segunda-feira, 20 de outubro de 2014

No chão agora


Ainda dá tempo. Dar fim à vida.  Um tiro nos miolos. Pular de cabeça num precipício. Ficar exposto à força da natureza em meio a uma grande tempestade. Ou deixar a vida fluir. Acontece que Miguel não suporta o viver. Está no seu limite. No limiar do nada. Ou da loucura. Pesadelos, sonhos, terror. Assim se revela a maior parte dos personagens de Flávio Marcus da Silva nos contos, crônicas, poemas de seu último livro “No chão agora”. Literatura de primeira grandeza! Se eu fosse especialista na teoria da literatura até faria um comentário teórico, dentro de todas as regras. Entretanto ainda não sou capaz de fazer isso...  O que posso dizer é que gosto dos escritos de Flávio Marcus porque gosto. Ponto. Entretanto, quero apontar alguns fatos que me chamaram mais atenção na leitura de seu livro: 
1 - A perspicácia de Flávio Marcus em desenhar o pensamento do outro. (Serão os seres humanos tão semelhantes em si no pensar? Indago.) No conto “Fogo de palha” ele deixa isso bem nítido: “Na cabeça de Rita o pai consentiu, a menina levou o cãozinho e cuidou muito bem dele, amou-o como se ama a um filho. Que lindo! Só que isso não aconteceu. O cãozinho continuou abandonado, perdido, triste, morrendo de fome. Rita foi embora por outro caminho, sem olhar para trás, com a consciência tranquila, feliz pelo desfecho que imaginou e que, na sua cabeça, era o real. ‘Que bom que deu tudo certo para ele’, pensou.” (p. 12)
2 - Poderia dizer que o livro é um registro histórico. Os cenários descritos nos 32 textos reproduzem de modo primoroso o viver do povo da nossa cidade, do nosso país, neste ano de 2014. Na cidade, a falta de água. As dificuldades pelas quais as pessoas estão passando, a mudança na rotina diária na casa e no trabalho. Não há em nossa lembrança tempo de tanta escassez de água e de falta de chuvas na região de Pará de Minas. E os pernilongos que não permitem que as pessoas durmam em paz? Pernilongos não chegam a ser novidade. Surgem a cada ano e nos incomodam, no entanto, por períodos mais curtos. Mas incômodos juntados deixam as pessoas ao limiar da desesperança: “Três e meia da madrugada./ Atento, escuto:/ Duas bombas vizinhas levam água das caixas reserva para/ as principais, /meu filho ronca, /Os pernilongos infernizam, sibilantes, /implacáveis,/ E essas vozes, que eu não sei... / não sei... Acho que enlouqueci.”/ (No poema “Insônia e pernilongos’) (p.65).
3 - A crítica social se faz presente em cada texto que compõe “No chão agora”. Arrisco a dizer que também faz parte do que ouso chamar de registro histórico. Seja de modo explícito, seja de maneira irônica: a Copa do Mundo realizada neste ano; a situação política e social do país; as diferenças de classe, as injustiças, a deficiência da Educação, o uso excessivo e fútil das redes sociais virtuais. A hipotética “liberdade” da imprensa, que até hoje impõe ao povo a voz do poder dominante. 
4 - A multiplicidade de vozes que se contrastam. Percebo que narradores e personagens têm opinião própria. Cada um diz o que quer, sem deixar claro a interferência do ponto de vista do autor. Notei que o autor até deixa uma dica no poema “Dois modos”: “dois modos de ver dois modos de viver/ há outros/ felizmente”/. (p.36) Em outros textos também encontro exemplos desse fato: em “Sucesso é ser feliz” (p.41) vemos a diferença dos quereres dos pais em relação à educação tecnológica e futurística que almejam para o filho e a simplicidade do desejo do filho, que apenas quer ser feliz. No texto “Caminhos”, a voz do pai que fala do filho é de compreensão: “Hoje sei que meu filho é um vencedor. Venceu preconceitos e seguiu seu caminho, impulsionado pelo destino, fiel a si mesmo. Poucos podem dizer que venceram na vida como ele. Eu não posso. Mas estou feliz por ele.” (p.81). Já no conto “Meu filho não deu em nada”, o pai lamenta que o filho “não prestou para futebol judô coisas de macho não prestou para advogado médico engenheiro administrador – pra nada” (p.19). Na verdade, no decorrer da leitura do conto ficamos sabendo que o moço trabalha e muito naquilo que ama: “livros poesias contos peças de teatro esculturas enfeites”. E mais: tem uma namorada e dinheiro suficiente para comprar uma casa do jeitinho que querem e para a viagem que planejam a Amsterdã.
5 - O texto que encerra o livro e também lhe serve de título “No chão agora” traz em sua última linha um suspiro de gratidão: “Obrigado Deus por eu me saber e amar ser tão pequeno.” Seria a redenção do homem após tantas agruras sofridas pelo narrador ou personagens dos outros escritos...
E então? É ler para ter o prazer da literatura em “No chão agora”, de Flávio Marcus da Silva, publicado pela Virtual Books, Pará de Minas, em setembro de 2014.

Terezinha Pereira

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