sábado, 20 de agosto de 2016

O poder do dinheiro


"Scarsdale Vibe discursava para a delegação de Las Animas-Huerfano do Fórum pela União e Defesa da Indústria (F.U.D.I.), reunida no cassino de um exclusivo resort de águas termais perto do Divisor de Águas. [...]

'Isso mesmo, nós os usamos', Scarsdale já no meio daquele discurso que se tornara sua obra-prima oratória costumeira, 'nós os arreamos e sodomizamos, fotografamos sua degradação, nós os obrigamos a subir em estruturas de ferro elevadas e penetrar em minas, esgotos e abatedouros, a carregar pesos desumanos, colhemos deles os músculos, a visão, a saúde, e temos a bondade de lhes deixar uns poucos anos de vida miserável. É claro que fazemos isso. E por que não? Eles não servem para mais nada, mesmo. Pode-se esperar deles que atinjam a condição humana integral, adquirindo educação, formando famílias, promovendo a cultura ou a raça? Nós pegamos o que podemos pegar enquanto nos deixam pegar. Olhem só para eles - a marca de seu destino absurdo salta aos olhos. A música vai parar de tocar de repente, e são eles que vão ficar de fora, apalermados, quase todos desafinados, jamais inteiramente conscientes, se tivessem bom senso já teriam pulado fora do jogo há muito tempo para procurar um refúgio antes que fosse tarde demais. Talvez, mesmo se tivessem feito isso, não teriam encontrado nenhum refúgio.

'Nós vamos comprar tudo', fazendo o gesto óbvio com o braço, 'todo este país. O dinheiro fala, a terra escuta, onde o anarquista se escondia, onde o ladrão de cavalos exercia seu ofício, nós, os pescadores de americanos, havemos de lançar nossas redes com grades perfeitamente retas, com quadrados de quatro hectares terraplenados, protegidos contra pragas, prontos para serem edificados. Onde alienígenas catavam lenha e caçavam ratos em nome de seus míseros sonhos comunistas, a boa gente das pradarias virá em multidões para povoar estas serras, gente limpa, trabalhadeira, cristã, enquanto nós, contemplando seus pequenos bangalôs de férias, habitaremos palácios milionários dignos de nossos status, que serão financiados pelo dinheiro das hipotecas dessa gente. Quando as cicatrizes dessas batalhas já tiverem secado há muito tempo, e os montes de escória estiverem cobertos por capim e flores silvestres, e a chegada da neve não for mais uma maldição e sim uma promessa, ansiosamente aguardada por trazer um influxo de gente com dinheiro para gastar em diversões hibernais, quando os fios reluzentes dos teleféricos costurarem todas as encostas, e tudo se reduzir a festivais, esportes salutares e corpos selecionados pela eugenia, quem ainda haverá de se lembrar dessa gentalha sindicalizada, cadáveres congelados cujos nomes, aliás falsos, jamais foram registrados? Quem vai querer saber que outrora os homens brigavam como se uma jornada de trabalho de oito horas, e umas poucas moedas a mais ao final da semana, fossem da maior importância, e compensassem o vento implacável a penetrar o telhado furado, as lágrimas a congelar num rosto de mulher tão gasto quanto o de uma índia envelhecida antes do tempo, o choramingar de crianças cujas barrigas nunca se sentem satisfeitas, cujo futuro, o daquelas que sobreviveram, sempre foi trabalhar para nós, levar e trazer, dar de comer e amamentar, vigiar as cercas das extensões de nossas propriedades, velar pelo nosso sono e nos proteger de intrusos e questionadores?'."

Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 1003-1004

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