segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Trinta e três

De todos os lugares que freqüentava, seus preferidos eram as padarias e as farmácias.

Na melhor padaria da cidade ele adorava jogar conversa fora com as funcionárias e experimentar os maravilhosos quitutes que eram preparados todos os dias para o deleite de uma clientela assídua e exigente: bolos recheados com goiabada e doce de leite; tortas de frango e palmito com creme de milho; bolachas de limão, laranja e nozes com cobertura de chocolate; pudins de pão com canela; biscoitos de queijo e polvilho temperados com pimenta e ervas; rosquinhas de nata, e vários tipos de pães e salgados.

Era jovem, bonito, de aspecto saudável, mas seu índice de massa corporal indicava um excesso de vinte quilos de gordura, concentrados principalmente na barriga e na bunda.

Sua profissão: dentista. Odiava. Só trabalhava no turno da manhã para mostrar aos parentes e amigos que ele não era apenas um gordo inútil que vivia de mesada. O pai havia sido um grande empresário do setor metalúrgico. Morreu em um acidente de helicóptero aos setenta e sete anos, deixando as duas siderúrgicas que possuía para os três filhos homens. Os dois mais velhos, porém, não queriam que “o gordo” se metesse nos negócios da família e propuseram a ele uma boa mesada, desde que ficasse longe das empresas. Ele concordou com a proposta e continuou exercendo sua profissão de dentista pela manhã, sem se preocupar com a renda irrisória que aqueles poucos pacientes lhe proporcionavam.

Às vezes, nos enormes intervalos entre um paciente e outro, ele entrava no banheiro do consultório e se masturbava loucamente, folheando algumas das dezenas de revistas pornográficas que mantinha escondidas no armário, atrás da caixa de luvas descartáveis. Por volta das dez da manhã, saía para comer alguma coisa na lanchonete da esquina, quase sempre uma coxinha de frango ou uma empada de queijo com refrigerante. No almoço, por volta de meio-dia, saciava seu apetite de elefante no melhor restaurante de comida a quilo da cidade, onde ingeria o suficiente para sustentar uma pessoa franzina por duas semanas. Ao sair do restaurante, com os gases do estômago se preparando para forçar passagem pelo esôfago, pensava no que iria comer às três da tarde, sozinho, em seu apartamento.

Na farmácia, seu maior passatempo era ler e estudar a composição dos remédios.

Toda vez que renovava seu estoque de medicamentos contra gripes e resfriados, selecionava várias cartelas de comprimidos, comparava uma marca com a outra, analisando a composição química, a posologia e as contra-indicações, mas quase sempre levava a que tivesse maior concentração de cloridrato de fenilefrina – pois a experiência o havia mostrado que quanto maior a quantidade desse componente no comprimido, mais rápido o seu nariz se desobstruía. Gostava também de analisar os medicamentos contra flatulência, azia e dor de cabeça, levando sempre aqueles que tivessem maior concentração deste ou daquele componente, pela sua ação mais eficaz, já comprovada.

Quase todas as noites ele tomava um ou dois comprimidos contra flatulência, tirava a roupa, deitava-se na enorme cama King Size do seu quarto e expelia com força os gases do seu intestino. Em alguns meses do ano, costumava fazer testes com diversas marcas desse tipo de medicamento, durante uma semana inteira, contando o número de peidos por hora e registrando com cruzinhas em uma folha de papel a intensidade e a duração de cada um. No sábado, quando ia à farmácia, comprava o remédio que tivesse em seu currículo maior número de peidos de alta potência, o que, para ele, indicava maior eficácia do medicamento.

Para a insônia, tomava um comprimido por dia, receitado por sua psiquiatra, que o aconselhava ao final de cada consulta a procurar um analista para “um tratamento sério”, pois “você precisa de outro tipo de ajuda, urgentemente”. Ele dizia que seguiria o conselho, pegava a receita e ia embora.

Nunca procurou um analista.

Aos domingos, procurava a mãe de sessenta e oito anos, que além de deitar a cabeça dele no colo, afagar seus cabelos e lhe dar conselhos, deixava que ele trouxesse a roupa suja para ser lavada junto com a dela toda semana.

Ao chegar à casa da mãe, depois de abraçá-la calorosamente, ia direto para a geladeira, onde sempre encontrava um pudim de leite condensado ou um manjar branco com ameixas pretas e calda de caramelo. No último domingo, enquanto ele comia, a mãe contava que a filha de um conhecido deles ia fazer intercâmbio na França e que um rapaz francês chegaria em breve e ficaria na casa dos pais dela. “Grande coisa”, disse ele, com a boca cheia. “Imagina o tanto de gente metida se achando o máximo que vai ficar encima desse coitado, puxando o saco dele”. A mãe riu, e ele continuou: “E vão tirar fotos dele, exibi-lo nas colunas sociais, nas festas chiques e eventos VIPs da City..., a maior chatice do mundo, a senhora vai ver”.

Levantou-se da mesa e dirigiu-se até a sacada do apartamento. Ali, debruçou-se sobre o parapeito e observou o trânsito na rua. Era carro que não acabava mais. Na praça da igreja, o movimento de fiéis saindo da missa era intenso. Olhou para o céu escuro, sem estrelas, e pensou na sua trajetória de vida, desde 1976, quando nasceu, até aquele momento, na casa da mãe, às vésperas de completar trinta e três anos.

Não demorou muito. Enxugou com as mãos as lágrimas que escorriam pelo seu rosto e foi até a sala, onde a mãe assistia a um filme francês na TV a cabo: Le Scaphandre et le Papillon. "Você devia aprender francês", disse ela ao filho, concentrando-se na cena em que um tetraplégico era submetido à sua primeira sessão de fisioterapia. "É tão bonito!".

Flávio Marcus da Silva

Nenhum comentário: