segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Espasmos

O marido se olhava no espelho, ajeitando com uma escovinha os pêlos escuros do seu cavanhaque recém-aparado. Sorriu para si mesmo, feliz e confiante diante da imagem de um homem jovem, bonito, bem vestido e bem sucedido.

A esposa o olhava de longe, sem que ele percebesse, pensando na sorte que dera ao se casar com um dos homens mais ricos da cidade. Vivia em um bairro chique, de gente muito rica e importante, em uma enorme mansão, onde uma governanta e três empregadas cuidavam de todos os afazeres domésticos, e duas babás ficavam por conta dos dois filhos pequenos do casal: o mais velho, com dois anos, e o caçula, com oito meses.

Era quinta-feira à noite e as babás já tinham chegado. O casal ia se encontrar com alguns amigos em um sofisticado restaurante italiano, a última novidade no seleto mundo dos ricos da cidade. Para ela não passava de mais uma noite, de mais um encontro enfadonho com o mesmo grupo de gente fingida e invejosa que a cercava e a sufocava desde o dia do seu casamento, quando passou a fazer parte oficialmente do fechadíssimo círculo de amizades do marido. Eram empresários, médicos, engenheiros, advogados, promotores e políticos, mas também pessoas que, embora não fossem nada disso, eram consideradas da High Society pelos colunistas sociais da City: frequentavam os mesmos ambientes, tinham as mesmas roupas, os mesmos carros, os mesmos perfumes, os mesmos celulares, os mesmos ares de importância...

Ela adorava ler as colunas sociais dos três jornais locais, para se divertir com as mentiras e exageros dos colunistas que, muitas vezes, com seus superlativos, mascaravam realidades verdadeiramente sombrias: depressão, solidão, pânico, violência e medo. "Por trás de um sorriso de estrela de cinema, de um penteado que levou horas para ficar pronto e de uma maquiagem caríssima, podem se esconder dores terríveis", pensava. Ela bem sabia disso, pois sempre analisava suas próprias fotos nos jornais. Notava, com interesse, que na maioria das vezes em que era retratada como a mulher mais feliz do mundo, em fotos belíssimas, em que aparecia jovem e linda, abrindo para as câmeras sorrisos encantadores, sua alma era a dor mais pura que podia existir, e sua vontade, naquelas ocasiões, era de se esconder em um canto escuro do salão e chorar bem alto, até ficar sem voz. Ela sabia fingir. Ninguém parecia notar.

Naquela quinta-feira, porém, a esposa de um jovem e rico engenheiro, sentada bem à sua frente no restaurante, notou em seu olhar um leve traço de amargura e tristeza. No fundo, era uma sensação de desamparo e solidão, um vazio que ela tentava inutilmente preencher no dia-a-dia cuidando do corpo em academias, salões de beleza e clínicas de estética; fazendo compras no Shopping; tendo aulas de pintura, bordado, música, teatro... Ao fim do dia, seu marido chegava em casa e a encontrava linda e perfumada, pronta para recebê-lo na cama com seu membro em riste (pelo menos quando não voltava muito cansado e estressado do trabalho, desculpa habitual para as cada vez mais freqüentes broxadas).

Os assuntos no restaurante eram os mesmos de sempre: viagens ao exterior, filhos inteligentíssimos, carros possantes, empresas e negócios em ascensão, reformas de mansões e apartamentos, jantares e festas espetaculares, casamentos cinematográficos e, é claro, as desgraças dos outros (sempre dos outros).

A jovem esposa sentiu um leve mal-estar, notado apenas pela mulher do engenheiro, que não tirava os olhos dela e pensava: “Ela não vai agüentar”. Ninguém percebeu, mas o mal-estar aumentou, suas mãos começaram a tremer e uma gota de suor frio percorreu sua testa, passou pelo nariz e caiu bem dentro do prato, onde os restos de uma massa italiana de aspecto estranhíssimo permaneciam ainda quentes após três ou quatro garfadas.

Um ou dois minutos depois, a mulher do engenheiro perguntou: “Você está bem?”. Ao ouvir a pergunta, a jovem e bela esposa do também jovem e belo empresário colocou ambas as mãos sobre a borda da mesa e, com pernas trêmulas, inclinou levemente o corpo para frente, como se preparasse um salto. Porém, antes de conseguir completar o movimento, sentiu dois violentos espasmos percorrerem suas entranhas, paralizando-a. Nesse mesmo instante, trancou os dentes - uma última tentativa de evitar a tragédia -, mas não adiantou: a mulher aspergiu o repugnante conteúdo de seu ventre em agonia sobre toda a platéia. Até o promotor sentado à sua direita e a advogada à sua esquerda receberam sua parte, atônitos, estarrecidos.

Na semana seguinte, nenhum jornal da cidade comentou o fato.

Flávio Marcus da Silva

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