Na sala de espera da clínica psiquiátrica o jovem professor aguardava sua vez de ser atendido pela psicóloga, enquanto observava um casal de idosos sentado num dos confortáveis bancos à sua frente. [Naquele dia, antes de se encontrar com o médico, ele teria que conversar de novo com a psicóloga]. Olhou para o casal e perguntou em voz alta: “Será que são sempre os mesmos lugares?”. Os velhos se olharam, sem entender, e o jovem acrescentou, com voz de mulher: Hoje você está em uma cabana de madeira, no meio de uma floresta escura e úmida, com uma vassoura na mão. A cabana está suja e você vai limpá-la... “Pelo amor de Deus! Vocês já passaram por isso?”. O casal continuou em silêncio, com os olhos esbugalhados. De um salto, o rapaz se levantou, serviu-se de uma xícara de chá de erva cidreira e resmungou, enquanto bebia: “Assim que eu terminar essa maldita limpeza e pegar a receita, vou sair correndo daqui e tomar um café bem forte no primeiro boteco que eu encontrar".
Foi para a janela e acendeu um cigarro. "Não agüento mais essa gente doida. Hoje tá até bom, só tem dois velhinhos, mas tem dia que é duro: é adolescente chorando, gente retorcendo as mãos, arrancando os cabelos, roendo as unhas, batendo a cabeça na parede, você precisa ver. Às vezes encontro alguns deitados nos bancos ou no chão, prostrados, totalmente grogues, duros que nem defuntos. Mas os que mais me enchem o saco são os falantes. Uma vez um rapaz ficou meia hora na frente do espelho do lavabo olhando uma marca de espinha na testa e gritando: 'Eu sei que é câncer, só pode ser câncer... ai meu Deus, meu Deus... ', e eu não agüentei, tive que rir. Outra vez acompanhei o caso de uma jovem que não aceitava o fato dela não ser a mais bonita, a mais inteligente, a mais rica, a mais importante, enfim, a melhor de todos em tudo na escola onde estudava, e mesmo medicada, sua fala era uma só: 'Naquele dia eu tirei o primeiro lugar', e eu ganhei isso, ganhei aquilo... Coitada. E a mãe escutava aquela ladainha, talvez se sentindo culpada por ter criado um mundo de fantasias em torno da menina, enchendo-a de brinquedos, vestidos, sapatos, celulares... Mas e você? O que tá fazendo aqui? Veio buscar uns remedinhos também? Quer um cigarro?".
Depois de “varrer” uma meia dúzia de arquivos infectados do seu inconsciente, o jovem professor entrou na sala do psiquiatra, descreveu para ele alguns sintomas que guardava na manga para quando precisasse de alguma coisa mais forte, e saiu feliz da vida, com uma receita azul suficiente para mais dois meses. "Foi até fácil convencê-lo a dobrar a dosagem", disse em voz alta, ao entrar no carro, "você não acha?", perguntou. Silêncio... "Amanhã vou convencer o médico-perito a me dar mais uma licença. Se eu tiver que voltar para a sala de aula semana que vem, eu mato o primeiro aluno que me fizer uma pergunta idiota, você pode ter certeza disso".
Parou numa loja de conveniências de um posto de gasolina e pediu um capuccino bem forte, com muito café e chocolate. Enquanto saboreava a bebida, folheou um dos jornais da cidade. "Peraí, esse cara eu conheço...", disse ao ver a foto de um rapaz de trinta e poucos anos ao lado de uma linda jovem estrangeira. "O veado vai se casar com uma alemã!?", exclamou, surpreso. "Será que ninguém desconfia que ele é gay?". Saiu do posto e parou numa farmácia para comprar o remédio. Pediu um copo d'água ao farmacêutico e tomou um comprimido ali mesmo.
A poucos metros do prédio onde morava, numa rua estreita de um bairro de classe média, dois carros bloqueavam a passagem. O cara que estava no banco do passageiro de um Honda prateado tinha descido, e com uma latinha de cerveja na mão, conversava com a loira oxigenada que guiava o outro carro, um Peugeot preto. O professor, no seu Santana de cor não identificada, esperou dois minutos e buzinou. O cara fez sinal para ele ter paciência e voltou a conversar, com os braços debruçados na janela do Peugeot. O professor buzinou de novo, e o outro gritou: "Vai pra putaquetepariu".
Ao ouvir aquilo, o professor deu uma ré, respirou fundo e arrancou com violência pra cima dos dois carros. Com o impacto, o rapaz e a latinha voaram longe; a loira arrebentou a cabeça no vidro da frente; e o motorista do Honda saiu correndo com o rosto todo lambuzado de sangue e caiu ao lado do outro cara, que gemia e gritava de dor no asfalto quente. Mesmo machucado, o professor deu outra ré e arrancou de novo, acabando com o seu carro na traseira da loira que, dessa vez, perdeu todos os dentes da frente e desmaiou encima do volante.
Antes que qualquer pessoa o segurasse e chamasse a polícia, o professor desceu do seu Santana destruído, entrou no Honda, arrancou o carro e passou por cima dos dois homens, indo e voltando umas quinze vezes, enquanto gritava Bloody red, bloody red, com os olhos cheios de ódio.
Depois, com o carro parado, abriu a caixa de CDs e colocou This is not America, de Bowie e Metheny. "Que coincidência", disse, virando-se para o banco de trás. "Estava pensando justamente nessa música". Fixou o olhar num ponto próximo à janela direita do carro e perguntou: "Era isso que você queria?".
Silêncio.
"Anda, fala alguma coisa, caralho".
For this is not America, sha la la la la...
Flávio Marcus da Silva
This is not America
Foi para a janela e acendeu um cigarro. "Não agüento mais essa gente doida. Hoje tá até bom, só tem dois velhinhos, mas tem dia que é duro: é adolescente chorando, gente retorcendo as mãos, arrancando os cabelos, roendo as unhas, batendo a cabeça na parede, você precisa ver. Às vezes encontro alguns deitados nos bancos ou no chão, prostrados, totalmente grogues, duros que nem defuntos. Mas os que mais me enchem o saco são os falantes. Uma vez um rapaz ficou meia hora na frente do espelho do lavabo olhando uma marca de espinha na testa e gritando: 'Eu sei que é câncer, só pode ser câncer... ai meu Deus, meu Deus... ', e eu não agüentei, tive que rir. Outra vez acompanhei o caso de uma jovem que não aceitava o fato dela não ser a mais bonita, a mais inteligente, a mais rica, a mais importante, enfim, a melhor de todos em tudo na escola onde estudava, e mesmo medicada, sua fala era uma só: 'Naquele dia eu tirei o primeiro lugar', e eu ganhei isso, ganhei aquilo... Coitada. E a mãe escutava aquela ladainha, talvez se sentindo culpada por ter criado um mundo de fantasias em torno da menina, enchendo-a de brinquedos, vestidos, sapatos, celulares... Mas e você? O que tá fazendo aqui? Veio buscar uns remedinhos também? Quer um cigarro?".
Depois de “varrer” uma meia dúzia de arquivos infectados do seu inconsciente, o jovem professor entrou na sala do psiquiatra, descreveu para ele alguns sintomas que guardava na manga para quando precisasse de alguma coisa mais forte, e saiu feliz da vida, com uma receita azul suficiente para mais dois meses. "Foi até fácil convencê-lo a dobrar a dosagem", disse em voz alta, ao entrar no carro, "você não acha?", perguntou. Silêncio... "Amanhã vou convencer o médico-perito a me dar mais uma licença. Se eu tiver que voltar para a sala de aula semana que vem, eu mato o primeiro aluno que me fizer uma pergunta idiota, você pode ter certeza disso".
Parou numa loja de conveniências de um posto de gasolina e pediu um capuccino bem forte, com muito café e chocolate. Enquanto saboreava a bebida, folheou um dos jornais da cidade. "Peraí, esse cara eu conheço...", disse ao ver a foto de um rapaz de trinta e poucos anos ao lado de uma linda jovem estrangeira. "O veado vai se casar com uma alemã!?", exclamou, surpreso. "Será que ninguém desconfia que ele é gay?". Saiu do posto e parou numa farmácia para comprar o remédio. Pediu um copo d'água ao farmacêutico e tomou um comprimido ali mesmo.
A poucos metros do prédio onde morava, numa rua estreita de um bairro de classe média, dois carros bloqueavam a passagem. O cara que estava no banco do passageiro de um Honda prateado tinha descido, e com uma latinha de cerveja na mão, conversava com a loira oxigenada que guiava o outro carro, um Peugeot preto. O professor, no seu Santana de cor não identificada, esperou dois minutos e buzinou. O cara fez sinal para ele ter paciência e voltou a conversar, com os braços debruçados na janela do Peugeot. O professor buzinou de novo, e o outro gritou: "Vai pra putaquetepariu".
Ao ouvir aquilo, o professor deu uma ré, respirou fundo e arrancou com violência pra cima dos dois carros. Com o impacto, o rapaz e a latinha voaram longe; a loira arrebentou a cabeça no vidro da frente; e o motorista do Honda saiu correndo com o rosto todo lambuzado de sangue e caiu ao lado do outro cara, que gemia e gritava de dor no asfalto quente. Mesmo machucado, o professor deu outra ré e arrancou de novo, acabando com o seu carro na traseira da loira que, dessa vez, perdeu todos os dentes da frente e desmaiou encima do volante.
Antes que qualquer pessoa o segurasse e chamasse a polícia, o professor desceu do seu Santana destruído, entrou no Honda, arrancou o carro e passou por cima dos dois homens, indo e voltando umas quinze vezes, enquanto gritava Bloody red, bloody red, com os olhos cheios de ódio.
Depois, com o carro parado, abriu a caixa de CDs e colocou This is not America, de Bowie e Metheny. "Que coincidência", disse, virando-se para o banco de trás. "Estava pensando justamente nessa música". Fixou o olhar num ponto próximo à janela direita do carro e perguntou: "Era isso que você queria?".
Silêncio.
"Anda, fala alguma coisa, caralho".
For this is not America, sha la la la la...
Flávio Marcus da Silva
This is not America
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