Quando percebeu que jamais voltaria à dieta e começou a engordar, o prestigiado escritor de novelas policiais decidiu derrubar as paredes que separavam seu amplo escritório do quarto de hóspedes e transformar tudo em uma kitnet particular, com todas as comodidades que um homem de letras obeso e preguiçoso necessitava: uma escrivaninha em madeira maciça com quatro gavetas; duas cadeiras antigas muito resistentes (herança da avó portuguesa); uma confortável poltrona em couro; uma cama King Size em ferro, estilo Art Nouveau; um guarda-roupa de mogno com espelho; um computador conectado à internet; uma impressora a laser; uma televisão 38 polegadas, bem no centro de uma enorme estante em estilo clássico, projetada especialmente para ele por um amigo designer, onde também se encontravam um CD player, um sofisticado aparelho DVD e vários filmes de seus diretores favoritos: Almodóvar, Hitchcock, Bergman, Woody Allen e Buñuel; um banheiro; uma mini-cozinha e uma outra estante (esta em estilo rústico, herança de um tio professor que havia se matado aos 40 anos) cheia de livros, com destaque para os romances policiais, sobretudo os ingleses das décadas de 30, 40 e 50, e obras clássicas de autores brasileiros, ingleses, franceses e russos.
Tratou também de se afastar o máximo possível da sociedade: parou de ir a velórios e festas, de ligar para amigos e parentes, de atender a telefonemas [embora adorasse receber notícias da família: "Ontem seu tio tentou se matar tomando uma cartela inteira de remédio para dormir". "Seu primo comprou um carro importado e no dia seguinte arrebentou-o num muro: deu perda total, coitado". "Sua irmã continua apanhando do marido" (...) - "Bem feito", dizia ele. E gostava também de receber notícias de seus ex-colegas de faculdade. Há alguns meses ficou sabendo que, tirando ele, que era um escritor de sucesso, só dois da turma tinham seguido carreira no mundo das letras: tinham terminado o Mestrado em Lingüística e trabalhavam corrigindo redações em cursinhos pré-vestibulares (e na época da faculdade, eram os mais metidos, com suas intervenções "brilhantes" - que ninguém entendia nada - cheias de referências a autores estrangeiros: "Pessoal, esse texto ainda não foi traduzido para o português, mas vou indicá-lo assim mesmo". "Essa citação eu tirei de uma palestra proferida pelo Barthes na Sorbonne, que infelizmente está em francês, e não tem legenda".) "E eu pergunto", disse o escritor, ao desligar o telefone: "Para que estudar tanto e saber tantas línguas, se vão acabar mesmo é corrigindo redação em cursinho ou, quando muito, dando aulas em escolinhas infames ou em faculdades de quinta categoria, recebendo uma miséria?". Os outros ex-colegas estavam em melhor situação: eram comerciantes, pequenos empresários, donas de casa, jornalistas...].
A esposa, que desde o início do casamento sentia náuseas só de vê-lo nu, ao perceber as mudanças no seu corpo – a cabeça se arredondando, a barriga crescendo, os membros inchando –, deixou definitivamente de transar com ele nos finais de semana (o que antes ela fazia por obrigação), recolhendo-se ao seu quarto todas as noites por volta de nove horas. Trancava a porta, despia-se e chorava, remoendo no peito a dor que a acompanhava desde que aceitara casar-se com ele, “o famoso escritor”, vinte anos mais velho, sistemático, mal-humorado, narcisista e arrogante. Mas a mãe insistiu: "Case-se com ele, minha filha, ele é rico, experiente, tem prestígio, vai cuidar bem de você".
E ela se casou.
Flávio Marcus da Silva
Tratou também de se afastar o máximo possível da sociedade: parou de ir a velórios e festas, de ligar para amigos e parentes, de atender a telefonemas [embora adorasse receber notícias da família: "Ontem seu tio tentou se matar tomando uma cartela inteira de remédio para dormir". "Seu primo comprou um carro importado e no dia seguinte arrebentou-o num muro: deu perda total, coitado". "Sua irmã continua apanhando do marido" (...) - "Bem feito", dizia ele. E gostava também de receber notícias de seus ex-colegas de faculdade. Há alguns meses ficou sabendo que, tirando ele, que era um escritor de sucesso, só dois da turma tinham seguido carreira no mundo das letras: tinham terminado o Mestrado em Lingüística e trabalhavam corrigindo redações em cursinhos pré-vestibulares (e na época da faculdade, eram os mais metidos, com suas intervenções "brilhantes" - que ninguém entendia nada - cheias de referências a autores estrangeiros: "Pessoal, esse texto ainda não foi traduzido para o português, mas vou indicá-lo assim mesmo". "Essa citação eu tirei de uma palestra proferida pelo Barthes na Sorbonne, que infelizmente está em francês, e não tem legenda".) "E eu pergunto", disse o escritor, ao desligar o telefone: "Para que estudar tanto e saber tantas línguas, se vão acabar mesmo é corrigindo redação em cursinho ou, quando muito, dando aulas em escolinhas infames ou em faculdades de quinta categoria, recebendo uma miséria?". Os outros ex-colegas estavam em melhor situação: eram comerciantes, pequenos empresários, donas de casa, jornalistas...].
A esposa, que desde o início do casamento sentia náuseas só de vê-lo nu, ao perceber as mudanças no seu corpo – a cabeça se arredondando, a barriga crescendo, os membros inchando –, deixou definitivamente de transar com ele nos finais de semana (o que antes ela fazia por obrigação), recolhendo-se ao seu quarto todas as noites por volta de nove horas. Trancava a porta, despia-se e chorava, remoendo no peito a dor que a acompanhava desde que aceitara casar-se com ele, “o famoso escritor”, vinte anos mais velho, sistemático, mal-humorado, narcisista e arrogante. Mas a mãe insistiu: "Case-se com ele, minha filha, ele é rico, experiente, tem prestígio, vai cuidar bem de você".
E ela se casou.
Flávio Marcus da Silva
2 comentários:
Bem realista. Bem lúcido. Gostei, Flávio.
Gostei muito desta visita que fiz a Oficina de História.
Pode preparar o café com biscoito que voltarei.
Abraços,
Terezinha
Postar um comentário