O historiador solicitou os documentos, fechou os olhos e se preparou para mais um encontro com os seus mortos.
Todos os dias, após o almoço, ele se dirigia ao belo prédio do século dezenove, onde se localizava o Arquivo Público, para ler alguns documentos manuscritos da Seção Colonial: leis, editais, testamentos, inventários e processos-crime do século dezoito, produzidos, em sua maior parte, em Ouro Preto, Mariana, Sabará e São João Del Rei, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal.
Sua preparação consistia em se imaginar no ano de 1725 (exatamente duzentos e cinqüenta anos antes do seu nascimento), na praça principal de uma vila mineira, repleta de escravos, roceiros, mineradores, negociantes, prostitutas e negras vendendo quitutes em tabuleiros. Procurava esquecer o presente e suas interferências: desde visões de mundo e idéias sobre o certo, o errado, o justo e o injusto, até o irritante barulho dos notebooks pertencentes a três outros pesquisadores que, todas as tardes, como ele, marcavam presença no Arquivo - cada um ouvindo, à sua maneira, as vozes do passado.
Ao receber os documentos, o historiador colocou as luvas de borracha, ajustou os óculos e a máscara de proteção com cuidado, pegou o primeiro manuscrito e começou a leitura. Era um processo-crime contra um minerador de vinte e cinco anos acusado de assassinar um fazendeiro na cidade de Mariana em 1748. O rapaz era descrito como um faiscador de ouro, solteiro, sem escravos, que vivia em Mariana desde 1745, quando havia chegado de Lisboa com o tio, um comerciante do Algarve, assassinado por um bando de salteadores no Caminho do Sertão quatro meses após o seu desembarque no porto do Rio de Janeiro.
O advogado responsável pela defesa do rapaz era um nobre português formado na Universidade de Coimbra, já conhecido do historiador, pois aparecia em outros processos, sempre defendendo autoridades do governo, mineradores poderosos e negociantes abastados. Mas por que estaria ele atuando na defesa de um minerador pobre, que vivia de faiscar ouro nos morros, mal conseguindo o suficiente para sobreviver?
Continuou a leitura do documento e pouco a pouco foi sendo apresentado aos personagens daquele complexo drama humano: uma viúva desequilibrada, que havia acertado um tiro na perna do marido dois dias antes dele ser assassinado; um ex-escravo, que jurava estar na companhia do acusado na hora do crime; um atravessador de mantimentos, que comprava milho, feijão e azeite de mamona do falecido; uma prostituta que, ao voltar para casa, na noite do crime, teria visto o acusado rondando a fazenda do morto; um fiscal da câmara acusado de contrabando de ouro, amigo do acusado desde a infância, em Lisboa; uma negra forra que afirmava serem o fiscal da câmara e o fazendeiro assassinado inimigos mortais; e uma velha bruxa, acusada de ter jogado um feitiço no fazendeiro alguns dias antes dele ser morto.
Por trás da incômoda máscara de proteção, o historiador conversava com o documento, pedindo mais detalhes, mais informações que lhe permitissem visualizar melhor todo aquele quadro, mas faltavam páginas e, o mais importante, o desfecho do processo. Não encontrou qualquer resposta para as suas perguntas: Quem havia assassinado o fazendeiro? Qual o motivo do crime? Por que o ilustre advogado havia atuado naquele caso, quando não era seu costume defender gente pobre?
O historiador saiu do Arquivo decepcionado. Havia ficado quase cinco horas debruçado sobre aquele processo sem conseguir transcrever qualquer informação útil para a sua tese, e o que era pior: sem desvendar o instigante mistério.
Subiu lentamente a avenida em direção à bela praça centenária, pensando nos milhares de homens e mulheres do século dezoito cujas vidas tinham se perdido na noite dos tempos.
A praça estava em movimento. Dezenas de pessoas caminhavam ou corriam ao redor dos jardins e fontes que, certamente, naquele início de noite, proporcionavam perfume e frescor a muitas almas em sofrimento, obcecadas com o sucesso profissional, a posição social, a riqueza e o poder. “Será que daqui a duzentos anos algum historiador vai se interessar pelos registros deixados por essas pessoas?”, perguntou a si mesmo, ao se sentar em um banco da praça, observando um rapaz e duas moças que corriam juntos, tão sérios e cheios de si que ele quase acreditou estar testemunhando a passagem de três deuses e não de simples mortais.
Levantou-se e caminhou lentamente até o pequeno cinema localizado um quarteirão abaixo da praça. Comprou ingresso para o último filme do Almodóvar, e, como tinha tempo, tomou um café expresso e entrou na livraria, ao lado da entrada principal. Passou vinte minutos folheando os livros, pensando se um dia teria seu trabalho publicado por alguma editora. Tinha quase certeza que sim. Só não sabia se um público não especializado se interessaria pelos fragmentos da vida de tantas pessoas mortas, quando, em pleno século vinte e um, o que o homem cultuava, acima de tudo, era o AGORA, com todas as suas promessas de prosperidade e felicidade para o futuro. "É quase certo que ficarei restrito à Academia", pensou, enquanto se dirigia à sala de exibição para um reencontro fascinante com o universo almodovariano.
Todos os dias, após o almoço, ele se dirigia ao belo prédio do século dezenove, onde se localizava o Arquivo Público, para ler alguns documentos manuscritos da Seção Colonial: leis, editais, testamentos, inventários e processos-crime do século dezoito, produzidos, em sua maior parte, em Ouro Preto, Mariana, Sabará e São João Del Rei, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal.
Sua preparação consistia em se imaginar no ano de 1725 (exatamente duzentos e cinqüenta anos antes do seu nascimento), na praça principal de uma vila mineira, repleta de escravos, roceiros, mineradores, negociantes, prostitutas e negras vendendo quitutes em tabuleiros. Procurava esquecer o presente e suas interferências: desde visões de mundo e idéias sobre o certo, o errado, o justo e o injusto, até o irritante barulho dos notebooks pertencentes a três outros pesquisadores que, todas as tardes, como ele, marcavam presença no Arquivo - cada um ouvindo, à sua maneira, as vozes do passado.
Ao receber os documentos, o historiador colocou as luvas de borracha, ajustou os óculos e a máscara de proteção com cuidado, pegou o primeiro manuscrito e começou a leitura. Era um processo-crime contra um minerador de vinte e cinco anos acusado de assassinar um fazendeiro na cidade de Mariana em 1748. O rapaz era descrito como um faiscador de ouro, solteiro, sem escravos, que vivia em Mariana desde 1745, quando havia chegado de Lisboa com o tio, um comerciante do Algarve, assassinado por um bando de salteadores no Caminho do Sertão quatro meses após o seu desembarque no porto do Rio de Janeiro.
O advogado responsável pela defesa do rapaz era um nobre português formado na Universidade de Coimbra, já conhecido do historiador, pois aparecia em outros processos, sempre defendendo autoridades do governo, mineradores poderosos e negociantes abastados. Mas por que estaria ele atuando na defesa de um minerador pobre, que vivia de faiscar ouro nos morros, mal conseguindo o suficiente para sobreviver?
Continuou a leitura do documento e pouco a pouco foi sendo apresentado aos personagens daquele complexo drama humano: uma viúva desequilibrada, que havia acertado um tiro na perna do marido dois dias antes dele ser assassinado; um ex-escravo, que jurava estar na companhia do acusado na hora do crime; um atravessador de mantimentos, que comprava milho, feijão e azeite de mamona do falecido; uma prostituta que, ao voltar para casa, na noite do crime, teria visto o acusado rondando a fazenda do morto; um fiscal da câmara acusado de contrabando de ouro, amigo do acusado desde a infância, em Lisboa; uma negra forra que afirmava serem o fiscal da câmara e o fazendeiro assassinado inimigos mortais; e uma velha bruxa, acusada de ter jogado um feitiço no fazendeiro alguns dias antes dele ser morto.
Por trás da incômoda máscara de proteção, o historiador conversava com o documento, pedindo mais detalhes, mais informações que lhe permitissem visualizar melhor todo aquele quadro, mas faltavam páginas e, o mais importante, o desfecho do processo. Não encontrou qualquer resposta para as suas perguntas: Quem havia assassinado o fazendeiro? Qual o motivo do crime? Por que o ilustre advogado havia atuado naquele caso, quando não era seu costume defender gente pobre?
O historiador saiu do Arquivo decepcionado. Havia ficado quase cinco horas debruçado sobre aquele processo sem conseguir transcrever qualquer informação útil para a sua tese, e o que era pior: sem desvendar o instigante mistério.
Subiu lentamente a avenida em direção à bela praça centenária, pensando nos milhares de homens e mulheres do século dezoito cujas vidas tinham se perdido na noite dos tempos.
A praça estava em movimento. Dezenas de pessoas caminhavam ou corriam ao redor dos jardins e fontes que, certamente, naquele início de noite, proporcionavam perfume e frescor a muitas almas em sofrimento, obcecadas com o sucesso profissional, a posição social, a riqueza e o poder. “Será que daqui a duzentos anos algum historiador vai se interessar pelos registros deixados por essas pessoas?”, perguntou a si mesmo, ao se sentar em um banco da praça, observando um rapaz e duas moças que corriam juntos, tão sérios e cheios de si que ele quase acreditou estar testemunhando a passagem de três deuses e não de simples mortais.
Levantou-se e caminhou lentamente até o pequeno cinema localizado um quarteirão abaixo da praça. Comprou ingresso para o último filme do Almodóvar, e, como tinha tempo, tomou um café expresso e entrou na livraria, ao lado da entrada principal. Passou vinte minutos folheando os livros, pensando se um dia teria seu trabalho publicado por alguma editora. Tinha quase certeza que sim. Só não sabia se um público não especializado se interessaria pelos fragmentos da vida de tantas pessoas mortas, quando, em pleno século vinte e um, o que o homem cultuava, acima de tudo, era o AGORA, com todas as suas promessas de prosperidade e felicidade para o futuro. "É quase certo que ficarei restrito à Academia", pensou, enquanto se dirigia à sala de exibição para um reencontro fascinante com o universo almodovariano.
Flávio Marcus da Silva
Um comentário:
Uma crônica-biográfica? Entendi agora por que você começou a escrever crônicas. Quer ultrapassar os limites do público-leitor especializado, não é?
Achei fantástico esse texto.
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