quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Baratas

Ele devia ter uns vinte e oito anos. Morava com a mulher e o filho na casa da sogra – uma viúva gorda e vaidosa –, que com a pensão deixada pelo marido militar sustentava a casa sozinha e ainda pagava a faculdade do genro, sem chiar.

Ao acordar todos os dias por volta de onze e meia da manhã, ele almoçava – quase sempre reclamando da comida "sem sal" ou "salgada demais", "com gosto de queimado" ou "sem gosto de nada" –, levava o filho de cinco anos à escola e ia direto para a Biblioteca Pública estudar.

Em casa, a jovem esposa gostava de ouvir música Punk e fumar maconha a tarde inteira, o que impedia qualquer um de se concentrar no que quer que fosse. Por isso, nesse período, a casa era só dela.

Na Biblioteca, porém, o que ele menos fazia era estudar. Ficava fuçando os livros nas estantes, reclamando da "bagunça", da "sujeira", da falta disso e daquilo, do atendimento das funcionárias "mal vestidas", "incompetentes" e "burras", do barulho, do calor, da iluminação.

Depois de encher bastante o saco do pessoal da Biblioteca, ele costumava dar uma volta pelo centro da cidade. Como a esposa dividia com ele a mesada que recebia da mãe, ele costumava fazer compras à tarde: sapatos, calças, camisas, bermudas, chinelos, CDs, chocolates, remédios; e quase todos os dias tomava café numa lanchonete em frente à igreja, onde também reclamava de tudo: do pão de queijo "sem queijo", do pastel de carne "sem carne", do café "fraco demais" ou "forte demais", da empadinha "sem recheio", dos mosquitos pousando nos bolos e biscoitos, das tortas "sem gosto".

Uma vez ele quase levou uma surra do dono da lanchonete que, sentado na cozinha, ao ouvi-lo reclamar pela quinta vez de um bolo de fubá, levantou-se num salto e, com os punhos fechados, dirigiu-se à porta que dava para o balcão, disposto a arrancar a socos todos os dentes da sua boca – mas foi impedido pela filha, que jogou um tabuleiro de empadinhas recém saídas do forno sobre a mesa e correu pra frente da porta implorando "Pai, pelo amor de Deus, não faça isso".

Para ele, humilhar e constranger as pessoas era um prazer a mais na sua vida. Distribuía críticas e comentários venenosos, sorrisos irônicos e olhares de escárnio a qualquer um que cruzasse o seu caminho. Achava-se superior a todo mundo, imbatível, dono de todas as verdades.

Mas de muitas verdades ele nem desconfiava.

Não desconfiava, por exemplo, que em casa, pelo menos duas vezes por semana, sua jovem e linda esposa recebia a visita de um rapaz negro, estudante de Enfermagem, que a fazia gozar como nunca na cama do casal; que as funcionárias da Biblioteca imitavam o seu jeito de falar meio fanhoso e efeminado, riam do seu "cabelinho de bicha" e comentavam detalhes das últimas transas da sua mulher com o "enfermeiro tripé", primo de uma delas; que vários professores deixavam as provas dele para serem corrigidas por último, com muita atenção, para que a elas fossem atribuídas as piores notas possíveis, sem que ele tivesse a mínima condição de reclamar; que requerimentos entregues por ele em repartições públicas da cidade eram sempre misturados aos últimos da fila; que lojistas, frentistas e mecânicos faziam questão de passá-lo pra trás, sempre que possível; e por aí vai.

Mas a pessoa que mais o odiava era a filha do dono da lanchonete.

Uma vez por semana, ela entrava na velha casa abandonada da esquina e escolhia duas ou três baratas bem gordas entre as milhares que infestavam o lugar. Deixava-as em uma caixa de papelão e, na sexta-feira (dia dele ir à lanchonete comer pastel de carne com refrigerante), ela preparava o recheio.

Por volta de três da tarde, usando uma caneta vermelha, a jovem riscava uma das trinta baratinhas desenhadas em uma lista intitulada Baratas, que ela levava toda sexta-feira para a lanchonete. Depois, escolhia a barata mais gorda da caixa e a picava bem fininho, em minúsculos pedacinhos, usando uma faca afiada reservada especialmente para isso. Misturava à barata alho, sal, pimenta do reino, salsinha, cebola picadinha e refogava tudo em óleo, acrescentando, em seguida, o extrato de tomate e a carne.

Sua meta era fazê-lo comer trinta baratas gordas.

Flávio Marcus da Silva

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