Da enorme janela panorâmica, que ocupava uma parede inteira da sua sala de estar, o homem tinha uma visão privilegiada da cidade, com suas casas e prédios estendendo-se até as margens do rio de águas escuras que cortava a região e desaparecia atrás de uma imponente montanha ao sul. Desde que conseguiu fraudar a Previdência Social e se aposentar por invalidez, ele se dizia todas as manhãs, ao se levantar, que naquele dia atravessaria a cidade a pé, alugaria um barco e desceria o rio até o vilarejo mais próximo, onde ficaria hospedado em uma pensão barata por dois dias. Dez anos de aposentadoria já haviam se passado e ele não conhecia o rio, nem o vilarejo, que, diziam, tinha o cemitério mais antigo da região.
O homem adorava cemitérios. Todo sábado à tarde, depois de tomar uma xícara de café preto bem forte, ele vestia uma calça jeans surrada e uma camisa de algodão, calçava um velho par de tênis, besuntava o rosto e os braços com protetor solar fator 50 e saía em direção ao cemitério local. Era lá que estavam enterrados seus avós, pais, tios e alguns poucos amigos.
Na cidade, seu único parente vivo era uma tia corcunda de oitenta anos, que vivia sozinha numa velha casa de madeira, construída no início do século XIX pelos primeiros membros da sua família que chegaram à cidade, vindos de Sintra, Portugal. Os historiadores locais, que viviam de compilar documentos e publicar textos que ninguém lia, diziam que os primeiros moradores daquela casa haviam sido expulsos de Portugal, acusados de bruxaria.
No cemitério, visitava primeiro os túmulos dos ricos, quase todos erguidos com blocos de granito ou mármore escuro, com conjuntos estatuários de bronze esculpidos por artistas de renome e belas inscrições gravadas na pedra ou em metal, impecáveis; depois visitava os dos pobres, que ficavam no alto de um morro sem árvores, com acesso dificultado pela topografia do terreno e pela estreiteza dos caminhos. "Como na vida", dizia para si mesmo, enquanto caminhava entre túmulos de alvenaria, pintados com tinta barata ou cal, ou cobertos de azulejo ou pedra ardósia. Olhava, melancólico, as fotos das pessoas falecidas, a maioria velhos; mas ultimamente vinha notando um aumento muito grande do número de jovens mortos em acidentes de trânsito ou assassinados.
No último sábado, notou que o velório estava lotado. Parou na porta, pensativo. Não conseguiu ler o nome do defunto, mas sabia que era alguém importante, pelo número de carros de luxo no estacionamento, homens de terno e gravata entrando e saindo, coroas de flores (das mais caras e requintadas) dispostas no passeio público e, também, pelo silêncio sepulcral que reinava no recinto, sem gritos de desespero, sem prantos, sem escândalo. O homem não entrou. Achava o cúmulo da hipocrisia ir a velórios quando mal se conhecia o morto e sua família, e cumprimentar parentes e amigos enlutados, com ar grave, fingindo tristeza, só para satisfazer uma curiosidade mórbida ou o desejo sádico de assistir à dor do outro.
Quando morreu seu pai, não contou para ninguém. Velou-o sozinho, em casa, com o caixão aberto em frente à janela panorâmica, tomando café e vendo a cidade se movimentar para cumprir a sina de mais um dia, enquanto, ao fundo, o rio de águas escuras corria lentamente em direção à montanha. No enterro, caía uma chuvinha fina e gelada. Quando a urna atingiu o fundo, convidou o coveiro a fazer uma prece silenciosa e, em seguida, enterraram o velho. A tia corcunda observava tudo de longe, protegida por uma sombrinha, e tão de repente quanto havia surgido, desapareceu.
Naquele dia, voltou para casa, preparou um café com torradas e sentou-se numa poltrona, bem ao lado de onde tinha estado o corpo do pai. Olhou para a janela e acompanhou um barco que descia o rio, até desaparecer na curva que terminava atrás da montanha.
Sob os últimos raios de sol do dia, as águas escuras brilhavam.
Flávio Marcus da Silva
O homem adorava cemitérios. Todo sábado à tarde, depois de tomar uma xícara de café preto bem forte, ele vestia uma calça jeans surrada e uma camisa de algodão, calçava um velho par de tênis, besuntava o rosto e os braços com protetor solar fator 50 e saía em direção ao cemitério local. Era lá que estavam enterrados seus avós, pais, tios e alguns poucos amigos.
Na cidade, seu único parente vivo era uma tia corcunda de oitenta anos, que vivia sozinha numa velha casa de madeira, construída no início do século XIX pelos primeiros membros da sua família que chegaram à cidade, vindos de Sintra, Portugal. Os historiadores locais, que viviam de compilar documentos e publicar textos que ninguém lia, diziam que os primeiros moradores daquela casa haviam sido expulsos de Portugal, acusados de bruxaria.
No cemitério, visitava primeiro os túmulos dos ricos, quase todos erguidos com blocos de granito ou mármore escuro, com conjuntos estatuários de bronze esculpidos por artistas de renome e belas inscrições gravadas na pedra ou em metal, impecáveis; depois visitava os dos pobres, que ficavam no alto de um morro sem árvores, com acesso dificultado pela topografia do terreno e pela estreiteza dos caminhos. "Como na vida", dizia para si mesmo, enquanto caminhava entre túmulos de alvenaria, pintados com tinta barata ou cal, ou cobertos de azulejo ou pedra ardósia. Olhava, melancólico, as fotos das pessoas falecidas, a maioria velhos; mas ultimamente vinha notando um aumento muito grande do número de jovens mortos em acidentes de trânsito ou assassinados.
No último sábado, notou que o velório estava lotado. Parou na porta, pensativo. Não conseguiu ler o nome do defunto, mas sabia que era alguém importante, pelo número de carros de luxo no estacionamento, homens de terno e gravata entrando e saindo, coroas de flores (das mais caras e requintadas) dispostas no passeio público e, também, pelo silêncio sepulcral que reinava no recinto, sem gritos de desespero, sem prantos, sem escândalo. O homem não entrou. Achava o cúmulo da hipocrisia ir a velórios quando mal se conhecia o morto e sua família, e cumprimentar parentes e amigos enlutados, com ar grave, fingindo tristeza, só para satisfazer uma curiosidade mórbida ou o desejo sádico de assistir à dor do outro.
Quando morreu seu pai, não contou para ninguém. Velou-o sozinho, em casa, com o caixão aberto em frente à janela panorâmica, tomando café e vendo a cidade se movimentar para cumprir a sina de mais um dia, enquanto, ao fundo, o rio de águas escuras corria lentamente em direção à montanha. No enterro, caía uma chuvinha fina e gelada. Quando a urna atingiu o fundo, convidou o coveiro a fazer uma prece silenciosa e, em seguida, enterraram o velho. A tia corcunda observava tudo de longe, protegida por uma sombrinha, e tão de repente quanto havia surgido, desapareceu.
Naquele dia, voltou para casa, preparou um café com torradas e sentou-se numa poltrona, bem ao lado de onde tinha estado o corpo do pai. Olhou para a janela e acompanhou um barco que descia o rio, até desaparecer na curva que terminava atrás da montanha.
Sob os últimos raios de sol do dia, as águas escuras brilhavam.
Flávio Marcus da Silva
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