quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Persuasão

"Não tem nada mais ridículo do que uma pessoa tentando convencer outra. Trabalhei com persuasão minha vida toda, a persuasão é o maior câncer do comportamento humano. Ninguém nunca devia ser convencido de nada. As pessoas sabem o que querem e sabem do que precisam. Sei disso porque sempre fui especialista em persuadir e inventar necessidades, e é por isso que tá cheio de plaquinha naquela parede. Não tenta me dissuadir. Se tu me convencesse a não me matar, tu me transformaria num aleijado, eu viveria mais alguns anos derrotado, mutilado e doente, implorando por misericórdia. Isso é sério. Não tenta me persuadir. Persuadir uma pessoa a não seguir o coração é obsceno, a persuasão é uma coisa obscena, a gente sabe do que precisa e ninguém pode nos aconselhar. O que eu vou fazer tá decidido há muito tempo, antes de eu próprio ter a ideia."
Daniel Galera (1979-). Barba ensopada de sangue (2012). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 32

Growing old



"The compensation of growing old, Peter Walsh thought, coming out of Regent's Park, and holding his hat in his hand, was simply this; that the passions remain as strong as ever, but one has gained – at last! – the power which adds the supreme flavour to existence – the power of taking hold of experience, of turning it round, slowly, in the light."

Virginia Woolf (1882-1941). Mrs. Dalloway (1925). London: Penguin Books, 1996, p. 88

sábado, 17 de outubro de 2015

Tempo

"...eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte..." p. 603

"O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?" p. 601

João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

Medo não me conheceu

"Medo não me conheceu, vaca! Carabina. Quem mirou em mim e eu nele, e escapou: milagre; e eu não ter morrido: milagremente. A morte de cada um já está em edital. Dia de minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor escute. Mas o inimigo fuzuava – tiroteio total.
Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. (...) Era a cara pura da morte – Av'ave! Marcelino Pampa, logo esse. Nem olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em dois, ia encostar no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, e bofou da boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele. Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais que vive, sem susto de instantaneamente, e está ainda com remela nos olhos, ranho môco no nariz, cuspes na boca, e obra e urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer."
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 597-8

O beijo


informações


"olha, sabes que hoje em dia se armazena informação que nunca, em toda a eternidade, vai voltar a ser consultada. (...) é que com isto da informática tudo se regista, do mais importante ao mais insignificante. desde as coisas do estado até à rotina dos adolescentes. e muito do que se regista não será mais consultado, porque não haverá ninguém com interesse ou sequer com tempo para o fazer. que angústia. é como haver muita gente a querer deixar uma marca para o futuro e o futuro estar sobrelotado. está cheio, não é suficiente para toda a gente. pois a mim parece-me bem morrer e mais nada. sim, morrer e ficar mortinha sem mais aborrecimento, nem o de alguém se ocupar comigo. depois de mortas, havemos de estar melhor, nem sou de querer deixar rasto onde só nos tramam. (...) morre-se e tudo há de ser melhor."
Valter Hugo Mãe (1971-). o apocalipse dos trabalhadores (2008). São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 34

esquecimento

"morrerei depois de muito se esquecerem de mim. as pessoas que ficam para aqui esquecidas, sabes, até são as mais fortes. se não as toca coisa alguma. vão restando e restando, até não restar mais nada."
Valter Hugo Mãe (1971-). o apocalipse dos trabalhadores (2008). São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 20

a felicidade das máquinas

"gostava de acreditar que a vida podia existir apenas como para uma máquina de trabalho perfeita, incumbida de uma tarefa muito definida, com erro reduzido e já previsto, e com isso atender ao mais certeiro objetivo, enviar algum dinheiro para a família na ucrânia, e nem pensar muito nisso e nunca dramatizar a questão. (...) pensar no ato como um ofício a mais, um item nos seus afazeres, retirar daí a felicidade das máquinas, uma espécie de contínuo funcionamento sem grandes avarias ou interrupções. a felicidade das máquinas, para não sentir senão através do alcance constante de cada meta, sempre tão definida e cumprida quanto seria de esperar de si."
Valter Hugo Mãe (1971-). o apocalipse dos trabalhadores (2008). São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 47

vida


"a etelvina pusera-lhes cadeiras prontas e uma mesa onde serviu um vinho perfeito e um bolo que ela mesma fizera. a maria da graça sentara-se primeiro, as pernas quase lhe fraquejavam, e desculpava-se perguntando se podia ajudar. a quitéria agarrou nos copos, dispersou-os pela mesa e encheu-os enquanto a etelvina partia o bolo e sorria oferecendo-se toda em simpatias. a maria da graça não se lembrava de algum dia ter sido alvo de tão delicada mordomia. não passara férias nunca, senão por três noites em lua de mel quando fora para o porto e ficara no quarto de uma pensão barata a ser deflorada pelo augusto. quando bebeu o primeiro gole de vinho julgou que a vida, se fosse justa, poderia ser feita daquilo e de mais nada. ao inventar coisas, quem inventara, deveria ter-se ficado por aquilo, um vinho, uma amizade sincera, o calor magnífico do fim da tarde, a paisagem mais bela de todas. era tão fácil inventar só aquilo e só com aquilo garantir com segurança que as pessoas do mundo inteiro seriam felizes."
Valter Hugo Mãe (1971-). o apocalipse dos trabalhadores (2008). São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 149

felicidade

"naquela tarde tinha tocado o requiem do mozart naquela casa e a maria da graça tinha a sensação de que tal fúnebre ato era como o erguer de um radar para as almas mais delicadas. quem por ali passasse e escutasse tão tristes melodias haveria de estar à porta da morte. o senhor ferreira a matar até os desconhecidos, incapaz de perdoar ao mundo a morte do pai e a ideia tão capitalista da felicidade.
a felicidade, disse-lhe, é posta diante de nós como uma extremidade do dinheiro. levantou-se, abriu a janela e ela levantou-se também seguindo de pés descalços para o seu lado. (...) a felicidade, pensava ela, não sei o que é. sei que não somos umas máquinas sem paragem. não podemos estar para aqui a trabalhar enquanto nos pedem que passemos da cera do chão para a partilha das memórias mais difíceis da vida."
Valter Hugo Mãe (1971-). o apocalipse dos trabalhadores (2008). São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 145-6

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Quero voar e cair de muito alto

"Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!
Não quero fecho nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!
...
Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstrato auge no fim de mim e de tudo!"
Fernando Pessoa (1888-1935). Poemas escolhidos. São Paulo: Klick, p.113-114

Fear no more

"...and the whole world seems to be saying 'that is all' more and more ponderously, until even the heart in the body which lies in the sun on the beach says too, that is all. Fear no more, says the heart. Fear no more..."
Virginia Woolf (1882-1941). Mrs. Dalloway (1925). London: Penguin Books, 1996, p. 45

Larguras de claridade



"Assim eu entrei dentro da minha liberdade. (...) Somente eu sabia respirar. Sumo bebi de mim, e do que eu não me tonteava. Só estive em meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração copia é o eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado... Ali eu diante de portas abertas, por livre ir, às larguras de claridade... Acho que foi assim."
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 481

Grande Sertão

"– Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – ...ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo." p. 537


"O passado – é ossos em redor de ninho de coruja..." p. 538


"Meu espírito era uma coceira enorme. Como eu ia poder contra esse vapor de mal, que parecia entrado dentro de mim, pesando em meu estômago e apertando minha largura de respirar?" p. 509

"Guarde o senhor: não pude completo. Mas, guarde, por outra: o dia vindo depois da noite – esse é o motivo dos passarinhos..." p. 506


"Assim, de jeito tão desigual do comum, minha vida grangeava outros fortes significados." p. 504


"Ser Chefe de jagunço era isso. Ser o que não dava realce – qualquer um podia, fazendeiro com posses, mão em política. O sertão tudo não aceita? A minha pessoa era nada, glória de Zé Bebelo era nada. O que dá fama, dá desdém. O menos de me importar." p. 503

"A vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada." p. 477


"– 'O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado...' – ele seo Ornelas dizia. – 'O sertão é confusão em grande demasiado sossego...'." p. 470


"Agora, o tempo de todas as doideiras estava bicho livre para principiar." p. 455


"O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo." p. 450-1

João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001


Instante


"...sem prazo, se esquentou em mim o dôido afã de matar aquele homem, tresmatado. O desejo em si, que nem era por conta do tal dinheiro: que bastava eu exigir e ele civilmente me entregava. Mas matar, matar assassinado, por má lei. Pois não era? Aí, esfreguei bem minhas mãos, ia apalpar as armas. Aí tive até um pronto de rir: nhô Constâncio Alves não sabia que a vida era do tamanhinho só menos de que um minuto...
Ah, mas, então, do sobredentro de minhas ideias – do que nem certo sei se seja meu uma minha-voz, vozinha forte demais, de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão curta ocasião que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço de entrar, então, em meus grandes palácios. No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha dizia: – 'Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar tua decisão!...' A anteguarda que ouvi, e ouvi seteado; e estribei minhas forças energias. Que como? Tem então freio possível? Teve, que teve. Aí resisti o primeiramente. Só orçava. O instante que é, é – o senhor nele se segure. Só eu sei."
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 486

Sertão velho de idades

"Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol e os pássaros: urubú, gavião – que sempre vôam, às imensidões, por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele..."
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 558

Sertão



"Quem assim viemos. Mas, conto ao senhor as coisas, não conto o tempo vazio, que se gastou. E glose: manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão grande, é dificultoso. Vai viagens imensas. O senhor faça o que queira ou o que não queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso. O senhor..."
João Guimarães Rosa (1908-1967). Grande Sertão: Veredas (1956). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 548

Excelência

"Quando falo em excelência, não me refiro a ser o melhor de todos, ideia que me parece arrogante e tola. Nada pior do que um arrogante bobo, o tipo que chega a uma reunião, seja festa, seja trabalho, e já começa achando todos os demais idiotas. Nada mais patético do que aquele que se pensa ou se deseja sempre o primeirão da classe, da turma, do trabalho, do bairro, do mundo, quem sabe? Talento e discrição fazem uma combinação ótima.
Então, excelência para mim significa tentar ser bom no que se faz, e no que se é. Um ser humano decente, solidário, afetuoso, respeitoso, digno, esperançoso sem ser tolo, idealista sem ser alienado, produtivo sem ser viciado em trabalho. E, no trabalho, dar o melhor de si sem sacrificar a vida, a família, a alegria, de que andamos tão carentes, embora os trios elétricos desfilem e as baladas varem a madrugada."
Lya Luft. "Buscando a excelência" (crônica)

The future

"He had been sent down from Oxford – true. He had been a Socialist, in some sense a failure – true. Still the future of civilization lies, he thought, in the hands of young men like that; of young men such as he was, thirty years ago; with their love of abstract principles; getting books sent out to them all the way from London to a peak in the Himalayas; reading science; reading philosophy. The future lies in the hands of young men like that, he thought."

Virginia Woolf (1882-1941). Mrs. Dalloway (1925). London: Penguin Books, 1996, p. 56-7