"Ele ficou desapontado...", pensou o jovem estudante, ao entrar sozinho no elevador e cumprimentar o velho advogado do 1002. “E eu também”, murmurou para si mesmo, tentando disfarçar a vontade de rir.
Por mais que refletisse, não conseguia entender o bolo que a namorada havia lhe dado. Pensativo, encostou a cabeça no espelho, fechou os olhos e acabou se esquecendo de apertar o número do seu andar. Quando percebeu, já era tarde.
O elevador parou e o velho saiu. Na mão direita levava uma sacola plástica bem volumosa, contendo o seu jantar especial de sexta-feira. Mas antes de chegar à porta do apartamento, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos no chão. O jovem, que assistiu à cena, saiu correndo do elevador para ajudá-lo. "O senhor está bem?", perguntou. "Sim, não se preocupe", respondeu o velho; mas o outro não acreditou: "Eu acho que não, vovô", pensou, e disse, levantando-o: "Venha. Eu ajudo o senhor a entrar". Abriu a porta do apartamento e, com cuidado, colocou o velho deitado no sofá. Foi à cozinha, deixou a sacola com o jantar na bancada da pia e voltou para a sala. "E agora?", se perguntou em silêncio. "Vou embora e deixo-o aqui sozinho?". O velho gemia de dor. "Não, não posso deixá-lo", concluiu. "Sua esposa não está?", perguntou só por perguntar, pois já sabia a resposta. O velho balançou a cabeça negativamente.
"Onde o senhor está sentindo dor?", perguntou. Como resposta, o velho colocou a mão no joelho direito. O rapaz se abaixou para olhar. "Posso ver?". Desceu a calça do velho, olhou o joelho com atenção e coçou a cabeça, preocupado. "Não se mexa. Vou fazer uma compressa de gelo". Foi novamente à cozinha, livrou a sacola plástica do seu conteúdo (uma lasanha congelada, dois pedaços de torta holandesa e uma garrafa de vinho) e desenformou nela trinta pedras de gelo. "Segura aqui, Doutor P". Os dois se olharam. "Você sabe o meu nome...", disse o velho, como se pedisse uma explicação. O jovem ficou sem graça. "Eu já li sobre o senhor nos jornais. Eu gosto de acompanhar notícias sobre processos criminais", disse. Não era mentira, mas o que realmente havia despertado o interesse do jovem pela vida do velho advogado criminalista foi tê-lo visto assistindo a uma transa sua com a namorada.
"Quantos anos você tem?", perguntou o velho.
"Vinte e dois".
"Estuda?".
"Jornalismo".
"Gosta de ler?".
"Sim".
"Então entra ali", disse o velho, indicando uma porta à esquerda.
Ao entrar na biblioteca, o jovem estudante ficou impressionado com a quantidade de obras-primas da literatura que se enfileiravam nas prateleiras, a maioria delas no idioma original.
Na sala, de olhos fechados e com o joelho latejando de dor, o velho revia uma cena do seu post-mortem que a cada dia ganhava contornos mais nítidos na sua imaginação. Nela, suas filhas apareciam encaixotando os livros da biblioteca, junto com o dono de um sebo, um velho barbudo e asqueroso, que avaliava e colocava preço em tudo. Enquanto as obras eram empilhadas nas caixas de papelão, ele fazia comentários depreciativos sobre o estado de conservação dos livros, a qualidade dos textos, dos autores, etc., sem qualquer contestação das três herdeiras, que não viam a hora de se livrarem daquele lixo para sempre.
Uma hora depois, o jovem voltou para a sala e perguntou: "O senhor guarda os registros dos casos em que atuou?". O velho abriu os olhos, assustado, como se não tivesse entendido a pergunta, mas respondeu quase imediatamente: "Claro que sim. Tenho tudo guardado, inclusive os discursos que eu escrevi para inocentar alguns dos bandidos mais perigosos que esse país já conheceu. É um verdadeiro festival de horrores: assassinos cruéis endinheirados se livrando da cadeia, enquanto ladrões de galinha são condenados a anos de prisão por culpa de seus advogados incompetentes, incapazes de escrever um simples ofício, quanto mais uma petição ou um discurso de defesa". O jovem o olhava intrigado.
"Você sabe escrever?", perguntou o velho.
"Sim".
"Estou procurando alguém para escrever um relato sobre a minha vida. Quero que ele seja distribuído a todas as pessoas que comparecerem ao meu velório. Você tem interesse?".
"Um relato...".
"Sim".
"Sobre os crimes também?".
"Sobre os crimes também".
Por mais que refletisse, não conseguia entender o bolo que a namorada havia lhe dado. Pensativo, encostou a cabeça no espelho, fechou os olhos e acabou se esquecendo de apertar o número do seu andar. Quando percebeu, já era tarde.
O elevador parou e o velho saiu. Na mão direita levava uma sacola plástica bem volumosa, contendo o seu jantar especial de sexta-feira. Mas antes de chegar à porta do apartamento, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos no chão. O jovem, que assistiu à cena, saiu correndo do elevador para ajudá-lo. "O senhor está bem?", perguntou. "Sim, não se preocupe", respondeu o velho; mas o outro não acreditou: "Eu acho que não, vovô", pensou, e disse, levantando-o: "Venha. Eu ajudo o senhor a entrar". Abriu a porta do apartamento e, com cuidado, colocou o velho deitado no sofá. Foi à cozinha, deixou a sacola com o jantar na bancada da pia e voltou para a sala. "E agora?", se perguntou em silêncio. "Vou embora e deixo-o aqui sozinho?". O velho gemia de dor. "Não, não posso deixá-lo", concluiu. "Sua esposa não está?", perguntou só por perguntar, pois já sabia a resposta. O velho balançou a cabeça negativamente.
"Onde o senhor está sentindo dor?", perguntou. Como resposta, o velho colocou a mão no joelho direito. O rapaz se abaixou para olhar. "Posso ver?". Desceu a calça do velho, olhou o joelho com atenção e coçou a cabeça, preocupado. "Não se mexa. Vou fazer uma compressa de gelo". Foi novamente à cozinha, livrou a sacola plástica do seu conteúdo (uma lasanha congelada, dois pedaços de torta holandesa e uma garrafa de vinho) e desenformou nela trinta pedras de gelo. "Segura aqui, Doutor P". Os dois se olharam. "Você sabe o meu nome...", disse o velho, como se pedisse uma explicação. O jovem ficou sem graça. "Eu já li sobre o senhor nos jornais. Eu gosto de acompanhar notícias sobre processos criminais", disse. Não era mentira, mas o que realmente havia despertado o interesse do jovem pela vida do velho advogado criminalista foi tê-lo visto assistindo a uma transa sua com a namorada.
"Quantos anos você tem?", perguntou o velho.
"Vinte e dois".
"Estuda?".
"Jornalismo".
"Gosta de ler?".
"Sim".
"Então entra ali", disse o velho, indicando uma porta à esquerda.
Ao entrar na biblioteca, o jovem estudante ficou impressionado com a quantidade de obras-primas da literatura que se enfileiravam nas prateleiras, a maioria delas no idioma original.
Na sala, de olhos fechados e com o joelho latejando de dor, o velho revia uma cena do seu post-mortem que a cada dia ganhava contornos mais nítidos na sua imaginação. Nela, suas filhas apareciam encaixotando os livros da biblioteca, junto com o dono de um sebo, um velho barbudo e asqueroso, que avaliava e colocava preço em tudo. Enquanto as obras eram empilhadas nas caixas de papelão, ele fazia comentários depreciativos sobre o estado de conservação dos livros, a qualidade dos textos, dos autores, etc., sem qualquer contestação das três herdeiras, que não viam a hora de se livrarem daquele lixo para sempre.
Uma hora depois, o jovem voltou para a sala e perguntou: "O senhor guarda os registros dos casos em que atuou?". O velho abriu os olhos, assustado, como se não tivesse entendido a pergunta, mas respondeu quase imediatamente: "Claro que sim. Tenho tudo guardado, inclusive os discursos que eu escrevi para inocentar alguns dos bandidos mais perigosos que esse país já conheceu. É um verdadeiro festival de horrores: assassinos cruéis endinheirados se livrando da cadeia, enquanto ladrões de galinha são condenados a anos de prisão por culpa de seus advogados incompetentes, incapazes de escrever um simples ofício, quanto mais uma petição ou um discurso de defesa". O jovem o olhava intrigado.
"Você sabe escrever?", perguntou o velho.
"Sim".
"Estou procurando alguém para escrever um relato sobre a minha vida. Quero que ele seja distribuído a todas as pessoas que comparecerem ao meu velório. Você tem interesse?".
"Um relato...".
"Sim".
"Sobre os crimes também?".
"Sobre os crimes também".
Flávio Marcus da Silva
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