sábado, 22 de agosto de 2009

Vermelho sangue

Na sala de espera da clínica psiquiátrica o jovem professor aguardava sua vez de ser atendido pela psicóloga, enquanto observava um casal de idosos sentado num dos confortáveis bancos à sua frente. [Naquele dia, antes de se encontrar com o médico, ele teria que conversar de novo com a psicóloga]. Olhou para o casal e perguntou em voz alta: “Será que são sempre os mesmos lugares?”. Os velhos se olharam, sem entender, e o jovem acrescentou, com voz de mulher: Hoje você está em uma cabana de madeira, no meio de uma floresta escura e úmida, com uma vassoura na mão. A cabana está suja e você vai limpá-la... “Pelo amor de Deus! Vocês já passaram por isso?”. O casal continuou em silêncio, com os olhos esbugalhados. De um salto, o rapaz se levantou, serviu-se de uma xícara de chá de erva cidreira e resmungou, enquanto bebia: “Assim que eu terminar essa maldita limpeza e pegar a receita, vou sair correndo daqui e tomar um café bem forte no primeiro boteco que eu encontrar".

Foi para a janela e acendeu um cigarro. "Não agüento mais essa gente doida. Hoje tá até bom, só tem dois velhinhos, mas tem dia que é duro: é adolescente chorando, gente retorcendo as mãos, arrancando os cabelos, roendo as unhas, batendo a cabeça na parede, você precisa ver. Às vezes encontro alguns deitados nos bancos ou no chão, prostrados, totalmente grogues, duros que nem defuntos. Mas os que mais me enchem o saco são os falantes. Uma vez um rapaz ficou meia hora na frente do espelho do lavabo olhando uma marca de espinha na testa e gritando: 'Eu sei que é câncer, só pode ser câncer... ai meu Deus, meu Deus... ', e eu não agüentei, tive que rir. Outra vez acompanhei o caso de uma jovem que não aceitava o fato dela não ser a mais bonita, a mais inteligente, a mais rica, a mais importante, enfim, a melhor de todos em tudo na escola onde estudava, e mesmo medicada, sua fala era uma só: 'Naquele dia eu tirei o primeiro lugar', e eu ganhei isso, ganhei aquilo... Coitada. E a mãe escutava aquela ladainha, talvez se sentindo culpada por ter criado um mundo de fantasias em torno da menina, enchendo-a de brinquedos, vestidos, sapatos, celulares... Mas e você? O que tá fazendo aqui? Veio buscar uns remedinhos também? Quer um cigarro?".

Depois de “varrer” uma meia dúzia de arquivos infectados do seu inconsciente, o jovem professor entrou na sala do psiquiatra, descreveu para ele alguns sintomas que guardava na manga para quando precisasse de alguma coisa mais forte, e saiu feliz da vida, com uma receita azul suficiente para mais dois meses. "Foi até fácil convencê-lo a dobrar a dosagem", disse em voz alta, ao entrar no carro, "você não acha?", perguntou. Silêncio... "Amanhã vou convencer o médico-perito a me dar mais uma licença. Se eu tiver que voltar para a sala de aula semana que vem, eu mato o primeiro aluno que me fizer uma pergunta idiota, você pode ter certeza disso".

Parou numa loja de conveniências de um posto de gasolina e pediu um capuccino bem forte, com muito café e chocolate. Enquanto saboreava a bebida, folheou um dos jornais da cidade. "Peraí, esse cara eu conheço...", disse ao ver a foto de um rapaz de trinta e poucos anos ao lado de uma linda jovem estrangeira. "O veado vai se casar com uma alemã!?", exclamou, surpreso. "Será que ninguém desconfia que ele é gay?". Saiu do posto e parou numa farmácia para comprar o remédio. Pediu um copo d'água ao farmacêutico e tomou um comprimido ali mesmo.

A poucos metros do prédio onde morava, numa rua estreita de um bairro de classe média, dois carros bloqueavam a passagem. O cara que estava no banco do passageiro de um Honda prateado tinha descido, e com uma latinha de cerveja na mão, conversava com a loira oxigenada que guiava o outro carro, um Peugeot preto. O professor, no seu Santana de cor não identificada, esperou dois minutos e buzinou. O cara fez sinal para ele ter paciência e voltou a conversar, com os braços debruçados na janela do Peugeot. O professor buzinou de novo, e o outro gritou: "Vai pra putaquetepariu".

Ao ouvir aquilo, o professor deu uma ré, respirou fundo e arrancou com violência pra cima dos dois carros. Com o impacto, o rapaz e a latinha voaram longe; a loira arrebentou a cabeça no vidro da frente; e o motorista do Honda saiu correndo com o rosto todo lambuzado de sangue e caiu ao lado do outro cara, que gemia e gritava de dor no asfalto quente. Mesmo machucado, o professor deu outra ré e arrancou de novo, acabando com o seu carro na traseira da loira que, dessa vez, perdeu todos os dentes da frente e desmaiou encima do volante.

Antes que qualquer pessoa o segurasse e chamasse a polícia, o professor desceu do seu Santana destruído, entrou no Honda, arrancou o carro e passou por cima dos dois homens, indo e voltando umas quinze vezes, enquanto gritava Bloody red, bloody red, com os olhos cheios de ódio.

Depois, com o carro parado, abriu a caixa de CDs e colocou This is not America, de Bowie e Metheny. "Que coincidência", disse, virando-se para o banco de trás. "Estava pensando justamente nessa música". Fixou o olhar num ponto próximo à janela direita do carro e perguntou: "Era isso que você queria?".

Silêncio.

"Anda, fala alguma coisa, caralho".

For this is not America, sha la la la la...


Flávio Marcus da Silva

This is not America

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