quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Tempestade

No dia seguinte ao enterro de sua esposa, o jovem escritor retomou o trabalho com ânimo revigorado. Já não precisava mais interromper a difícil arte de criar cenas e diálogos para receber a mulher em casa, quando ela voltava do consultório ou dos plantões de final de semana, mal-humorada, cansada e triste, sentindo o peso da idade e a desconfiança (cada vez mais próxima da certeza) de que o marido, vinte anos mais jovem que ela, só a recebia com um beijo todos os dias e a levava para a cama uma vez por semana por ela o sustentar, garantindo-lhe casa, comida, roupa lavada e ainda alguns luxos, como jantares requintados e viagens ao exterior, enquanto ele se dedicava à escrita do seu primeiro romance, que não acabava nunca.

Naquele dia, sentou-se diante do computador e escreveu um capítulo inteiro. Ao terminar, olhou para a janela do escritório e viu que o céu estava escuro, iluminado apenas por alguns relâmpagos, que indicavam a aproximação de uma tempestade. Estava exausto. Nunca havia escrito um trecho tão longo em tão pouco tempo. Fechou os olhos por alguns segundos e disse para si mesmo que sua única preocupação, a partir daquele dia, seria com o seu livro. Sua sobrevivência e extravagâncias estariam garantidas pelo dinheiro que receberia do seguro de vida da esposa, pelos dez imóveis alugados que ela possuía (todos em bairros nobres) e pelas aplicações milionárias que ela mantinha em três bancos na cidade. Isso, porque, além de ser uma renomada cardiologista, a defunta era de família rica, e, por incrível que parecesse aos parentes e amigos à época, o seu casamento com o jovem intelectual desempregado, que se dizia escritor, havia sido com comunhão total de bens.

Sorte dele.

O jovem escritor tirou a camisa, a bermuda e os chinelos, levantou os braços, como se espreguiçasse, e, só de cueca, começou a andar pelo enorme apartamento de luxo que, a partir daquele dia, passava a ser só seu. Ao chegar à cozinha, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de vinho francês, aberto na tarde anterior durante uma longa pausa entre dois parágrafos do seu romance, pouco antes de receber o telefonema do hospital comunicando a morte da esposa. Olhou para a garrafa e disse sorrindo: “Que pena”. Pegou uma taça e encheu-a até a borda. “Podia ter vivido pelo menos mais vinte anos”, pensou, bebendo um enorme gole do vinho, “mas quis o destino que ela morresse justamente do mal que tentava evitar, a todo custo, em seus pacientes”. Mais um gole.

Foi para a sala e ligou a TV no canal francês. “Preciso encomendar alguns livros na Livraria Francesa”, pensou antes de se virar para o lado e dormir.

Sonhou que estava no colégio, aos quatorze anos de idade, durante a cerimônia de entrega das medalhas aos melhores alunos do ano. Eles eram chamados pela diretora, que prendia com alfinetes as peças de metal dourado e prateado em seus peitos estufados de orgulho, com direito a fotos, abraços e aplausos por terem se destacado na difícil arte de memorizar questionários, datas, fórmulas, nomes de rios, de cordilheiras, de montanhas.

Além das melhores notas - que ele nunca tirava -, disputava-se também, naquele colégio, a admiração dos colegas mais populares, para o que ele também era um péssimo competidor, por ser tímido, pobre e esquisito, ficando sempre de fora das rodinhas de amigos e a quilômetros de distância das meninas ricas e importantes da sociedade local. Uma vez, no intervalo, uma norte-americana gordinha, intercambista do Rotary, ao passar perto dele, virou para a sua colega brasileira (que adorava exibir seu inglês medíocre, de quem nunca leu um bom livro, nem em português) e disse: He’s so weird! E elas riram, jogando as cabeças para trás, sem disfarçar.

Na seqüência do sonho, logo após a entrega das medalhas, ele estava sentado sozinho em um canto afastado do pátio do colégio, lendo um conto de Poe, quando, de repente, levantou-se, foi até sua sala, abriu a mochila, tirou um fuzil automático de uso exclusivo do Exército e saiu disparando para todo lado.

O massacre foi noticiado no mundo inteiro.

Quando um casal de americanos se aproximou de uma bancada de cimento, no necrotério do hospital, para reconhecer o corpo da filha cravado de balas, o jovem escritor acordou assustado com o barulho ensurdecedor da tempestade que desabava sobre a cidade às três horas da madrugada.

Flávio Marcus da Silva

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