terça-feira, 18 de agosto de 2009

Vinte por treze

Às cinco da manhã, o jovem assessor parlamentar acordou com o início do que seria, ao final da tarde, uma forte dor de cabeça, já pensando na agenda do seu chefe para aquela terça-feira, cheia de reuniões inúteis e compromissos banais. Mas ao tentar colocar o pé no chão, não conseguiu. Levantou a cabeça lentamente e levou um susto ao ver que, além de enrijecido, o seu joelho direito parecia uma batata gigante, de tão inchado. Deu um giro na cama e, apoiando-se no joelho esquerdo, que funcionava, dirigiu-se até o computador, para uma rápida consulta ao seu médico de plantão, o Dr. Google.

Em menos de um minuto vasculhava sites sobre reumatismo, artrite, artrose, e em menos de quinze já havia chegado à assustadora conclusão de que a súbita inflamação do seu joelho indicava uma única coisa: artrite reumatóide, a pior doença reumática conhecida, por ser crônica, incurável, degenerativa, acometer todas as articulações do corpo e ter alto poder de destruição.

Parado diante do computador, o rapaz pensava em seu futuro sombrio: nas deformidades que transformariam seu corpo após vários processos inflamatórios descontrolados; nas bengalas, muletas e coletes que teria que usar; nos efeitos colaterais causados pelos antiinflamatórios hormonais, não-hormonais e outras drogas de controle da doença, que teria que suportar, até chegar à cadeira de rodas, deformado pelos inúmeros nós e calombos nas articulações, com o corpo todo inchado por causa dos corticóides e dependente de doses cada vez mais fortes de analgésicos, para aliviar as dores insuportáveis.

Ficou mais de uma hora parado, sofrendo por antecipação e vasculhando seu passado à procura de alguma coisa que ele tivesse feito para merecer castigo tão terrível e cruel: “Uma vez minha mãe me disse que, na infância, eu era muito egoísta e malvado: que eu pulava da gangorra só para ver meu amiguinho cair; que eu apagava a luz do quarto e fechava a porta, deixando meu primo de três anos sozinho lá dentro; que eu só emprestava meus brinquedos depois que o meu pai me obrigava; que eu batia sem dó em qualquer pessoa que me ameaçasse; que eu mentia olhando nos olhos; que eu era respondão, gritava e esperneava quando desapontado, e estava sempre pronto para humilhar e diminuir as crianças que me causavam inveja...”. O homem enxugou uma lágrima que escorria em seu rosto e continuou: “Mas ninguém é perfeito (meus primos e amiguinhos também não eram santos) e Deus sempre perdoou as crianças”. Passou a mão direita no joelho inchado e sentiu que a enorme batata estava quente e latejava. “Não, não pode ser na infância”, disse para si mesmo. “Com certeza foi depois”. E lembrou-se das vezes que puxou o tapete de colegas de trabalho para subir na vida; que aceitou dinheiro público como pagamento extra por serviços de caráter privado; que mentiu para salvar seu chefe da fogueira. “Será?”.

Retorceu as mãos em desespero, e ao se apoiar no joelho esquerdo para se levantar, sentiu que ele também começava a perder flexibilidade. “Meu Deus!”, gritou alto. Ao ficar de pé, com muito custo (suando frio e com o coração acelerado), perdeu o equilíbrio e caiu, batendo a cabeça na quina da escrivaninha. Apoiou-se com a mão esquerda no chão e com a outra sentiu o sangue que escorria em abundância pela sua testa, até o pescoço. Arrastou-se até o telefone e ligou para um vizinho, que chegou cinco minutos depois, arrombando a porta para entrar no apartamento.

No hospital, levou alguns pontos na cabeça, tomou um analgésico e, mais calmo, exigiu a presença de um médico reumatologista, que após examiná-lo longa e calmamente (pois a consulta era particular), tranqüilizou-o, dizendo que aquele processo inflamatório tinha sido provavelmente uma manifestação psicossomática, devido ao estresse e às preocupações, mas que, por via das dúvidas, pediria alguns exames e acompanharia o seu caso de perto.

Dez dias depois, medicado e recuperado, o jovem assessor riu de si mesmo ao se lembrar do seu desespero irracional. “Vou seguir o conselho do médico e procurar ajuda psicológica”, pensou.

No domingo, saiu bem cedo para uma caminhada ao redor da lagoa, mas antes de começar o percurso, resolveu parar no quiosque de uma farmácia para medir a pressão. Puf, puf, puf, puf, puf... ssssssssssssss...: Treze por oito. “Meça de novo, por favor”, pediu ele à moça da farmácia. Puf, puf, puf, puf, puf, puf... sssssssssssssssss...: Quatorze por oito. “Mas o que é isso?”, perguntou ele, desesperado. “O senhor ficou nervoso”, tentou explicar a moça, “e a pressão subiu um pouco, é normal”. Ele pediu para repetir, mas a moça tentou acalmá-lo, dizendo que treze por oito já era uma boa medida para a idade dele, e que se ela medisse novamente, provavelmente o resultado seria um número maior que quatorze por oito. “Meça de novo”, insistiu ele. Ela mediu. Dito e feito: Dezesseis por nove. Saiu dali desesperado, esquecendo-se da caminhada. Foi à farmácia mais próxima e comprou um aparelho digital para medição da pressão arterial.

Em seu apartamento, passou o domingo inteiro medindo a pressão e anotando os números obtidos em uma folha de papel, para no dia seguinte poder apresentá-los a um cardiologista.

Às dez da noite, com os dois braços latejando e doloridos de tanto puf, puf, puf, o jovem assessor parlamentar obteve o último resultado das centenas de medições realizadas naquele domingo, poucos segundos antes de um vaso sanguíneo arrebentar em seu cérebro:

Vinte por treze.

Flávio Marcus da Silva

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