"Scarsdale Vibe discursava para a delegação de Las Animas-Huerfano do
Fórum pela União e Defesa da Indústria (F.U.D.I.), reunida no cassino
de um exclusivo resort de águas termais perto do Divisor de Águas. [...]
'Isso mesmo, nós os usamos', Scarsdale já no meio daquele discurso que
se tornara sua obra-prima oratória costumeira, 'nós os arreamos e
sodomizamos, fotografamos sua degradação, nós os obrigamos a subir em
estruturas de ferro elevadas e penetrar em minas, esgotos e abatedouros,
a carregar pesos desumanos, colhemos deles os músculos, a visão, a
saúde, e temos a bondade de lhes deixar uns poucos anos de vida
miserável. É claro que fazemos isso. E por que não? Eles não servem para
mais nada, mesmo. Pode-se esperar deles que atinjam a condição humana
integral, adquirindo educação, formando famílias, promovendo a cultura
ou a raça? Nós pegamos o que podemos pegar enquanto nos deixam pegar.
Olhem só para eles - a marca de seu destino absurdo salta aos olhos. A
música vai parar de tocar de repente, e são eles que vão ficar de fora,
apalermados, quase todos desafinados, jamais inteiramente conscientes,
se tivessem bom senso já teriam pulado fora do jogo há muito tempo para
procurar um refúgio antes que fosse tarde demais. Talvez, mesmo se
tivessem feito isso, não teriam encontrado nenhum refúgio.
'Nós
vamos comprar tudo', fazendo o gesto óbvio com o braço, 'todo este país.
O dinheiro fala, a terra escuta, onde o anarquista se escondia, onde o
ladrão de cavalos exercia seu ofício, nós, os pescadores de americanos,
havemos de lançar nossas redes com grades perfeitamente retas, com
quadrados de quatro hectares terraplenados, protegidos contra pragas,
prontos para serem edificados. Onde alienígenas catavam lenha e caçavam
ratos em nome de seus míseros sonhos comunistas, a boa gente das
pradarias virá em multidões para povoar estas serras, gente limpa,
trabalhadeira, cristã, enquanto nós, contemplando seus pequenos bangalôs
de férias, habitaremos palácios milionários dignos de nossos status,
que serão financiados pelo dinheiro das hipotecas dessa gente. Quando as
cicatrizes dessas batalhas já tiverem secado há muito tempo, e os
montes de escória estiverem cobertos por capim e flores silvestres, e a
chegada da neve não for mais uma maldição e sim uma promessa,
ansiosamente aguardada por trazer um influxo de gente com dinheiro para
gastar em diversões hibernais, quando os fios reluzentes dos teleféricos
costurarem todas as encostas, e tudo se reduzir a festivais, esportes
salutares e corpos selecionados pela eugenia, quem ainda haverá de se
lembrar dessa gentalha sindicalizada, cadáveres congelados cujos nomes,
aliás falsos, jamais foram registrados? Quem vai querer saber que
outrora os homens brigavam como se uma jornada de trabalho de oito
horas, e umas poucas moedas a mais ao final da semana, fossem da maior
importância, e compensassem o vento implacável a penetrar o telhado
furado, as lágrimas a congelar num rosto de mulher tão gasto quanto o de
uma índia envelhecida antes do tempo, o choramingar de crianças cujas
barrigas nunca se sentem satisfeitas, cujo futuro, o daquelas que
sobreviveram, sempre foi trabalhar para nós, levar e trazer, dar de
comer e amamentar, vigiar as cercas das extensões de nossas
propriedades, velar pelo nosso sono e nos proteger de intrusos e
questionadores?'."
Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 1003-1004