quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Objetos

Os dois não tinham amigos nem parentes na cidade. Viviam trancados em casa durante o dia, saindo de madrugada para catar objetos e comida nos lixos deixados nas portas de residências e estabelecimentos comerciais. O marido era um engenheiro civil aposentado. A esposa, uma professora de História que havia abandonado a profissão em 1971, após ter sido presa e torturada por defender idéias consideradas subversivas pelo governo militar. Não tiveram filhos. Ninguém se importava com eles.

Mas quando o corpo de um homem de cerca de quarenta anos foi descoberto no porão da casa onde moravam, jornais e emissoras de rádio e TV enviaram dezenas de repórteres para investigar o passado deles. Cenas e relatos aterradores eram transmitidos diariamente do local, para deleite de milhares de leitores, ouvintes e espectadores de todas as camadas sociais, que além dos vícios mais corriqueiros, como álcool, cigarro e tranqüilizantes, não abriam mão também de sua dose diária de desgraça alheia.

As primeiras cenas do interior da casa mostraram cômodos imundos, infestados de ratos e baratas, onde dar alguns passos era tarefa quase impossível, de tanto lixo espalhado pelo chão. As câmeras registraram imagens de vários objetos na imundície, alguns bastante insólitos: uma coroa de flores mortas, enfeitada com pano roxo e fitas negras pendentes; a garrafa vazia de um vinho francês da Borgonha; um recorte de jornal com a foto de uma linda jovem da Alta Sociedade; um secador de cabelo; o pedaço de uma pedra de mármore preto, com a inscrição Descanse em paz em letras douradas; um álbum de fotos antigas, roído pelos ratos; uma folha de papel trazendo o resultado de um antigo exame de sangue; uma revista pornográfica; um velho dicionário alemão-português; uma medalha enferrujada; uma tese de doutorado em História, com as folhas manchadas de fezes e urina de ratos; um velho lampião do século XIX; um aparelho de medir pressão; um livro de Direito Penal; uma touca de natação; uma novela policial de Dorothy L. Sayers; uma cabeça de boneca; e, finalmente, a arma do crime: uma pistola de pregos elétrica para estruturas.

A polícia descobriu que o velho era muito rico. Desde a infância era obcecado com a estória da cigarra e da formiga e desprezava todas as pessoas que gastavam dinheiro com futilidades. Quando começou a trabalhar em uma construtora, passou a economizar a maior parte do seu salário, com medo de enfrentar dificuldades financeiras caso perdesse o emprego. Com o tempo, o transtorno do velho piorou e acabou contaminando a esposa, que depois da prisão e das torturas havia se fechado na dor de uma existência de sombras, povoada de visões e delírios em que era constantemente perseguida por seus algozes.

O casal vivia como mendigos, comendo restos de comida jogados no lixo por donos de restaurantes no centro da cidade e vestindo roupas usadas distribuídas por associações de caridade. De suas incursões noturnas, traziam para casa tudo que achavam ser de utilidade, espalhando pelos quartos, salas e banheiros da casa uma infinidade de objetos que nunca seriam usados.

Numa fria tarde de sábado, o integrante de uma quadrilha de bandidos que tinha acabado de roubar uma loja de ferramentas nas proximidades separou-se do grupo e invadiu a casa dos velhos para se esconder de uma patrulha da polícia, achando tratar-se de um imóvel abandonado. Trazia uma mala cheia de ferramentas.

Dois meses depois, seguindo uma pista fornecida por um dos ladrões (que havia sido preso), um policial encontrou o corpo do fugitivo enterrado no porão da casa. No IML, o médico legista descobriu que o crânio do homem havia sido perfurado por trinta pregos de cabeça redonda de noventa milímetros de comprimento.

Flávio Marcus da Silva

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