quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Aniversário

Ele chegou em casa por volta de oito da noite. Tirou a roupa e, de frente para o espelho, apalpou a indesejada barriguinha, que crescia a olhos vistos desde que completara trinta anos (embora já tivesse experimentado várias dietas: da sopa, da proteína, do carboidrato, dos pontos, do tipo sangüíneo...). Aproximou o rosto do espelho e observou as rugas que se formavam na testa e ao redor dos olhos, os pêlos que saíam das duas narinas cheias de muco, a barba de cinco dias falhada nos pontos onde as cicatrizes de espinha eram mais profundas, o cabelo oleoso e despenteado, o olhar vazio, sem vida.

Era seu aniversário de trinta e três anos. Estava sozinho em casa, sem qualquer esperança de receber uma visita ou um telefonema. Não tinha amigos e há muitos anos não dava notícias à família, que vivia no interior. Ocupava um cargo importante no Estado, mas odiava o seu trabalho. Todos os dias era a mesma rotina de processos, procurações, requerimentos e ofícios; o mesmo formalismo no vestir, andar e falar; a mesma sensação de vazio e tempo perdido, que nem o prestígio e o alto salário conseguiam preencher. Seus únicos prazeres eram o passeio pelo centro da cidade após o expediente, quando visitava livrarias e jantava em restaurantes requintados, e a TV a cabo, que assistia todas as noites em casa, deitado no enorme sofá da sala, completamente nu.

Naquela noite ele trouxe para casa um bolo de aniversário que havia encomendado em uma confeitaria perto do prédio onde trabalhava. Ele mesmo havia escolhido o recheio: de nozes e damasco; e a cobertura: de limão e caramelo. Assim que se despiu, dirigiu-se à cozinha e se serviu de um pedaço, que comeu em pé, enquanto abria a geladeira e pegava uma latinha de guaraná diet. Levou a caixa com o bolo e o refrigerante para a sala, onde ligou a televisão e se acomodou no sofá, preparando-se para assistir a mais um episódio do seu seriado americano favorito. Com a mão esquerda, sem usar faca ou qualquer outro talher, serviu-se de mais um pedaço do bolo, lambuzando a boca e o queixo enquanto comia. Do nariz escorria um líquido gelatinoso, que ele espalhava pelo rosto com as mãos e depois limpava no peito, na barriga ou nas almofadas do sofá. Os olhos estavam úmidos e avermelhados.

Às duas horas da madrugada, ele desligou a TV, foi para a janela que dava para a frente da casa e acendeu um cigarro. Deve ter ficado ali uns dez minutos fumando e observando a rua deserta, até que o velho casal de aposentados apareceu na calçada, do outro lado, e começou a fuçar o lixo do vizinho. Ele conhecia a história daquele casal, sabia de suas excentricidades e maluquices, mas mesmo assim resolveu tentar uma abordagem. Chamou-os com rápidos movimentos dos braços, que imediatamente foram vistos pelo velho. A mulher observava atentamente uma cabeça de boneca, segurando-a com as duas mãos, bem perto dos olhos, quando recebeu um cutucão do marido. Da janela, o rapaz continuava a fazer sinais, pedindo para que o casal se aproximasse. Quando os dois atravessaram a rua e pararam em frente ao portão da casa, ele disse: “Eu tenho aqui um bolo de aniversário. Vocês querem um pedaço?”. O velho balançou a cabeça em sinal de afirmação.

O que havia sobrado do bolo foi entregue ao casal, que pareceu nem ter notado a nudez do rapaz quando ele se aproximou do portão. A velha colocou o bolo junto com a cabeça de boneca em uma sacola de plástico e saiu na frente, sem dizer nada. O velho ficou parado, olhando a casa e as plantas do jardim por alguns segundos. Depois, baixou a cabeça e seguiu a mulher.

Ao ver que os dois haviam virado a esquina, o rapaz entrou, foi à cozinha, fez um café e esperou o dia raiar.

"Mais um...".

Flávio Marcus da Silva

Um comentário:

Granma disse...

Essa crônica me lembra uma música do Chico que é mais ou menos assim:

"A vida é feita de um rosário
Que custa tanto a se acabar
Por isso às vezes ela pára
E senta um pouco pra chorar
Que dia! Nossa, pra que tanta conta
Já perdi a conta de tanto rezar"

(Umas e outras)

Gostei da crônica.