O velho advogado desligou a televisão, vestiu um pijama e foi para a biblioteca, onde vasculhou as estantes em vários locais, até encontrar, atrás de alguns clássicos franceses do século XIX, uma volumosa pasta preta cheia de papéis velhos. Sentou-se na escrivaninha, abriu a pasta e, com cuidado, retirou a última folha do maço. Ali, escrito em letra cursiva pequena e elegante, na primeira linha, destacava-se o título: Livros que li no ano de 1958. Sorriu, emocionado, ao ler alguns comentários que havia escrito sobre suas leituras preferidas naquela época: os romances policiais da Coleção Amarela, editados a partir do início da década de 1930: O Mistério da Escada Circular, Os Três Punhais, Um Cadáver no Jardim, A Mão Decepada, A Pista da Vela Dobrada, O Mistério dos Fósforos Queimados, e muitos outros. Na folha anterior, que continha os comentários sobre as leituras feitas em 1959, o nostálgico advogado (que acabara de completar setenta anos) confirmou o título do primeiro livro que havia lido em inglês: Death on the Nile, de Agatha Christie.
Mas entre os inúmeros romances policiais ingleses e americanos, que ocupavam a maior parte das folhas amarelas da antiga pasta de recordações do advogado, apareciam também clássicos da literatura mundial dos séculos XIX e XX, romances e contos contemporâneos, obras de importantes cientistas sociais brasileiros, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, e várias teses de mestrado e doutorado em Sociologia, História, Ciência Política e Direito. Ficou particularmente espantado com a quantidade de obras lidas na década de 1970, quando já era um advogado em ascensão, casado e com três filhas pequenas.
Foi aí que se lembrou de como era obcecado com o sucesso profissional. Ficava no escritório até tarde, todos os dias, em reuniões intermináveis com sócios e clientes, e ainda virava noites estudando processos em casa. Tinha aulas de inglês, francês, alemão, espanhol e italiano, e se obrigava a ler pelo menos três horas por dia (inclusive nos finais de semana) textos originais em todas essas línguas, além do português. Utilizava um cronômetro para marcar o tempo que se dedicava à leitura, interrompendo a contagem sempre que era obrigado a abandonar o livro para ir ao banheiro ou atender a algum chamado importante. Era obrigado a fechar a semana com no mínimo vinte horas de leitura, em todas as línguas que conhecia, pois achava que o seu diferencial na profissão seria um vasto conhecimento das culturas e civilizações do mundo, adquirido através de suas literaturas, lidas, de preferência, no original; e como era advogado criminalista, dedicava-se com especial afinco à leitura dos melhores contos e romances policiais do mundo, com destaque para Conan Doyle, Chesterton, Dorothy L. Sayers e Agatha Christie.
Guardou as folhas de volta na pasta. Levantou-se com cuidado, apoiando-se na escrivaninha para não cair, e moveu lentamente a cabeça de um lado para o outro, visualizando, em toda a sua grandiosidade, as três enormes estantes repletas de livros. "Será que valeu a pena?", perguntou a si mesmo, enquanto caminhava em direção a uma prateleira, no lugar reservado aos autores russos do século XIX. Ao chegar bem perto, escolheu uma edição francesa de Crime e Castigo e dirigiu-se ao banheiro, no final do corredor. Ali, tirou a calça, sentou-se no vaso, abriu o livro e releu trechos que ele próprio havia marcado em 1977, ano em que entrou em contato pela primeira vez com o fascinante e sombrio universo de Dostoïevski.
Dessa primeira leitura, lembrava-se perfeitamente dos delírios de Raskolnikov, deitado em seu sofá no quarto miserável que alugava, ou andando sem rumo pelas ruas imundas de São Petersburgo. E de outras incursões literárias dessa mesma época recordava-se com detalhes de várias cenas: beijos, assassinatos, funerais, festas, duelos, guerras e discursos. Mas quando pensava nas três filhas, com dois, cinco e sete anos em 1977, poucas lembranças lhe vinham à cabeça, pois raramente tinha tempo para elas. "Hoje elas estão casadas, com filhos, e não as conheço", pensou com tristeza. "Valeu a pena?", perguntou novamente, dessa vez com os olhos fixos na imagem de seu rosto refletida no espelho (os cabelos brancos, a pele vincada), enquanto limpava com cuidado o ânus, maltratado por duas décadas de ataques recorrentes de hemorróidas.
Vestiu novamente a calça do pijama, apertou a descarga e caminhou em direção à sala. Recolheu os restos do jantar, jogados sobre a mesa em frente à televisão, e foi para o seu quarto, onde colocou um DVD, sentindo-se quase feliz por não ter que compartilhar a cama com a esposa naquele final de semana. O filme era o espanhol Tudo sobre minha mãe. Numa cena, ouviu uma frase que o fez suspirar:
Sucesso não tem cheiro, não tem sabor, e quando você se acostuma, é como se não existisse.
Flávio Marcus da Silva
Mas entre os inúmeros romances policiais ingleses e americanos, que ocupavam a maior parte das folhas amarelas da antiga pasta de recordações do advogado, apareciam também clássicos da literatura mundial dos séculos XIX e XX, romances e contos contemporâneos, obras de importantes cientistas sociais brasileiros, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, e várias teses de mestrado e doutorado em Sociologia, História, Ciência Política e Direito. Ficou particularmente espantado com a quantidade de obras lidas na década de 1970, quando já era um advogado em ascensão, casado e com três filhas pequenas.
Foi aí que se lembrou de como era obcecado com o sucesso profissional. Ficava no escritório até tarde, todos os dias, em reuniões intermináveis com sócios e clientes, e ainda virava noites estudando processos em casa. Tinha aulas de inglês, francês, alemão, espanhol e italiano, e se obrigava a ler pelo menos três horas por dia (inclusive nos finais de semana) textos originais em todas essas línguas, além do português. Utilizava um cronômetro para marcar o tempo que se dedicava à leitura, interrompendo a contagem sempre que era obrigado a abandonar o livro para ir ao banheiro ou atender a algum chamado importante. Era obrigado a fechar a semana com no mínimo vinte horas de leitura, em todas as línguas que conhecia, pois achava que o seu diferencial na profissão seria um vasto conhecimento das culturas e civilizações do mundo, adquirido através de suas literaturas, lidas, de preferência, no original; e como era advogado criminalista, dedicava-se com especial afinco à leitura dos melhores contos e romances policiais do mundo, com destaque para Conan Doyle, Chesterton, Dorothy L. Sayers e Agatha Christie.
Guardou as folhas de volta na pasta. Levantou-se com cuidado, apoiando-se na escrivaninha para não cair, e moveu lentamente a cabeça de um lado para o outro, visualizando, em toda a sua grandiosidade, as três enormes estantes repletas de livros. "Será que valeu a pena?", perguntou a si mesmo, enquanto caminhava em direção a uma prateleira, no lugar reservado aos autores russos do século XIX. Ao chegar bem perto, escolheu uma edição francesa de Crime e Castigo e dirigiu-se ao banheiro, no final do corredor. Ali, tirou a calça, sentou-se no vaso, abriu o livro e releu trechos que ele próprio havia marcado em 1977, ano em que entrou em contato pela primeira vez com o fascinante e sombrio universo de Dostoïevski.
Dessa primeira leitura, lembrava-se perfeitamente dos delírios de Raskolnikov, deitado em seu sofá no quarto miserável que alugava, ou andando sem rumo pelas ruas imundas de São Petersburgo. E de outras incursões literárias dessa mesma época recordava-se com detalhes de várias cenas: beijos, assassinatos, funerais, festas, duelos, guerras e discursos. Mas quando pensava nas três filhas, com dois, cinco e sete anos em 1977, poucas lembranças lhe vinham à cabeça, pois raramente tinha tempo para elas. "Hoje elas estão casadas, com filhos, e não as conheço", pensou com tristeza. "Valeu a pena?", perguntou novamente, dessa vez com os olhos fixos na imagem de seu rosto refletida no espelho (os cabelos brancos, a pele vincada), enquanto limpava com cuidado o ânus, maltratado por duas décadas de ataques recorrentes de hemorróidas.
Vestiu novamente a calça do pijama, apertou a descarga e caminhou em direção à sala. Recolheu os restos do jantar, jogados sobre a mesa em frente à televisão, e foi para o seu quarto, onde colocou um DVD, sentindo-se quase feliz por não ter que compartilhar a cama com a esposa naquele final de semana. O filme era o espanhol Tudo sobre minha mãe. Numa cena, ouviu uma frase que o fez suspirar:
Sucesso não tem cheiro, não tem sabor, e quando você se acostuma, é como se não existisse.
Flávio Marcus da Silva
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