A médica cardiologista examinava uma senhora de cinqüenta e dois anos, professora de literatura na rede municipal de ensino, sem saber que as duas haviam sido colegas de colégio. A professora, no entanto, lembrava-se muito bem daquela mulher madura que, com olhar atento, examinava o resultado do eletrocardiograma, mas não se surpreendeu por não ter sido reconhecida. Pertenciam a mundos diferentes.
A professora havia sido uma adolescente pobre e feia. Seu pai, um caminhoneiro, e sua mãe, uma costureira, mal ganhavam o suficiente para dar de comer aos cinco filhos e pagar o aluguel do barracão onde moravam. Ela era a mais velha, adorava ler e escrever, e por caridade das freiras que administravam o colégio particular, havia conseguido uma bolsa de estudos integral por quatro anos.
Foi uma das piores épocas da sua vida, um verdadeiro martírio. Na sala de aula ou no pátio, ficava sempre sozinha, pois como não era popular entre os garotos, também era desprezada pelas meninas, que fugiam dela como de um cão sarnento, temendo que a sua feiúra espantasse o sexo oposto.
Ao contrário, a médica era de família rica, daquelas que têm sobrenomes importantes, que abrem portas só de serem pronunciados. Havia sido uma adolescente de beleza estonteante, disputada pelos rapazes mais bonitos, filhos dos clãs mais ricos e influentes da cidade. Chegava ao colégio sempre de carro, conduzido pelo motorista da família, uniformizado e elegante, que, com reverência e submissão, abria a porta para ela todos os dias.
Ao reviver esse passado, a professora ainda conseguia ouvir os gritinhos e risinhos estridentes daquele grupo de amigas ricas que, durante o recreio, andavam sempre de mãos dadas, lindas e cheirosas, enquanto ela ficava pelos cantos lendo contos de mistério ou poemas de amor e solidão.
Ao se sentar na confortável cadeira de couro marrom e olhar para o rosto sério da médica do outro lado da mesa, a professora deu um suspiro profundo e se preparou para ouvir, com satisfação, a confirmação do que ela já desconfiava. “Sua saúde não está nada boa”, disse a médica, folheando, mais uma vez, os inúmeros exames à sua frente: colesterol, triglicérides, glicose, teste ergométrico, ecocardiodoppler, eletrocardiograma, mapa, etc. “Se a senhora não se cuidar, não viverá mais do que dois ou três anos”.
É claro que ela não ia se cuidar, pois não agüentava mais viver. Quase perguntou para a médica se com um descuido extra ela não conseguiria reduzir aquela expectativa um pouco mais. "Um ano seria o ideal", pensou.
Educada na tradição católica, a professora sempre achou a idéia do suicídio odiosa, mas não via como pecado o simples desleixo em relação à sua saúde. “Os seus exames de sangue e de pressão estão péssimos”, continuou a médica, “e a senhora ainda tem um defeito congênito na valva mitral, o que certamente é a causa dessa horrível falta de ar”. A médica abriu mais uma vez a pasta com o resultado do ecocardiodoppler. “Seu coração não está bom”, afirmou baixinho, e acrescentou, olhando nos olhos da professora: “A senhora pode ter uma morte súbita a qualquer momento”.
Era isso que ela queria ouvir. Morte súbita. A melhor morte. Vem de uma vez, numa ceifada só. E enquanto a médica dava todas as recomendações possíveis e receitava remédios que jamais seriam comprados, a mente da professora vagava por campos de trigo distantes, perdidos no tempo e no espaço, em épocas de colheita. Conseguia até ouvir o som das foices e a respiração ofegante dos trabalhadores. “De uma vez só”, pensava a moribunda, com um leve sorriso nos lábios.
Saiu do consultório com a certeza de que nunca mais veria aquela médica.
E assim foi.
Dois anos depois, ao ligar o rádio no noticiário local, a professora ouviu estarrecida a notícia da morte da renomada médica cardiologista. Morte súbita, saindo do consultório, aos cinqüenta e quatro anos de idade. Não dava para acreditar. “Ela foi primeiro que eu, a bandida!”, gritou a professora, desligando o rádio com um safanão.
Ao caminhar pela avenida em direção à escola municipal, onde daria duas aulas sobre Adélia Prado para as turmas do 3º ano, a professora viu o luxuoso cortejo fúnebre de carros importados subindo, lentamente, a rua do cemitério. “Vá com Deus, querida”, disse em voz alta. “Espero que nos encontremos em breve”.
Vinte anos depois, com setenta e quatro anos, a velha professora de literatura aposentada caminhava entre os túmulos do antigo cemitério, com a mesma falta de ar de sempre. De repente, viu-se diante do mausoléu onde estava enterrada sua ex-colega de colégio, ex-renomada médica cardiologista, pertencente à ex-família rica e influente da cidade. Olhou com inveja para o nome e o sobrenome gravados em metal dourado sobre o mármore preto, e chorou muito, até soluçar, pensando no seu próprio sofrimento, na sua própria dor.
A professora havia sido uma adolescente pobre e feia. Seu pai, um caminhoneiro, e sua mãe, uma costureira, mal ganhavam o suficiente para dar de comer aos cinco filhos e pagar o aluguel do barracão onde moravam. Ela era a mais velha, adorava ler e escrever, e por caridade das freiras que administravam o colégio particular, havia conseguido uma bolsa de estudos integral por quatro anos.
Foi uma das piores épocas da sua vida, um verdadeiro martírio. Na sala de aula ou no pátio, ficava sempre sozinha, pois como não era popular entre os garotos, também era desprezada pelas meninas, que fugiam dela como de um cão sarnento, temendo que a sua feiúra espantasse o sexo oposto.
Ao contrário, a médica era de família rica, daquelas que têm sobrenomes importantes, que abrem portas só de serem pronunciados. Havia sido uma adolescente de beleza estonteante, disputada pelos rapazes mais bonitos, filhos dos clãs mais ricos e influentes da cidade. Chegava ao colégio sempre de carro, conduzido pelo motorista da família, uniformizado e elegante, que, com reverência e submissão, abria a porta para ela todos os dias.
Ao reviver esse passado, a professora ainda conseguia ouvir os gritinhos e risinhos estridentes daquele grupo de amigas ricas que, durante o recreio, andavam sempre de mãos dadas, lindas e cheirosas, enquanto ela ficava pelos cantos lendo contos de mistério ou poemas de amor e solidão.
Ao se sentar na confortável cadeira de couro marrom e olhar para o rosto sério da médica do outro lado da mesa, a professora deu um suspiro profundo e se preparou para ouvir, com satisfação, a confirmação do que ela já desconfiava. “Sua saúde não está nada boa”, disse a médica, folheando, mais uma vez, os inúmeros exames à sua frente: colesterol, triglicérides, glicose, teste ergométrico, ecocardiodoppler, eletrocardiograma, mapa, etc. “Se a senhora não se cuidar, não viverá mais do que dois ou três anos”.
É claro que ela não ia se cuidar, pois não agüentava mais viver. Quase perguntou para a médica se com um descuido extra ela não conseguiria reduzir aquela expectativa um pouco mais. "Um ano seria o ideal", pensou.
Educada na tradição católica, a professora sempre achou a idéia do suicídio odiosa, mas não via como pecado o simples desleixo em relação à sua saúde. “Os seus exames de sangue e de pressão estão péssimos”, continuou a médica, “e a senhora ainda tem um defeito congênito na valva mitral, o que certamente é a causa dessa horrível falta de ar”. A médica abriu mais uma vez a pasta com o resultado do ecocardiodoppler. “Seu coração não está bom”, afirmou baixinho, e acrescentou, olhando nos olhos da professora: “A senhora pode ter uma morte súbita a qualquer momento”.
Era isso que ela queria ouvir. Morte súbita. A melhor morte. Vem de uma vez, numa ceifada só. E enquanto a médica dava todas as recomendações possíveis e receitava remédios que jamais seriam comprados, a mente da professora vagava por campos de trigo distantes, perdidos no tempo e no espaço, em épocas de colheita. Conseguia até ouvir o som das foices e a respiração ofegante dos trabalhadores. “De uma vez só”, pensava a moribunda, com um leve sorriso nos lábios.
Saiu do consultório com a certeza de que nunca mais veria aquela médica.
E assim foi.
Dois anos depois, ao ligar o rádio no noticiário local, a professora ouviu estarrecida a notícia da morte da renomada médica cardiologista. Morte súbita, saindo do consultório, aos cinqüenta e quatro anos de idade. Não dava para acreditar. “Ela foi primeiro que eu, a bandida!”, gritou a professora, desligando o rádio com um safanão.
Ao caminhar pela avenida em direção à escola municipal, onde daria duas aulas sobre Adélia Prado para as turmas do 3º ano, a professora viu o luxuoso cortejo fúnebre de carros importados subindo, lentamente, a rua do cemitério. “Vá com Deus, querida”, disse em voz alta. “Espero que nos encontremos em breve”.
Vinte anos depois, com setenta e quatro anos, a velha professora de literatura aposentada caminhava entre os túmulos do antigo cemitério, com a mesma falta de ar de sempre. De repente, viu-se diante do mausoléu onde estava enterrada sua ex-colega de colégio, ex-renomada médica cardiologista, pertencente à ex-família rica e influente da cidade. Olhou com inveja para o nome e o sobrenome gravados em metal dourado sobre o mármore preto, e chorou muito, até soluçar, pensando no seu próprio sofrimento, na sua própria dor.
Flávio Marcus da Silva
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