"'Uma coisa é tentar cumprir as promessas feitas aos mortos da
gente', era a posição de Reef, 'e outra é sair espalhando morte por aí a
torto e a direito. Não vá me dizer que estou contaminado com valores
burgueses. O fato é que aprendi a gostar desses cafés, de toda essa
confusão da vida urbana – melhor estar aqui aproveitando isto do que
ficar o tempo todo preocupado com a possibilidade de uma bomba explodir
–' e, é claro, foi nesse exato momento que a coisa aconteceu, tão inesperada
e tão ruidosa que muitos dias depois os sobreviventes não tinham
certeza se a coisa de fato ocorrera, como também não conseguiam
acreditar que alguém havia desejado lançar sobre uma civilidade tão
antiga, conquistada a um preço tão alto, essa grande florescência de
desintegração – uma densa e prolongada chuva de fragmentos de vidro,
verde, incolor, âmbar, negro, de janelas, espelhos e copos, garrafas de
água, vinho, absinto, xarope de frutas, uísque de muitas idades e
origens, sangue humano por toda parte, arterial, venoso e capilar,
fragmentos de ossos e cartilagem e tecidos macios, lascas de madeira de
todos os tamanhos saídas de móveis, fragmentos de estanho, zinco e
latão, desde grandes folhas rasgadas até os minúsculos pregos das
molduras dos quadros, emanações nítricas, fluidas cortinas de fumaça,
opacas de tão negras – um enorme túnel reluzente que subia ao céu e
descia outra vez, para fora, para o outro lado da rua, descendo o
quarteirão, atravessando os raios de um sol de meio-dia totalmente
indiferente, como uma longa mensagem heliográfica enviada tão depressa
que só conseguiam lê-la os anjos da destruição.
Deixando aqueles burgueses tão abruptamente feridos, chorando como
crianças, crianças outra vez, sem nenhuma obrigação senão a de parecer
indefesos e dignos de pena a ponto de comover aqueles que tinham meios
de defendê-los, protetores munidos de armas modernas e disciplina
férrea, e por que eles estariam demorando tanto para chegar? Enquanto
choravam, constatavam que eram capazes de se olhar nos olhos uns dos
outros, como se libertados da maioria de suas necessidades de fingir que
eram adultos, necessidades que estavam em vigor até poucos segundos
antes."
Thomas Pynchon (1937-). Contra o dia (2006). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 855-6
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