segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Rotina

Todos os dias pela manhã o professor de alemão ia à academia para se exercitar. Enquanto caminhava na esteira, no mesmo horário de sempre, ele observava pela janela o jovem bancário que morava em frente sair, feliz da vida, para o trabalho. “Será que ele é tão feliz assim quanto parece?”, pensava o professor, cada dia mais interessado na vida daquele moço de trinta e poucos anos que, de segunda a sexta, exatamente às dez e trinta da manhã, dava um beijo na esposa e saía caminhando em direção ao banco onde trabalhava.

Ao sair da esteira, naquele dia, o professor notou que o rapaz barbudo que usava marca-passo já tinha chegado e conversava com a faxineira, próximo às bicicletas ergométricas, certamente tentando convencê-la, pela milésima vez, a parar de fumar. Por causa da doença no coração, esse rapaz era aposentado pelo INSS, mas não via qualquer problema em passar as manhãs se exercitando nos aparelhos e praticando luta livre com os amigos. Ele era muito popular. Conhecia todos os freqüentadores da academia e adorava se meter nas conversas dos outros, quase sempre com opiniões contrárias às da maioria e muito polêmicas. Era um jovem diferente. Gostava de música clássica e de rock alternativo; lia Nietzsche, Foucault e Sartre; estudava o uso das ervas medicinais e sabia tudo sobre alimentação natural, pois era vegetariano de carteirinha. Na academia, só usava roupa surrada e chinelo de dedo. Mantinha a barba e o cabelo grandes e ensebados de propósito, só para irritar os mais sensíveis. Adorava discussões, sobretudo com boyzinhos e filhinhos de papai, “a maioria escravos do dinheiro vivendo num mundo em que o homem, se não for rico, precisa pelo menos parecer sê-lo”, costumava dizer.

Um dia, o rapaz apareceu na academia com a barba feita e o cabelo cortado bem curto. “Hoje vou ao médico”, disse ele ao professor, que andava na esteira em trote acelerado, poucos minutos depois do jovem bancário ter saído para o trabalho. "Vai?", perguntou o professor, ofegante. O rapaz balançou a cabeça em sinal de afirmação, sorriu e continuou: "Você quer ver meus exames?”. O homem não queria ver nada, mas diminuiu a velocidade da esteira e, sem reclamar, começou a ler as folhas que o outro lhe entregava, uma a uma. “Excelente”, disse o professor ao devolver os papéis.

O rapaz tinha vinte e seis anos e parecia bastante saudável, a julgar pelos números que atestavam a qualidade do seu sangue e da sua urina. “Hoje o médico vai trocar a bateria do meu marca-passo”, disse ele, melancólico. “Pelo jeito”, continuou em tom de lamento, “não vou passar dos trinta”. O professor parou a esteira e olhou bem nos olhos do rapaz: “Não diga bobagem”.

Naquela noite, o professor ficou até tarde na internet investigando alguns sintomas de doenças cardíacas que poderiam levar à implantação de um marca-passo. Não sentia nenhum deles, mas precisava ter a certeza de que, às vésperas de completar quarenta anos, não tinha nada de errado com o seu coração. A estratégia seria descrever para o médico, com detalhes, sintomas bem específicos, para ele ficar na dúvida e pedir um exame mais sofisticado (“e os médicos quase sempre ficam na dúvida, pedindo exames e mais exames, só para descartar a hipótese de algo mais grave’”). Como sintoma principal, o professor escolheu as palpitações. “Vai ser fácil”, pensou. Contrações prematuras seguidas de uma pausa prolongada. “Tranqüilo”. Sentem-se sob a forma de agitação irregular ou batimentos no peito, às vezes acompanhados de uma sensação breve, mas alarmante, de que o coração deixa de bater. “É uma coisa esquisita, doutor”, começou a treinar, na frente do espelho. “Meu coração está batendo normalmente e de repente eu sinto como se ele engasgasse e parasse de bater”.

Desligou o computador e foi dormir. “Amanhã eu marco uma consulta”, disse para si mesmo, e apagou a luz.

Ao chegar à academia, no outro dia, o professor recebeu a notícia de que o rapaz com marca-passo tinha falecido no consultório do cardiologista, sem que nada pudesse ser feito para salvá-lo. O clima era de muita tristeza. “Dizem que o coração dele parou no momento em que o médico começava a trocar a bateria”, comentava uma amiga do rapaz que, com lágrimas nos olhos, esperava o pessoal que iria com ela ao velório. “Ele não tinha nem trinta anos”, disse um outro amigo, também consternado. “Tinha vinte e seis”, disse o professor em estado de choque. E sussurrou para si mesmo: “... eu vi nos exames dele, ontem...”. Ao dizer isso, foi para a calçada e presenciou, mais uma vez, a despedida do bancário de trinta e poucos anos. Fechou os olhos e recitou em voz alta o trecho de um poema de Adélia Prado: “é seu próprio gosto em Ter uma família, amar a aprazível rotina”.

Respirou fundo, pôs a mão direita sobre o lado esquerdo do peito e sentiu, pela primeira vez na vida, uma palpitação.

"Mein Gott!".

Flávio Marcus da Silva

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