quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Dia da Mentira


Assim que foi demitido, no final de uma tarde fria de segunda-feira, o jovem economista pegou suas coisas (um porta-retratos com a foto da filha e uma mochila), despediu-se de alguns amigos e foi direto para o clube onde nadava três vezes por semana.

A piscina estava vazia, mas aquecida. Sentou-se numa das bordas, de sunga, touca e óculos já postos, com as pernas cruzadas, e deixou-se levar pelo turbilhão de imagens que se sucediam em sua cabeça, provocando sensações ao mesmo tempo de alívio e medo, alegria e angústia.

Entrou na piscina e iniciou um perfeito crawl, com respiração, braçadas e pernadas lentas, bem sincronizadas, resultado de dez anos de dedicação a uma de suas maiores paixões: a natação. Enquanto sentia o agradável calor da água percorrendo o seu corpo, reviveu a horrível experiência de ter sido demitido de mentira durante uma brincadeira de primeiro de abril, havia dois anos, quando chegou a se humilhar para o funcionário encarregado de fazer a encenação, dizendo: "Pelo amor de Deus, minha esposa está desempregada e a gente tem uma filha de um ano que precisa de tratamento médico especializado pelo resto da vida, por causa de uma doença genética que ela tem". O diretor e três outros funcionários da empresa estavam escondidos atrás de uma porta, no fundo da sala, divertindo-se com o seu desespero. Quando saíram, rindo e gritando "Primeiro de abril! Primeiro de abril!", a única coisa que fizeram foi elogiar o desempenho do funcionário do RH, que riu, sem graça, perturbado e arrependido pelo que acabara de fazer.

Naquela fria tarde de segunda-feira, ao ser chamado pelo mesmo funcionário que fizera a encenação de dois anos atrás, sentiu seu coração disparar. Mas quando entrou na sala em que havia sido humilhado e vilipendiado da outra vez e recebeu o rápido comunicado de sua demissão, estava calmo e sereno. Os dois se cumprimentaram. O funcionário renovou as desculpas pela brincadeira de mau gosto que fora obrigado a fazer havia dois anos, e, meia hora depois, com uma mochila nas costas e um futuro incerto pela frente, mais um economista desempregado caminhava pelas ruas da capital do país.

Ao passar em frente à Faculdade de Filosofia, no centro da cidade, lembrou-se de uma piada que ouvira de um amigo professor de História: O repórter percorreu a longa fila de desempregados, parou bem próximo a um grupo de engravatados e disse, olhando para a câmera: 'Não são só filósofos, historiadores, sociólogos e economistas que engrossam as filas do desemprego. Pessoas úteis também procuram desesperadamente uma vaga no mercado de trabalho'.

Ao mudar seus movimentos para um harmonioso nado de peito, o jovem se viu na casa de seus pais, após o tradicional almoço de domingo, pedindo dinheiro ao velho para pagar o aluguel do apartamento e comprar os remédios da filha, enquanto seus dois irmãos bem sucedidos mostravam para a mãe as fotos das últimas viagens que haviam feito ao exterior.

Saiu do clube ao final da tarde, depois de um demorado banho. Caminhou tranquilamente pelas ruas da cidade, parando em uma livraria – onde comprou um exemplar do mais novo livro de P. D. James –, e em um Café – onde experimentou um delicioso expresso do Cerrado –, até chegar ao apartamento onde morava com a esposa (ainda desempregada) e a filha de três anos.

Às onze da noite, desligou a televisão, cobriu a filha já adormecida e deitou-se, beijando com carinho a testa de sua companheira, como sempre fazia, sem contar para ela que, a partir daquele dia, ele também estava desempregado.

De manhã, acordou assustado com o barulho do telefone. Atendeu-o no primeiro toque e disse, segundos depois: "Já estou indo, fica calmo". A esposa perguntou quem era. "Era o vizinho do 402", respondeu o marido, enquanto vestia uma calça às pressas. "Parece que teve um acidente. Bateu a cabeça na quina de um móvel e não consegue andar. Disse que eu posso arrombar a porta".

"Cuidado, amor".

Flávio Marcus da Silva

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