"Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das
pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o
amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma
coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que
o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que uma menina
semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou
semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos todos
semiparalíticos. E morre-se, sem ao
menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação. E
ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à
humanidade. E ter a obrigação de ser o que se chama apresentável me
irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo
na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que
fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque escrevi,
pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que
amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar.
Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso
que sustenta meu coração."
Clarice Lispector (1920-1977). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 33
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