.

Tudo que ela fazia para ele era inteiramente para si mesma, e ela costumava dizer a ele que estava fazendo por ela mesma o que de fato ela estava fazendo por ela mesma, como se isso fosse tão inacreditável que só pudesse significar o contrário.

(...)

Seu casamento...tão gratuito quanto o desencanto que se seguiu. E o mau hálito de sua esposa e os momentos de sensualidade e a hipocrisia! E aquela odiosa vida oficial e a preocupação com dinheiro. Um ano, dois anos, dez, vinte e sempre a mesma coisa. E quanto mais o tempo passava, mais detestável ficava. "Como se eu estivesse caindo montanha abaixo, imaginando estar subindo. E era assim mesmo. E na opinião dos outros eu estava o tempo todo subindo e todo o tempo minha vida deslizava sob meus pés. E agora acabou tudo e é hora de morrer. Mas do que se trata afinal? Por que tem de ser assim? Não pode ser que a vida seja tão destestável e sem sentido.

(...)

Passaram-se outros quinze dias. Ivan Ilitch agora não saía mais do sofá. Não deitava mais na cama, só no sofá. E de olhos fixos na parede a maior parte do tempo, deitado, na solidão, sofria todas as inexplicáveis agonias e fazia sempre a mesma pergunta sem resposta: "O que é isto? É possível que isto seja a morte?". E a voz interior respondia: "Sim, é possível". "Por que toda essa agonia?" E a voz respondia: "Por nenhuma razão. É assim e pronto". Não havia nada além disso ou ao lado disso.

(...)

Do momento em que começou a gritar, Ivan Ilitch prosseguiu por mais três dias e eram gritos tão horríveis que podiam ser ouvidos de porta fechada, dois quartos adiante.

(...)

Para ele tudo aconteceu em um único instante e a sensação daquele instante não mudou dali em diante. Para os que presenciavam sua agonia, esta durou mais duas horas. De sua garganta ainda saía um som e via-se um estranho movimento de seu corpo já sem vida. Até que a respiração ofegante e o som passaram a vir em intervalos cada vez maiores.

- Acabou! - disse alguém perto dele, o que ele repetiu dentro de sua alma.

"A morte está acabada", disse para si mesmo. "Não existe mais".

Respirou profundamente, parou no meio de um suspiro, esticou o corpo e morreu.

Leon Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch (1a edição: 1886). Porto Alegre, L&PM, 2009. Tradução de Vera Karan.