quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

micro

"Fazer pactos com o nada
renegociar o vazio
palavrear carências
aliar-se ao pouquíssimo"

Ajo (poeta espanhola). In: modo de usar & co (blog)

Na biblioteca


"Na biblioteca de paredes altas e mofadas do prédio quase centenário da faculdade, Pedro tentava ler os livros e os capítulos pedidos pelos professores. Mas sua atenção morria sem fôlego no amontoado de palavras estranhas, alheias. Adormecia nas marteladas sem ritmo de frases cada vez mais distantes. Os títulos e subtítulos começaram a soar estridentes, hostis, como uns latidos. Seus olhos se desviavam espontaneamente para as imensas árvores de mais de cem anos no parque em frente, emolduradas pelas janelas muito altas. Ele se demorava ali à toa num torpor, observando a folhagem densa, a profusão dos galhos, a leve transformação das cores e das sombras à medida que o sol baixava."

Rubens Figueiredo (1956-).
Passageiro do fim do dia (2010). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 44

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Bibliotecas e cemitérios


“Havia dois lugares em todo o Universo onde ela estava certa de não ser incomodada: as bibliotecas e os cemitérios. O silêncio dos mortos e dos livros não tinha nada de embaraçoso. (...) Ela sabia que era aceita e amada nesses lugares sem nenhuma condição. Pode-se confiar nos mortos e nos livros. Anos antes, quando, na escola, lhe pediam para escrever na sua ficha de apresentação o que ela queria fazer mais tarde, ela pensava nos cemitérios e nas bibliotecas. Ou ela seria morta, ou escreveria.”

[« Il y avait deux lieux dans tout l’Univers où elle était sûre de ne pas être dérangée : les bibliothèques et les cimetières. Le silence des morts et des livres n’a rien d’embarrassant. (...) Elle savait que, sans condition, elle était acceptée et aimée dans ces lieux. On peut faire confiance aux morts et aux livres. Des années plus tôt, quand, à l’école, on lui demandait de noter sur sa fiche de présentation ce qu’elle voudrait faire plus tard, elle pensait aux cimetières et aux bibliothèques. Soit elle serait morte, soit elle écrirait. »]


Martin Page (1975-). On s’habitue aux fins du monde (2005). Paris : J’ai lu, p. 123

domingo, 21 de dezembro de 2014

Não me interessa ter razão


"Não me interessa ter razão, não tenho apetência para esse tipo de poder, de marcar uma posição, dar um murro na mesa. Se entro numa discussão é à maneira chinesa, simplesmente para sugerir que pode haver outra maneira de olhar para as coisas."

"...se nos colocarmos no território de ganhar, vamos suscitar no outro apetites enormes numa vida onde se perdeu quase sempre, e as pessoas agarram-se a esses pequenos triunfos. Se conseguirmos retirar o assunto do território da disput
a é mais fácil convencer as pessoas de que há outros modos de olhar. Dou-me bem com esta forma de fazer guerras. O provérbio chinês 'o general que ganhou a guerra sem fazer nenhuma batalha' é um lema da minha vida."

Mia Couto, em entrevista à RA - Rede Angolana

A arte de parar


"Não se deve confundir ficar sem fazer nada com uma falta total de atividade. Não fazer nada é de fato fazer algo muito importante. É permitir que a vida aconteça – a sua vida. Não fazer nada é algo muito profundo."

David Kundtz.
A essencial arte de parar, p. 23

domingo, 14 de dezembro de 2014

A arte e a ciência de não fazer nada


"Colocar a cabeça constantemente num estado de vigilância é muito perigoso a longo prazo. Só como exemplo, uma recente revisão sistemática de todos os estudos clínicos sobre horas de trabalho e doença cardíaca coronária mostrou que as pessoas que trabalham mais horas têm 40% de risco extra de doença do coração. Isso é quase tão grave quanto fumar. Acho que quando realmente podemos ficar ociosos sem culpa ou vergonha, nosso cérebro pode processar toda a energia emocional – e a princípio isso pode parecer estranho, mas é certamente benéfico para nossa saúde física e mental a longo prazo." (p. 47)
"Acredito que coisas como a desigualdade de riquezas e o tipo de economia de privilégios que temos impedem as pessoas de realmente descobrirem o que gostam de fazer – ou não fazer, conforme o caso." (p. 48)
"Não estou certo sobre o que deveria vir antes: a luta por melhores salários ou por menos trabalho. Isso porque incrementar marginalmente seu salário parece sempre levar a muito mais trabalho em proporção à remuneração, já que as empresas precisam a todo momento maximizar os lucros..." (p. 49)

Entrevista com Andrew Smart, sobre seu livro "Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing". OR Books. In: Revista
Vida Simples, jun. 2014

Ação e reação


"...toda ação executada deixa uma semente na área mental da mesma natureza da ação cometida. Portanto, tal semente irá amadurecer gerando um efeito similar à ação realizada. Ou seja, se trapacearmos alguém para nos beneficiar momentaneamente, estaremos criando causas para sermos trapaceados. Já se formos generosos, criamos causas para recebermos generosidade."
"Buda ensina que é um autoengano considerar que é possível se beneficiar prejudicando alguém."

Kelsang Mudita. O budismo e a disciplina moral (entrevista). In: Revista Vida Simples, jun. 2014, p. 191

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Um momento


"Um momento.
E devagar, shhhh...
Que o gato não desperte.
Que os pardais na laranjeira
não se espantem.
Ferve a água, fecho o livro,
maio voltou à janela.
Alguém quer uma xícara de chá?
Algum de vocês deseja
uma xícara de chá?
Na segunda prateleira,
à esquerda, há duas latas
uma vermelha e outra branca.
150 milhões de km
percorreu este raio de sol
que transluz o vidro
e as cortinas
e se fixa na madeira do chão.
Dentro do raio, na não-gravidade,
a poeira cinza enlouquecida
formigando.
A branca não, a vermelha."
Daniel García Helder (1961-), poeta argentino. Intranscendência. In: modo de usar & co (blog)

A vida virou uma carreira

"A vida virou uma carreira. As pessoas estão focadas o tempo todo no seu sucesso profissional. É preciso ganhar o máximo de dinheiro, ter uma família, casa grande – tudo junto. Consumismo, individualismo, carreirismo. A vida contemporânea, apesar dos avanços materiais, é mais pobre."
"As pessoas gastam tempo nenhum em reflexão. Raramente se vê pessoas sozinhas andando sem estar com fones de ouvido, telefones. Vejo isso da janela do meu escritório no campus. Conto quantos estão sozinhos sem falar ao telefone. O número é muito pequeno."
"Minha filha trabalhou numa empresa de desenvolvimento de programas de computador. Muitos de seus colegas têm em torno de 20 anos e ganham muito dinheiro. Perguntei a ela o que eles fazem com tanto dinheiro. Ela me disse: apenas compram brinquedos. Mas brinquedos grandes: carros, barcos, sem falar nas traquitanas tecnológicas. Trabalham muito; não têm tempo para viajar. São apenas crianças grandes com a chance de fazer o que quiserem. E o que eles fazem é comprar objetos. É uma vida superficial."
Barry Stroud, filósofo, professor da Universidade da Califórnia - Berkeley

apocalipse zumbi


"Hey sweetheart, não vá
a piquenique em cemitério:
não vá
bebericar no cemitério:
não vá cheirar pó no cemitério:
não faça a gótica
esta noite.
Porque as coisas
andam meio esquisitas; porque foi encontrado
um braço
e o resto desse corpo é um mistério;
porque foi encontrada
a orelha
de outro mistério
e os dentes só o diabo sabe que sorriso;
porque as coisas estão ficando hardcore:
hey, honey, escute
essa cançãozinha idiota: não vá
dançar no cemitério:
não vá dançar
no cemitério: não vá
dançar no cemitério: fique comigo
esta noite."

Luis Felipe Fabre (1974-), poeta mexicano. Notas em torno do apocalipse zumbi. In: modo de usar & co (blog)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

estranhas névoas me afastaram de mim


"Quer que eu lhe fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E sabe por quê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora, que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido."

Mia Couto. Contos do nascer da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 111

Não podemos escapar de quem somos


"Não podemos escolher o que queremos e o que não queremos, e essa é a dura e solitária verdade. Às vezes queremos o que queremos mesmo sabendo que isso vai nos matar. Não podemos escapar de quem somos. (Uma coisa tenho que admitir sobre meu pai: pelo menos ele tentou querer a coisa sensata – minha mãe, a pasta executiva, eu – antes de enlouquecer de vez e fugir disso.)"

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 718

Glória perversa

"Kitsey tem razão? Se seu eu mais profundo está cantando e te atraindo direto para a fogueira, o melhor é se afastar? Tapar os ouvidos com cera? Ignorar toda a glória perversa que seu coração está gritando pra você? Pôr-se no rumo que vai te levar devidamente à norma, expediente razoável e checkups médicos regulares, relacionamentos estáveis e progressão fixa na carreira, 'New York Times' e brunch no domingo, tudo com a promessa de ser de alguma forma uma pessoa melhor?"

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 710

arte


"Porque, entre realidade, de um lado, e o ponto onde a mente toca a realidade, de outro, há uma zona intermediária, uma borda de arco-íris onde a beleza ganha vida, onde duas superfícies muito diferentes se misturam e se confundem para suprir o que a vida não oferece; e esse é o espaço onde toda arte existe, e toda mágica."

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 718

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Olhando fotos de Anne Sexton


"Na primeira foto, Anne Sexton olha o mar.
Sabemos que é uma praia em Virgínia,
Carolina do Norte, e que é o ano
de 48, um dia
de sua lua de mel.
...........................Tem os olhos
semifechados, enquanto ouve o rumor
das ondas, o vento que desfaz
e volta a erguer as dunas,
a água que se move com lentidão,
que traça
linhas,
curvas,
esferas.
A água que se move como a mão
de alguém que escreve a palavra oceano.
Na segunda imagem
— agora já estamos em mil novecentos e
setenta e quatro —, fuma um cigarro
perto de uma janela — por alguma razão
creio que do outro lado do vidro há um bosque —
e observa as figuras
formadas pela fumaça: peixes,
um iceberg,
.................uma sereia,
....................................um anjo
gravemente ferido na neve.
Nesta foto
tem um aspecto estranho,
parecido ao de alguém que corre para um vulcão
ou ao de alguém que acaba de largar uma faca.
Poucos
dias
depois
Anne Sexton vai se matar
nesta mesma casa;
vai deixar
seus anéis
sobre uma mesa, na cozinha,
e em seguida
entrará na garagem
com um copo
de vodka
na mão,
ligará o motor
do carro — um Cougar vermelho — e o rádio
— você imagina o que ela pôde ter ouvido? James Taylor?
Grateful Dead? Pink Floyd?—
E aguardará a morte.
Fecho o livro
Você me olha.
Sei o que está pensando:
— A vida é muito difícil.
Uma mulher é um relógio de areia."
Benjamín Prado (1961-), poeta espanhol. Olhando fotos de Anne Sexton (1928 - 1974). In: modo de usar & co (blog)

Nunca esqueça que você não é um deles


"...fiquei agarrando taças de champanhe dos garçons que às vezes passavam por perto, de vez em quando um canapé, minúsculos quiches, blinis em miniatura com caviar, estranhos indo e vindo, preso e assentindo educadamente em meio à multidão de bem-nascidos, ricos e poderosos...
('Nunca esqueça que você não é um deles', meu colega viciado do departamento de contabilidade tinha sussurrado no meu ouvido quando me viu socializando entre clientes importantes num leilão de arte impressionista e moderna.)
...paralisando e me virando para sorrir com grupos aleatórios quando o fotógrafo passava, detido em fragmentos de conversas extremamente tediosas à minha volta sobre jogos de golfe, política, esportes das crianças, escolas das crianças, terceira, quarta e quinta casa em Hyères, Hyannis, Paris, Londres, Jackson Hole e Júpiter (...).
Teria ficado feliz em sair daquela sala e continuar andando durante dias e meses até chegar a alguma praia do México, talvez alguma costa isolada onde poderia vagar sozinho e usar as mesmas roupas até se desintegrarem e ser o gringo doido com óculos de armação de tartaruga que vivia de consertar cadeiras e mesas."
Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 590; 594

A Walk


"My eyes already touch the sunny hill.
going far ahead of the road I have begun.
So we are grasped by what we cannot grasp;
it has inner light, even from a distance –
and charges us, even if we do not reach it,
into something else, which, hardly sensing it,
we already are; a gesture waves us on
answering our own wave...
but what we feel is the wind in our faces."
Rainer Maria Rilke (1875-1926). A Walk. In: poemhunter.com

sábado, 29 de novembro de 2014

Na escola


"...a escola era solitária. Os alunos de dezoito e dezenove anos não socializavam com os mais novos e, embora houvesse muitos da minha idade e mais novos ainda (inclusive um de doze anos esguio cujos boatos diziam ter um QI de duzentos e sessenta), suas vidas eram tão enclausuradas e suas preocupações tão tolas e com cara de estrangeiras, que era como se falassem alguma língua perdida de ensino fundamental que eu tinha esquecido. Moravam em casa com os pais; preocupavam-se com coisas do tipo curvas de desempenho, italiano no exterior e estágios de verão na ONU; surtavam se você acendia um cigarro na frente deles; eram sérios, bem-intencionados, perfeitos, sem noção da vida. Considerando o que eu tinha em comum com qualquer um deles, dava na mesma sair com crianças de oito anos."
Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 382

Cadáveres

"...só o que eu via era morte: calçadas repletas de mortos, cadáveres saindo em massa de ônibus e correndo pra casa do trabalho, nada restando de qualquer um deles dali a cem anos além de obturações, marca-passos e talvez alguns fragmentos de pano e osso."

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 418

depressão não era a palavra certa


"...depressão não era a palavra certa. Aquilo era um mergulho que encerrava tristeza e repulsa muito além do pessoal: uma náusea doentia e encharcada contra toda a humanidade e todo o esforço humano desde o princípio dos tempos. A repugnância sofredora da ordem biológica. Velhice, doença, morte. Ninguém escapava. Até os belos eram como frutas macias prestes a estragar. E mesmo assim de alguma forma as pessoas ainda continuavam fodendo e se reproduzindo e atirando nova forragem no túmulo, produzindo mais e mais novos seres para sofrer desse jeito como se fosse algo redentor, ou bom, ou até moralmente admirável: arrastando mais criaturas inocentes para o jogo em que se perde de um jeito ou de outro. Bebês se contorcendo e mamães complacentes e drogadas arrastando os pés. 'Ah, ele não é uma gracinha? Ohhh'. Crianças gritando e escorregando no parquinho sem a menor ideia de que infernos futuros as esperam: empregos maçantes, hipotecas desastrosas, casamentos ruins, perda de cabelo, prótese de quadril, xícaras solitárias de café numa casa vazia e uma bolsa de colostomia no hospital. A maioria das pessoas parecia satisfeita com o fino esmalte decorativo e a ardilosa iluminação de palco que, às vezes, fazia a atrocidade intrínseca da desagradável situação humana parecer de certa forma mais misteriosa ou menos repugnante. As pessoas apostavam, jogavam golfe, plantavam jardins, negociavam ações, faziam sexo, compravam carros novos, praticavam ioga, trabalhavam, rezavam, redecoravam a casa, ficavam abaladas pelas notícias, preocupavam-se à toa com os filhos, fofocavam sobre os vizinhos, debruçavam-se sobre críticas de restaurantes, fundavam instituições de caridade, apoiavam candidatos, iam ao U.S. Open, jantavam, viajavam, distraíam-se com todo tipo de dispositivo, atolando-se incessantemente com informações, textos, mensagens, entretenimento vindo de todas as direções para tentar se forçar a esquecer: onde estamos, o que somos. Mas sob a luz forte não havia como disfarçar as coisas. Aquilo estava podre da cabeça aos pés. Dedicar seu tempo ao escritório; gerar aposentadoria; mastigar os lençóis e sufocar com pêssego em calda no asilo."

Donna Tartt (1963-).
O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 444-5

E todas aquelas mulheres grávidas?


"E todas aquelas mulheres grávidas? 'Ah, Theo! Ele não é adorável?' Kitsey me empurrando inesperadamente um recém-nascido de uma amiga – eu num horror todo sincero saltando pra trás como se fosse um fósforo aceso.

'Ah, às vezes leva um tempo pra nós, homens', disse complacente Race Goldfarb, observando meu desconforto, erguendo a voz acima dos bebês aos berros e tropeços numa área da sala supervisionada pela babá. 'Mas deixa eu te dizer, Theo, quando segurar o seu próprio toquinho nos braços pela primeira vez...' – acariciando a barriga da mulher grávida – 'seu coração simplesmente amolece. Porque na primeira vez em que vi o pequeno Blaine' – rosto pegajoso, cambaleando ao redor desajeitadamente – 'e olhei praqueles grandes olhos azuis, praqueles lindos olhinhos de bebê... eu fui transformado. Fiquei apaixonado. Foi, tipo, ei, amiguinho! Você está aqui para me ensinar tudo! E, estou te dizendo, diante daquele primeiro sorriso eu simplesmente me derreti todo, como acontece com todos nós, não é, Lauren?'.

'Certo', falei educado, indo até a cozinha e me servindo de uma grande dose de vodca. Meu pai também ficava absurdamente melindroso perto de mulheres grávidas (...) e, longe da sabedoria convencional de se 'derreter todo', nunca tinha conseguido suportar crianças ou bebês, muito menos toda a cena de pais corujas, mulheres sorrindo tolamente enquanto acariciavam a própria barriga e homens com crianças amarradas contra o peito. Ele simplesmente saía pra fumar ou então se esquivava sombrio pra um canto, parecendo um traficante aliciador de menores toda vez que era obrigado a participar de qualquer tipo de evento escolar ou festa infantil. Aparentemente eu tinha herdado isso dele e talvez de vovô Decker também, essa violenta aversão procriadora zunindo alto na minha corrente sanguínea; parecia algo congênito, de fábrica, genético."

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 490

domingo, 23 de novembro de 2014

O Pintassilgo


"Às vezes eu prestava atenção na corrente no tornozelo do pintassilgo, ou pensava em como aquela era uma vida cruel para uma criaturinha viva – esvoaçando brevemente, sempre forçado a pousar no mesmo lugar desesperador."

Donna Tartt (1963-). O Pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 283

Imagem: "O Pintassilgo" (1654), de Carel Fabritius (1622-1654)

Penetra


"Antes de mais nada, devo dizer que sou um penetra. Para mim é fácil entrar em festas sem convite. Sou elegante, uso roupas caras, meu relógio é um Patek Philippe (uma falsificação perfeita), sei conversar sobre qualquer assunto e, o principal, as mulheres me acham bonito. Quando uma mulher acha um homem bonito ela lhe atribui todas as boas qualidades que um homem perfeito deve ter, especialmente dinheiro. As mulheres não querem saber de homens pobres. Não pensem que esse é mais um raciocínio misógino, eu não desprezo nem sinto aversão pelas mulheres, mas tenho que ser realista e ver as coisas como elas são."

Rubem Fonseca (1925-). Amálgama [Prêmio Jabuti 2014 - Contos e Crônicas]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 87

Cretinos

"As pessoas andam pela cidade e nada veem. Veem os mendigos? Não. Veem os buracos nas calçadas? Não. As pessoas leem livros? Não, veem novelas de televisão. Resumindo: as pessoas são todas umas cretinas."

Rubem Fonseca (1925-). Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 79

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

vazios

"A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos."

Manoel de Barros (1916-2014)

Lendo Walden


"A outra turma de literatura inglesa avançada estava lendo 'Grandes esperanças'. A minha estava lendo 'Walden'; eu me escondi na frieza e no silêncio do livro, um refúgio do brilho de chapa metálica do deserto. Durante o intervalo da manhã (quando nos juntavam e nos faziam sair pra um pátio com cercas de arame, perto das máquinas de sanduíches), eu ficava no canto mais sombreado que podia encontrar com minha edição de bolso e, com um lápis vermelho, ia lendo e sublinhando várias frases particularmente encorajadoras: 'A massa dos homens leva uma vida de desespero mudo'. 'Um desespero estereotipado mas inconsciente se esconde mesmo sob os chamados jogos e divertimentos da humanidade'. O que Thoreau teria achado de Las Vegas: suas luzes e sua algazarra, seu lixo e seus delírios, suas projeções e fachadas ocas?"

Donna Tartt (1963-). O Pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 217

Andando de bicicleta


"Andando de bicicleta pela cidade a gente tem uma boa ideia do mundo. As pessoas são infelizes, as ruas são esburacadas e fedem, todo mundo anda apressado, os ônibus estão sempre cheios de gente feia e triste. Mas o pior não é isso. O pior são as pessoas más, aquelas que batem em crianças, que batem em mulheres, urinam nos cantos das ruas. Andando na minha bicicleta, vejo tudo isso e chego em casa preocupado, e minha mãe pergunta o que aconteceu, você está triste, e eu respondo não é nada, não é nada. Mas é tudo, é eu não poder ajudar ninguém, hoje mesmo vi uma velhinha ser assaltada por dois moleques e não fiz nada, fiquei olhando de longe, como se aquilo não fosse assunto meu. Será que eu vou ser igual ao meu pai, um covarde filho da puta que não teve coragem de enfrentar a trabalheira de criar uma família e fugiu? É isso? Vou ser um cagão igual a ele?"

Rubem Fonseca (1925-). Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 60

domingo, 16 de novembro de 2014

Um sonho americano


"Saí da biblioteca e me dirigi ao bar no aposento ao lado e, depois de encher um copo alto com muitos cubos de gelo e vários centímetros de gim, tomei um longo gole, o gim desceu como um fogo purificador. Havia algo errado, mas não sabia o que: sentia-me particularmente desarmado. Então lembrei-me. O guarda-chuva de Shago. Estava a um canto do primeiro armário que procurei, e o cabo encontrou minha mão: segurando-o senti-me mais forte, como um vagabundo que tem cigarros, uma bebida e uma faca."

Norman Mailer (1923-2007). Um sonho americano (1965). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 242

Natureza-morta


"'Quanto tempo ele levou pra pintar isso?'

Minha mãe, que até então estava um pouco perto demais da pintura, deu um passo para trás para avaliá-la (...).

'Bem, os holandeses inventaram o microscópio', disse ela. 'Eram joalheiros, fabricantes de lentes. Querem tudo o mais detalhado possível, porque até as coisas mais ínfimas significam algo. Toda vez que vir moscas ou insetos numa natureza-morta – uma pétala murcha, um ponto preto na maçã –, é uma mensagem secreta que o pintor
 está te passando. Ele está te dizendo que as coisas vivas não duram – tudo é temporário. A morte na vida. É por isso que se diz natureza-morta. Talvez você não perceba de cara, com toda a beleza e a exuberância, a manchinha de podridão. Mas se olhar melhor – ali está'."

Donna Tartt (1963-).
O Pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 27

sábado, 8 de novembro de 2014

Sozinho na varanda


"Fiquei então na varanda sozinho e contemplei a lua, que estava cheia e muito baixa no horizonte. Tive um momento então. Porque a lua me respondeu. Não quero dizer com isso que tenha ouvido vozes, ou que Luna e eu tenhamos nos permitido a fantasia de um diálogo, não, na verdade foi pior do que isso. Alguma coisa nas profundezas da lua cheia, uma radiação terna e não tão inocente viajou rápido como o pensamento de um raio pelo céu noturno, das profundezas dos mortos naquelas cavernas da lua, voou pelo espaço e entrou em mim. E de repente compreendi a lua. Acredite se quiser. A única viagem verdadeira é aquela das profundezas de um ser para o coração de outro, e eu não era nada exceto profundezas abertas em carne viva naquele instante sozinho na varanda, olhando para Sutton Place...".

Norman Mailer (1923-2007).
Um sonho americano (1965). Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 21

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

terrível na pureza da sua loucura


"Ai, Minas de minha alma, alma de meu orgulho, orgulho de minha loucura, acendei uma luz no meu espírito, iluminai os desvãos do meu entendimento e mostrai-me onde se esconde esse vagabundo maravilhoso, esse meu irmão oligofrênico que no fundo vem a ser o melhor da minha razão de existir. Foi ele, esse iluminado de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. Foi ele quem amou a mulher e a colocou num pedestal e lhe ofertou uma flor. Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa-de-força com que tolhiam o seu protesto. Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, índio, santo, poeta, mendigo e débil mental, Viramundo! que um dia há de rebelar-se dentro de mim, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura."

Fernando Sabino (1923-2004).
O Grande Mentecapto (1979). Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 188

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Pessoas habitadas

"...pessoas habitadas são aquelas possuídas, de fato, por si mesmas, em diversas versões. Os habitados estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas, mas não são menos felizes por causa disso. Não transformam suas 'inadequações' em doença, mas em força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não se amedrontam com transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar o diálogo. São pessoas que surpreendem com um gesto ou uma fala fora do script, sem nenhuma disposição para serem bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam pela verdade pessoal que defendem. Além disso, mantêm com a solidão uma relação mais do que cordial."

Martha Medeiros

Fonte: Jornal O Globo [
http://essenciaunica.wordpress.com/]

O alienista


"...era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas, – graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc."

Machado de Assis (1839-1908).
O alienista (1882). São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014, p. 83

Polidez

"Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias."

Machado de Assis (1839-1908).
O alienista (1882). São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014, p. 48

A visita do Governador Geral


"Por esta época Sua Excelência, o Governador Geral Clarimundo Ladisbão, senhor absoluto da Província e que corria seus domínios seguido de grande comitiva, veio dar a Ouro Preto, o que foi ensejo de grandes festejos públicos, com graves prejuízos para os cofres municipais. Várias obras que se arrastavam pelos anos afora foram rapidamente ultimadas para que o senhor Governador as inaugurasse, apressou-se a formatura dos estudantes para que o senhor Governador a paraninfasse e o Prefeito chegou mesmo a sugerir que se realizassem logo as célebres festividades da Semana Santa para que o senhor Governador delas participasse – o que infelizmente não foi possível, dada a peremptória recusa da Cúria local."

Fernando Sabino (1923-2004).
O Grande Mentecapto (1979). Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 65.

Viramundo


"Sabido é que a primeira notícia existente sobre Geraldo Viramundo se refere à sua estada na cidade de Ouro Preto, já com 28 anos, isto é, dez anos depois de ter deixado Mariana. Ora, por mais longa que seja a estrada que liga as duas cidades, não há possibilidade de alguém levar dez anos para percorrê-la, a menos que adote o sistema que se tornou efetivo na administração pública de minha terra por tantos anos: um passo para a frente e dois para trás. Há quem diga que Viramundo passou esses anos às margens e ao longo da própria estrada, sempre desejoso de partir, nunca desejoso de chegar, vivendo como um anacoreta, de raízes, frutos silvestres, eventualmente de esmolas, vestindo peles de animais e afastado do convívio dos homens. Mas é uma hipótese meramente romântica, aventada pelos que tentam fazer de Viramundo apenas um místico, um vagabundo, ou ambas as coisas. (...). Na realidade, quem fosse viver na minha terra de frutos silvestres e vestir-se de peles de animais andaria nu e morreria de fome. Quanto à alternativa das esmolas, esta se destrói ante a rigorosa tradição mineira de não propiciá-la senão na forma de promissórias devidamente avalizadas."

Fernando Sabino (1923-2004). O Grande Mentecapto (1979). Rio de Janeiro: Record, 1980, p. 59

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

No chão agora


Ainda dá tempo. Dar fim à vida.  Um tiro nos miolos. Pular de cabeça num precipício. Ficar exposto à força da natureza em meio a uma grande tempestade. Ou deixar a vida fluir. Acontece que Miguel não suporta o viver. Está no seu limite. No limiar do nada. Ou da loucura. Pesadelos, sonhos, terror. Assim se revela a maior parte dos personagens de Flávio Marcus da Silva nos contos, crônicas, poemas de seu último livro “No chão agora”. Literatura de primeira grandeza! Se eu fosse especialista na teoria da literatura até faria um comentário teórico, dentro de todas as regras. Entretanto ainda não sou capaz de fazer isso...  O que posso dizer é que gosto dos escritos de Flávio Marcus porque gosto. Ponto. Entretanto, quero apontar alguns fatos que me chamaram mais atenção na leitura de seu livro: 
1 - A perspicácia de Flávio Marcus em desenhar o pensamento do outro. (Serão os seres humanos tão semelhantes em si no pensar? Indago.) No conto “Fogo de palha” ele deixa isso bem nítido: “Na cabeça de Rita o pai consentiu, a menina levou o cãozinho e cuidou muito bem dele, amou-o como se ama a um filho. Que lindo! Só que isso não aconteceu. O cãozinho continuou abandonado, perdido, triste, morrendo de fome. Rita foi embora por outro caminho, sem olhar para trás, com a consciência tranquila, feliz pelo desfecho que imaginou e que, na sua cabeça, era o real. ‘Que bom que deu tudo certo para ele’, pensou.” (p. 12)
2 - Poderia dizer que o livro é um registro histórico. Os cenários descritos nos 32 textos reproduzem de modo primoroso o viver do povo da nossa cidade, do nosso país, neste ano de 2014. Na cidade, a falta de água. As dificuldades pelas quais as pessoas estão passando, a mudança na rotina diária na casa e no trabalho. Não há em nossa lembrança tempo de tanta escassez de água e de falta de chuvas na região de Pará de Minas. E os pernilongos que não permitem que as pessoas durmam em paz? Pernilongos não chegam a ser novidade. Surgem a cada ano e nos incomodam, no entanto, por períodos mais curtos. Mas incômodos juntados deixam as pessoas ao limiar da desesperança: “Três e meia da madrugada./ Atento, escuto:/ Duas bombas vizinhas levam água das caixas reserva para/ as principais, /meu filho ronca, /Os pernilongos infernizam, sibilantes, /implacáveis,/ E essas vozes, que eu não sei... / não sei... Acho que enlouqueci.”/ (No poema “Insônia e pernilongos’) (p.65).
3 - A crítica social se faz presente em cada texto que compõe “No chão agora”. Arrisco a dizer que também faz parte do que ouso chamar de registro histórico. Seja de modo explícito, seja de maneira irônica: a Copa do Mundo realizada neste ano; a situação política e social do país; as diferenças de classe, as injustiças, a deficiência da Educação, o uso excessivo e fútil das redes sociais virtuais. A hipotética “liberdade” da imprensa, que até hoje impõe ao povo a voz do poder dominante. 
4 - A multiplicidade de vozes que se contrastam. Percebo que narradores e personagens têm opinião própria. Cada um diz o que quer, sem deixar claro a interferência do ponto de vista do autor. Notei que o autor até deixa uma dica no poema “Dois modos”: “dois modos de ver dois modos de viver/ há outros/ felizmente”/. (p.36) Em outros textos também encontro exemplos desse fato: em “Sucesso é ser feliz” (p.41) vemos a diferença dos quereres dos pais em relação à educação tecnológica e futurística que almejam para o filho e a simplicidade do desejo do filho, que apenas quer ser feliz. No texto “Caminhos”, a voz do pai que fala do filho é de compreensão: “Hoje sei que meu filho é um vencedor. Venceu preconceitos e seguiu seu caminho, impulsionado pelo destino, fiel a si mesmo. Poucos podem dizer que venceram na vida como ele. Eu não posso. Mas estou feliz por ele.” (p.81). Já no conto “Meu filho não deu em nada”, o pai lamenta que o filho “não prestou para futebol judô coisas de macho não prestou para advogado médico engenheiro administrador – pra nada” (p.19). Na verdade, no decorrer da leitura do conto ficamos sabendo que o moço trabalha e muito naquilo que ama: “livros poesias contos peças de teatro esculturas enfeites”. E mais: tem uma namorada e dinheiro suficiente para comprar uma casa do jeitinho que querem e para a viagem que planejam a Amsterdã.
5 - O texto que encerra o livro e também lhe serve de título “No chão agora” traz em sua última linha um suspiro de gratidão: “Obrigado Deus por eu me saber e amar ser tão pequeno.” Seria a redenção do homem após tantas agruras sofridas pelo narrador ou personagens dos outros escritos...
E então? É ler para ter o prazer da literatura em “No chão agora”, de Flávio Marcus da Silva, publicado pela Virtual Books, Pará de Minas, em setembro de 2014.

Terezinha Pereira

sábado, 18 de outubro de 2014

Individualidade


"...há apenas um caso em que o homem é capaz de, proposital e conscientemente, desejar para si algo até mesmo nocivo, idiota, até mesmo idiotíssimo, e é precisamente quando quer defender o direito de desejar para si mesmo algo idiotíssimo e não ficar obrigado a desejar para si apenas o que é inteligente. Isso é a suprema idiotice, isso é um capricho pessoal e, na verdade, senhores, pode ser o que de mais vantajoso haja na Terra para os nossos semelhantes, principalmente em certos casos. E, particularmente, pode ser mais vantajoso do que todas as vantagens, mesmo no caso de nos causar um mal indiscutível e de contradizer as conclusões mais corretas de nossa razão quanto a vantagens – porque pelo menos conserva para nós o mais importante e o mais caro, ou seja, nossa personalidade e nossa individualidade."
Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Notas do subsolo (1864). Porto Alegre: L&PM, 2012, p. 39

uma calma que consola


"...mais adiante, no imenso círculo, havia grandes estátuas brancas de rainhas e de outras nobres damas de França, e, ainda mais adiante, no gramado entre as árvores, em todas as direções do parque, esculturas de poetas, de pintores, de sábios; (...) Ramon não pôde conter um sorriso e continuou seu passeio naquele jardim de gênios que, modestos, cercados pela gentil indiferença dos passantes, deviam se sentir agradavelmente livres; ninguém parava para observar o rosto deles ou ler as inscrições nos pedestais. Essa indiferença, Ramon a respirava como a uma calma que consola. Pouco a pouco, um largo sorriso quase feliz apareceu em seu rosto."
Milan Kundera (1929-). A festa da insignificância (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 11-12

Benjamim


"...segue até a avenida à beira-mar, saúda sem resposta os operários encostados num tapume, e afunda na areia os pés cheios de bolhas. Molha as canelas e procura avistar as ilhas negras, invisíveis no quadro-negro de oceano e céu fundidos. Mas quem já fixou a vista ou a memória na escuridão absoluta sabe que, pouco a pouco, sempre se revelam aqui e ali contornos de um negror ainda mais profundo. E se não tivesse as pernas bambas e o peito arfante, Benjamim se arriscaria a nadar até as ilhas que ele não sabe ao certo se enxerga ou recorda."
Chico Buarque. Benjamim (1995). São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 91

Narciso

"...um Narciso não é um orgulhoso. O orgulhoso despreza os outros. Os subestima. O Narciso os superestima, porque observa nos olhos de cada um sua própria imagem e quer embelezá-la. Cuida, assim, gentilmente de todos os seus espelhos."
Milan Kundera (1929-). A festa da insignificância (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 23

Marionetes


"...morremos, e continuamos ainda alguns anos com aqueles que nos conheceram, mas não demora a ocorrer outra mudança: os mortos se tornam velhos mortos, ninguém se lembra mais deles e eles desaparecem no nada; apenas alguns, raríssimos, deixam seus nomes nas memórias, mas, privados de todo testemunho autêntico, de toda lembrança real, transformam-se em marionetes...".
Milan Kundera (1929-). A festa da insignificância (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 31

uma cafeteria


"Naquela noite não desgrudei dela. Ficamos um instante na cafeteria que pouco a pouco foi se esvaziando de estudantes e professores, no fim ficamos só nós duas, a faxineira e um homem de meia-idade, um sujeito muito simpático e muito triste que atendia no balcão. Depois nos levantamos (ela disse que a cafeteria naquela hora parecia sinistra; eu calei minha opinião, mas agora não vejo por que não dá-la: a cafeteria naquela hora me parecia magnífica, gasta e majestosa, pobre e libérrima, penetrada pelos últimos esplendores do sol do vale, uma cafeteria que me pedia com um sussurro que ficasse ali até o fim e lesse um poema de Rimbaud, uma cafeteria pela qual valia a pena chorar)...".
Roberto Bolaño (1953-2003). Amuleto (1999). São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 40

Amuleto


"Assim, pois, os rapazes fantasmas cruzaram o vale e despencaram no abismo. Um trânsito breve. E seu canto fantasma ou o eco do seu canto fantasma, que é como dizer o eco do nada, seguiu marchando ao mesmo passo que eles, que era o passo do destemor e da generosidade, em meus ouvidos. Uma canção apenas audível, um canto de guerra e de amor, porque os meninos sem dúvida se dirigiam para a guerra, mas faziam isso recordando as atitudes teatrais e soberanas do amor."
Roberto Bolaño (1953-2003). Amuleto (1999). São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 131

A festa da insignificância


"Ela passa por cima do corrimão e se atira no vazio. No fim de sua queda, quando colide brutalmente com a dureza da superfície da água, fica paralisada pelo frio, mas, depois de alguns longos segundos, ergue o rosto e, como é boa nadadora, todos os seus automatismos se insurgem contra sua vontade de morrer. Ela mergulha de novo a cabeça, tenta aspirar água, bloquear a respiração. Nesse momento, ouve um grito. Um grito que vem da outra margem. Alguém a viu. Compreende que morrer não vai ser fácil e que seu maior inimigo não será seu reflexo incontrolável de boa nadadora, mas alguém com quem ela não contava. Será obrigada a lutar. Lutar para salvar sua morte."
Milan Kundera (1929-). A festa da insignificância (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 48

uma garrafa de armanhaque


"Sabendo perfeitamente que não poderia ganhar a vida fazendo o que gostaria de fazer (mas será que sabia o que gostaria de fazer?), havia escolhido, depois de seus estudos, um emprego em que fora obrigado a valorizar não a sua originalidade, suas ideias, seus talentos, mas apenas sua inteligência, ou seja, essa capacidade aritmeticamente mensurável que não se distingue nos diferentes indivíduos senão quantitativamente, uns tendo mais, outros menos, Alain tendo mais, de modo que ele era bem pago e podia comprar de quando em quando uma garrafa de armanhaque."
Milan Kundera (1929-). A festa da insignificância (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 75

Insignificância


"A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la."
Milan Kundera (1929-). A festa da insignificância (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 132

Acho que eu não sou daqui

"[...] procurar algum lugar mais calmo, longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita. Tenho quase certeza que eu não sou daqui... " ♫ ♪
Legião Urbana

Circumstancial evidence


"'Circumstancial evidence is a very tricky thing', answered Holmes thoughtfully; 'it may seem to point very straight to one thing, but if you shift your own point of view a little, you may find it pointing in an equally uncompromising manner to something entirely different.'"

Arthur Conan Doyle (1859-1930). The Boscombe Valley Mystery. In: The Adventures of Sherlock Holmes (1892). London: Penguin Books, 1994, p. 79

A desobediência civil


"...o Estado nunca enfrenta intencionalmente a consciência intelectual ou moral de um homem, mas apenas seu corpo, seus sentidos. Não está equipado com inteligência ou honestidade superiores, mas com força física superior. Não nasci para ser forçado a nada. Respirarei a meu próprio modo. Vejamos quem é mais forte."


Henry David Thoreau (1817-1862). A desobediência civil (1848). Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 39

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

uma bomba


"De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo 
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda"
António José Forte (1931-1988), poeta português. In: Uma Faca nos Dentes