sábado, 29 de novembro de 2014

depressão não era a palavra certa


"...depressão não era a palavra certa. Aquilo era um mergulho que encerrava tristeza e repulsa muito além do pessoal: uma náusea doentia e encharcada contra toda a humanidade e todo o esforço humano desde o princípio dos tempos. A repugnância sofredora da ordem biológica. Velhice, doença, morte. Ninguém escapava. Até os belos eram como frutas macias prestes a estragar. E mesmo assim de alguma forma as pessoas ainda continuavam fodendo e se reproduzindo e atirando nova forragem no túmulo, produzindo mais e mais novos seres para sofrer desse jeito como se fosse algo redentor, ou bom, ou até moralmente admirável: arrastando mais criaturas inocentes para o jogo em que se perde de um jeito ou de outro. Bebês se contorcendo e mamães complacentes e drogadas arrastando os pés. 'Ah, ele não é uma gracinha? Ohhh'. Crianças gritando e escorregando no parquinho sem a menor ideia de que infernos futuros as esperam: empregos maçantes, hipotecas desastrosas, casamentos ruins, perda de cabelo, prótese de quadril, xícaras solitárias de café numa casa vazia e uma bolsa de colostomia no hospital. A maioria das pessoas parecia satisfeita com o fino esmalte decorativo e a ardilosa iluminação de palco que, às vezes, fazia a atrocidade intrínseca da desagradável situação humana parecer de certa forma mais misteriosa ou menos repugnante. As pessoas apostavam, jogavam golfe, plantavam jardins, negociavam ações, faziam sexo, compravam carros novos, praticavam ioga, trabalhavam, rezavam, redecoravam a casa, ficavam abaladas pelas notícias, preocupavam-se à toa com os filhos, fofocavam sobre os vizinhos, debruçavam-se sobre críticas de restaurantes, fundavam instituições de caridade, apoiavam candidatos, iam ao U.S. Open, jantavam, viajavam, distraíam-se com todo tipo de dispositivo, atolando-se incessantemente com informações, textos, mensagens, entretenimento vindo de todas as direções para tentar se forçar a esquecer: onde estamos, o que somos. Mas sob a luz forte não havia como disfarçar as coisas. Aquilo estava podre da cabeça aos pés. Dedicar seu tempo ao escritório; gerar aposentadoria; mastigar os lençóis e sufocar com pêssego em calda no asilo."

Donna Tartt (1963-).
O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 444-5

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