quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A morte do poeta

O poeta jamais aceitou que a vida possa ser um script pronto, a ser recitado na ponta da língua. Ao contrário: apostou sempre na própria capacidade de se superar, de se surpreender consigo mesmo, de driblar os próprios medos e preconceitos - de se ultrapassar.

Viver intensamente tem seu preço e Vinicius agora o paga. É no mínimo perigoso, porém, encarar esse momento (como fazem muitos amigos mais contidos e escrupulosos) como a "decadência" do poeta. Vinicius, provavelmente, nunca se elevou tanto. É um homem para quem a vida deve ser usada, sorvida - com requinte e avidez - até a última gota: para quem a vida existe para queimar. Cumpriu essa crença à risca. Se agora parece esgotado, se agora paga o preço de sua determinação em não deixar a vida escapar, deve ser visto não como um homem decadente, falido, mas como um homem coerente e saciado. A morte - a "última musa" que ele persegue desde a juventude - se aproxima. Nem o medo da morte, porém, o leva a qualquer sentimento parecido com o remorso, a culpa ou o arrependimento. A proximidade da morte é, simplesmente, o sinal de que um destino se cumpriu. O poeta está em paz consigo mesmo. O dr. Younis, com sua formação profissional requintada e suas boas intenções, de fato, tem muito pouco a fazer. O generoso Vinicius, provavelmente, se apieda dele.


José Castello, Vinicius de Moraes: o Poeta da Paixão. Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 416.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Desespero da Piedade

Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade ainda dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Vinicius de Moraes (1913-1980)

Ouça Vinicius recitando este poema

A velhice do poeta

Década de 70:

Depois de se separar de Cristina Gurjão, uma longa viagem à Europa é vivida como uma iniciação. Vinicius, já acompanhado de Gesse Gessy, parte para uma temporada de rupturas que são tomadas como sinais de decadência, de isolamento tido como esquisitice, de revitalização vista como decrepitude. Nenhum desses enganos o impressiona, nem o faz mudar seu rumo. Vinicius desarruma todos os clichês a respeito da arte de envelhecer. Serenidade, introspecção, ponderação, equilíbrio, prudência, bom senso, enfim, atributos clássicos de um envelhecimento saudável, não o seduzem. Mais do que nunca, ele deseja agarrar a vida, enfrentá-la, e isso significa optar pelo inesperado, pelo estranho, pelo descabido. Isso choca - e muitos amigos conservadores se melindram. Gesse é estranha, aquele menino magrelo chamado Toquinho, montado num violão e posto ao seu lado, é estranhíssimo, aquela nova vida metida numa bata branca e envolvida por cordões místicos, sessões espíritas no candomblé de Mãe Menininha, a companhia de garotos mal saídos da adolescência, shows em diretórios acadêmicos perseguidos pela ditadura militar, e descaso, quase desprezo pela poesia erudita, tudo isso é extravagante e muito, muito estranho. Mas é justamente estranhamento, surpresa, espanto que ele passa a desejar.

José Castello, Vinicius de Moraes: o poeta da Paixão. Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 320-21.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Poema enjoadinho

Filhos...Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como o queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filho? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Vinicius de Moraes (1913-1980)

domingo, 19 de dezembro de 2010

A infância do poeta

A infância transcorre serena e cheia de pequenos mistérios. Vinicius tem, constantemente, sua imaginação posta à prova pelos tios mais velhos. A matéria bruta da infância, sem que a família tenha consciência disso, começa a ser talhada. É um menino endiabrado, que não consegue ficar quieto e gosta de mandar. Está sempre imerso, entretanto, num turbilhão de fantasias que, seguramente, começam a servir como o pântano disforme de sustos, impressões e imagens imprecisas em que, aos poucos, a poesia desabrochará.

José Castello, Vinicius de Moraes: O Poeta da Paixão. Uma biografia. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 35.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A man went before a strange God

A man went before a strange God --
The God of many men, sadly wise.
And the deity thundered loudly,
Fat with rage, and puffing.
"Kneel, mortal, and cringe
And grovel and do homage
To My Particularly Sublime Majesty."

The man fled.

Then the man went to another God --
The God of his inner thoughts.
And this one looked at him
With soft eyes
Lit with infinite comprehension,
And said, "My poor child!"

Stephen Crane (1871-1900)

Solenidade de Formatura ou ensaio de escola de samba?

Todo semestre, na faculdade, é a mesma coisa: os formandos combinam com os coordenadores de curso que só vão começar a bagunça no intervalo (“para não prejudicar os outros alunos”, explicam os coordenadores, “que estarão fazendo prova ou tendo as últimas aulas do semestre”), mas raramente cumprem o combinado. Muito antes do intervalo, eles começam a soprar apitos e cornetas com toda a força de seus pulmões, tornando impossível a continuidade de qualquer atividade nas salas próximas às suas; e em seguida começam a circular pelos corredores da faculdade ao som dos mesmos apitos e cornetas, enquanto, do lado de fora, explodem os foguetes. Se um professor, coordenador ou outro funcionário reclamar, na maioria das vezes os formandos ignoram os apelos, são irônicos, desrespeitosos e continuam a comemorar.

Não sou contra as comemorações dos formandos (embora eu ache que eles deveriam encontrar alguma coisa mais criativa para fazer nesse dia do que simplesmente circular pelos corredores tocando apitos e cornetas). Eu não concordo é com o desrespeito aos direitos dos outros alunos e professores que estão em aula ou em avaliação – muitos alunos, inclusive, já foram prejudicados nos resultados das provas de final de semestre pelas confusões nos corredores e foguetes. Quando são formandos em Direito, então, a contradição é ainda mais marcante. Terminar um curso de Direito desrespeitando os direitos dos outros? Não pega bem.

Mas o que mais me incomoda é a “solenidade” de formatura. Coloquei a palavra “solenidade” entre aspas porque aquilo para mim pode ser tudo, menos uma solenidade. A palavra solenidade, no dicionário, é definida assim: “Formalidades que tornam importante um fato”. No caso da formatura no Ensino Superior, o fato importante é a conclusão daquele curso com sucesso, permitindo ao formando o exercício de uma profissão, reconhecida pela sociedade. É, ao mesmo tempo, um rito de passagem que simboliza um novo começo, uma nova vida.

Infelizmente, na maioria das cerimônias de formatura da atualidade, o formalismo deu lugar à bagunça; e o rito, que deveria simbolizar o início de uma trajetória profissional ancorada em valores como a ética e o respeito ao próximo, parece querer simbolizar justamente o contrário: o desrespeito, a ausência de certo e errado, o “tudo pode”.

Familiares e amigos dos formandos entram no auditório ou salão com faixas, bandeiras, apitos, cornetas, tambores, confetes, e com todo esse material em mãos, desde o início da cerimônia, fazem uma verdadeira arruaça (um batuque ensurdecedor que não deve nada a um ensaio de escola de samba, daqueles bem desorganizados). Não deixam ninguém falar, interrompem todo mundo, e as autoridades sentadas à mesa mais parecem seres extraterrestres, objetos decorativos fora do lugar, no ambiente errado, o que faz com que a maioria delas se sinta ridícula, como se uma força superior as empurrasse para os bastidores, para trás das cortinas – sensação que fica ainda mais forte quando alguns formandos dirigem a elas olhares de desprezo e/ou ironia, a maioria das vezes acompanhados por sorrisos zombeteiros que parecem querer dizer: “Bem feito para você. Está aí ‘pagando mico’ na frente de todo mundo, com esse sorrisinho sem graça (ou ar superior – vai depender da autoridade), fingindo que está gostando da baderna só para não pegar mal (ou sentindo-se muito acima de nós e doido para ir embora), não é?”.

Com muita propriedade, o advogado Jorge Ferreira Filho chamou, em um artigo recente, essas solenidades de “Solenidades de (Des)formatura”. A ele preocupa o fato de que muitas instituições de Ensino Superior do Brasil têm se empenhado mais em “informar” do que em “formar” (construir um cidadão apto à moderna sociedade democrática de direito, capaz de refletir e analisar a realidade e construir conhecimento visando ao bem da coletividade): “O aluno passou a ser um consumidor – um centro de direitos. O professor transformado num ‘Sílvio Santos’ – aquele que deve agradar a platéia; dar à platéia o que ela quer e não o que ela precisa receber”.

Será que é isso? Será que falta formação cidadã a esses alunos que transformam uma solenidade de formatura em ensaio de escola de samba? Será que temos que repensar nossa postura enquanto educadores e gestores da Educação?

Flávio Marcus da Silva

Publicado originalmente na minha coluna Crônicas de um patafufo, no site GRNews, em 13 de julho de 2010

domingo, 7 de novembro de 2010

O bola-extra

Fui contratado para o que eles chamam de bola-extra. O bola-extra era o cara que fazia de tudo sem ter, ao mesmo tempo, nenhuma atividade específica. Ele devia saber o que fazer após consultar uma espécie profunda e infalível de sexto sentido. Instintivamente, esse cara devia saber como manter as coisas funcionando de modo natural, o que era melhor para a empresa, a Mãe de todos, e suprir-lhe todas as pequenas necessidades que eram irracionais, contínuas e insignificantes.

Um bom bola-extra não tem face nem sexo e deve estar disposto a se sacrificar pela causa. Está sempre esperando junto à porta, antes mesmo do primeiro homem chegar. Logo deve lavar a calçada, cumprimentando cada pessoa pelo nome à medida que elas chegam, sempre trazendo no rosto um sorriso brilhante e encorajador. Reverente. Isso fará com que todos se sintam melhores antes que as engrenagens do moedor comecem a funcionar. Ele verifica se os papéis higiênicos estão em ordem, principalmente no banheiro feminino. Os cestos nunca devem estar cheios. As janelas não podem estar encardidas. Os pequenos reparos são prontamente feitos em mesas e cadeiras. Nada de portas que não abram facilmente. Nenhum tapete enrugado. Jamais deixar uma mulher bem-alimentada e forte ficar sobrecarregada por um pacotinho qualquer.

Eu não era muito bom nisso. Minha idéia era vagar por aí sem fazer nada, evitando sempre cruzar com o chefe, além dos puxa-sacos que poderiam me denunciar. Eu não era tão esperto assim. Agia mais por instinto do que qualquer outra coisa. Sempre iniciava um trabalho com a sensação de que, assim que eu o terminasse, seria demitido, e isso me deu um ar tranqüilo, que era facilmente confundido com inteligência ou algum poder secreto.

Era um comércio de roupas auto-suficiente e auto-abastecido, combinando fábrica e venda no atacado. O mostruário, os produtos finalizados e os vendedores ficavam todos no primeiro andar, enquanto a fábrica funcionava no segundo. A fábrica era um labirinto de passarelas e passagens que nem mesmo os ratos conseguiam vencer, longas e estreitas galerias onde homens e mulheres trabalhavam sob lâmpadas de trinta watts, inclinados, movendo os pedais, costurando, sem jamais erguer os olhos ou trocar uma palavra, curvos e calados, trabalhando incessantemente.

(...)

No meu primeiro dia, andei entre o labirinto de máquinas de costura olhando para as pessoas. Diferentemente de Nova York, a maioria dos trabalhadores era formada de negros. Aproximei-me de um negro, bem pequeno - quase anão -, que tinha um rosto mais agradável que os outros. Ele fazia algum trabalho de acabamento, com uma agulha. Eu tinha uma garrafinha no bolso.

- Seu trabalho é de matar. Vai um trago?
- Claro - ele disse.
Tomou um bom gole. Então devolveu a garrafa. Ofereceu-me um cigarro.
- Você é novo na cidade.
- Sim.
- De onde veio?
- Los Angeles.
- Um astro de cinema.
- Sim, de férias.
- Não devia estar falando com um costureiro.
- Eu sei.
Ele ficou em silêncio (...).
- Me chamo Henry - eu disse.
- Brad - ele respondeu.
- Escute, Brad, fico muito, mas muito deprimido vendo vocês trabalharem. Que tal se eu cantar uma música pra vocês?
- Não.
- Esse trabalho aqui é pavoroso. Por que você segue com isso?
- Porra, não tenho escolha.
- O Senhor disse que há!
- Você acredita no Senhor?
- Não.
- No que você acredita?
- Em nada.
- Então estamos quites.

Charles Bukowski, Factótum (1975). Porto Alegre, L&PM, 2009, pp. 109-112.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Um jovem escritor

Aquela cena do escritório se entranhou em mim. Aqueles charutos, as roupas finas. Pensei em belos bifes, longos passeios por passagens cheias de curvas que levavam a casas maravilhosas. Boa vida. Viagens à Europa. Mulheres de alta classe. Eles eram assim tão mais espertos do que eu? O que nos diferenciava era a grana e o desejo de acumulá-la.

Eu também poderia fazer isso! Economizaria meus tostões. Eu teria uma grande idéia, pegaria um financiamento. Contrataria e despediria. Manteria garrafas de uísque na gaveta da minha escrivaninha. Teria uma esposa com enormes peitos e um rabo que faria o jornaleiro da esquina gozar nas calças só de vê-lo balançar. Eu iria traí-la e ela saberia e ficaria quieta para continuar morando comigo e usufruindo minha riqueza. Eu demitiria os sujeitos só para ver a palidez de seus rostos. Demitiria mulheres que não mereciam tal destino.

Isto era tudo de que um homem necessitava: esperança. Era a falta de esperança que desencorajava um homem. Lembrei de meus dias em Nova Orleans, vivendo de duas barras de caramelo de cinco centavos por dia, ao longo de várias semanas, para ter tempo livre para escrever. Mas passar fome, infelizmente, não melhora a arte. Apenas a obstrui. A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago. Um homem pode escrever muito melhor após comer um belo pedaço de filé acompanhado de uma dose de uísque do que depois de uma barra de caramelo de um níquel. O mito do artista faminto é um embuste. Uma vez que você percebe que tudo é um embuste, você fica esperto e passa a sangrar e queimar seus semelhantes. Eu ergueria um império sobre as carcaças e vidas destroçadas de homens, mulheres e crianças indefesos - eu os atropelaria. Eu lhes daria uma bela lição!

Eu tinha chegado à pensão. Subi as escadas até meu quarto. Girei a chave, acendi as luzes. A sra. Downing havia colocado uma correspondência junto à porta. Era um evelope pardo, grande, enviado por Gladmore. Recolhi-o do chão. Estava pesado pelos manuscritos rejeitados. Sentei-me e abri o envelope.

Caro sr. Chinaski:

Estamos devolvendo esses quatro contos, mas vamos ficar com Minha alma embriagada de cerveja é mais triste do que todas as árvores de Natal cortadas sobre a face da Terra. Temos acompanhado o seu trabalho por longo tempo e estamos felizes de aceitar essa história.

Atenciosamente,

Clay Gladmore

Levantei-me da cadeira, segurando ainda a carta de minha aceitação. MINHA PRIMEIRA. Da revista literária número um da América. O mundo nunca parecera tão bom, tão cheio de promessas. Fui até a cama, sentei-me, voltei a lê-la. Estudei cada curva da assinatura à mão de Gladmore. Levantei-me, fui com a aceitação até a cômoda, guardei-a lá dentro. Depois me despi, apaguei as luzes e fui para a cama. Não conseguia dormir. Levantei-me, acendi as luzes, fui até a cômoda e voltei a ler a carta:

Caro sr. Chimaski...

Charles Bukowski, Factótum (1975). Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 52-3.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A morte de Ivan Ilitch

De repente ocorria-lhe mudar todos os álbuns de lugar e colocá-los no canto da sala onde estavam as plantas. Chamava o empregado, mas quem vinha em seu socorro era sua mulher ou sua filha, que nunca concordavam com ele, contrariavam-no e ele discutia e acabava se irritando. Mas estava tudo bem, desde que ele não pensasse nela. Ela não estava ali.

Mas bastava sua esposa dizer, assim que o via carregar ele mesmo alguma coisa: "Deixe que os empregados fazem isso, você vai se machucar outra vez" e imediatamente ela punha os olhos para dentro do abrigo que o protegia. Ele podia vê-la. Ela só dera uma espiada e ele tinha esperanças de que desaparecesse, involuntariamente. Via-se esperando por ela - e lá estava, a mesma de antes, doendo, doendo o tempo todo e agora já não podia esquecê-la e ela o olha atentamente por detrás das flores. "De que adianta isso tudo?"

(...)

Ele então ia para seus aposentos, deitava-se e outra vez ficava a sós com ela. Cara a cara com ela. E não havia nada que ele pudesse fazer com ela, a não ser olhar e estremecer.

(...)

O que mais atormentava Ivan Ilitch era o fingimento, a mentira, que por alguma razão eles todos mantinham, de que ele estava apenas doente e não morrendo e que bastava que ficasse quieto e seguisse as ordens médicas que ocorreria uma grande mudança para melhor. Mas ele sabia que nada do que fizessem teria outro resultado que não mais agonia, mais sofrimento e a morte. E a farsa desgostava-o profundamente: atormentava-o o fato de que se recusassem a admitir o que eles e ele próprio bem sabiam, mas insistiam em ignorar e forçavam-no a participar da mentira. Esse fingimento que se estabeleceu em torno dele até a véspera de sua morte, essa mentira que só fazia colocar no mesmo nível o solene ato de sua morte, suas visitas, suas cortinas, seu caviar para o jantar...eram-lhe terrivelmente dolorosos.

(...)

Quando o exame terminou o médico olhou para o relógio, e Praskovya anunciou a Ivan Ilitch que naturalmente ele decidiria, mas ela já havia procurado um célebre especialista que o examinaria e se reuniria depois com Mihail Danilovich (o médico da família).

- Por favor, não faça objeções. Estou fazendo isso por mim - disse cinicamente, dando a entender que estava fazendo isso por ele e só dizia o contrário para não lhe dar o direito de recusar. Ele ficou em silêncio, franzindo as sobrancelhas. Sentia-se emaranhado em uma rede de tamanha falsidade que ficava difícil livrar-se do que quer que fosse.

Tudo que ela fazia para ele era inteiramente para si mesma, e ela costumava dizer a ele que estava fazendo por ela mesma o que de fato ela estava fazendo por ela mesma, como se isso fosse tão inacreditável que só pudesse significar o contrário.

(...)

Seu casamento...tão gratuito quanto o desencanto que se seguiu. E o mau hálito de sua esposa e os momentos de sensualidade e a hipocrisia! E aquela odiosa vida oficial e a preocupação com dinheiro. Um ano, dois anos, dez, vinte e sempre a mesma coisa. E quanto mais o tempo passava, mais detestável ficava. "Como se eu estivesse caindo montanha abaixo, imaginando estar subindo. E era assim mesmo. E na opinião dos outros eu estava o tempo todo subindo e todo o tempo minha vida deslizava sob meus pés. E agora acabou tudo e é hora de morrer. Mas do que se trata afinal? Por que tem de ser assim? Não pode ser que a vida seja tão destestável e sem sentido.

(...)

Passaram-se outros quinze dias. Ivan Ilitch agora não saía mais do sofá. Não deitava mais na cama, só no sofá. E de olhos fixos na parede a maior parte do tempo, deitado, na solidão, sofria todas as inexplicáveis agonias e fazia sempre a mesma pergunta sem resposta: "O que é isto? É possível que isto seja a morte?". E a voz interior respondia: "Sim, é possível". "Por que toda essa agonia?" E a voz respondia: "Por nenhuma razão. É assim e pronto". Não havia nada além disso ou ao lado disso.

(...)

Do momento em que começou a gritar, Ivan Ilitch prosseguiu por mais três dias e eram gritos tão horríveis que podiam ser ouvidos de porta fechada, dois quartos adiante.

(...)

Para ele tudo aconteceu em um único instante e a sensação daquele instante não mudou dali em diante. Para os que presenciavam sua agonia, esta durou mais duas horas. De sua garganta ainda saía um som e via-se um estranho movimento de seu corpo já sem vida. Até que a respiração ofegante e o som passaram a vir em intervalos cada vez maiores.

- Acabou! - disse alguém perto dele, o que ele repetiu dentro de sua alma.

"A morte está acabada", disse para si mesmo. "Não existe mais".

Respirou profundamente, parou no meio de um suspiro, esticou o corpo e morreu.

Leon Tolstoi, A Morte de Ivan Ilitch (1a edição: 1886). Porto Alegre, L&PM, 2009. Tradução de Vera Karan.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O rapaz infinitamente promissor

Conversei recentemente com uma jovem que tinha trabalhado nove anos nos Estados Unidos e que hoje mora em Belo Horizonte com o marido e os filhos, tem casa própria, uma empresa bem estabelecida, carro do ano e uma poupança bem fornida, frutos de muito trabalho e dedicação na Meca do Capitalismo Ocidental.

O que mais me surpreendeu na conversa que tivemos foi o conteúdo das histórias por ela contadas, narrando suas experiências na terra do Tio Sam. Nelas, o verbo mais utilizado foi, sem dúvida, o “comprar”. Além de juntar dinheiro, essa jovem (integrante de uma equipe de faxina, que “fazia três ou quatro casas por dia”) comprava muito, geralmente produtos de consumo popular nos Estados Unidos, mas que, aqui no Brasil, são relativamente caros: televisões, computadores, celulares, tênis das marcas Nike ou Puma (originais), iphone, ipod, playstation, etc. De lá ela trouxe, só para ela, 50 pares de tênis de marca, que ela nem sabe se vai usar. Isso porque o Capitalismo é muito eficaz na criação de novas modas e novos desejos, de forma a estimular o consumo desenfreado da população que, bombardeada por propagandas sedutoras, muitas vezes abandona bens em bom estado de conservação para adquirir produtos da moda, novas tecnologias, novas marcas...

O fato é que, ao consumir, muita gente se preocupa, acima de tudo, em criar em torno de si uma imagem de prosperidade e sucesso, já que no mundo capitalista os bens materiais não são simplesmente artigos de utilidade, mas também símbolos de status social.

Imagino que o leitor conheça alguém que se endividou absurdamente para financiar um carro importado pelo simples desejo de transmitir à sociedade uma imagem de poder e riqueza. Uma imagem falsa - porque, na sua essência, o Capitalismo é falso, artificial, efêmero e, muitas vezes, cruel.

No mundo de hoje, o desejo de riqueza, poder e ostentação tem se sobreposto a valores essenciais para a harmonia da sociedade, como a humildade, a generosidade, o altruísmo e o amor ao próximo. Somos fantoches de um sistema que nos quer consumistas, bem sucedidos e orgulhosos; que quer que nos preocupemos em ser ricos e poderosos ou, pelo menos, em aparentar riqueza e poder (o que, além de ridículo, pode gerar frustração, depressão e até suicídio).

Pense nisso, leitor. Reflita mais sobre o que é realmente essencial na sua vida e procure, acima de qualquer coisa, ser feliz e viver em paz e harmonia com o próximo.

Para reflexão, deixo você com um trecho do livro Quando Nietzsche chorou, de Irvin D. Yalom:

"Chegar aos quarenta abalou a idéia de que tudo me era possível. Subitamente, entendi o fato mais óbvio da vida: que o tempo é irreversível, que minha vida estava se consumindo. É claro que eu já sabia disso antes, mas sabê-lo aos quarenta foi uma espécie diferente de saber. Agora, sei que o rapaz infinitamente promissor foi meramente uma ordem de marchar, que promissor é uma ilusão, que infinitamente não tem sentido e que estou em fileira cerrada com todos os outros homens em direção à morte."

Flávio Marcus da Silva

Pará de Minas, 08 de julho de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Big Sur

Ao meio-dia o sol enfim sempre aparece, forte, batendo na varanda alta onde estou sentado com livros e café e à tarde eu pensei nos antigos índios que devem ter habitado esse cânion por milhares de anos, em como no século X esse vale devia ter o mesmo aspecto, só com árvores diferentes: esses índios antigos simplesmente os ancestrais dos índios mais recentes digamos de 1860 - Como todos morreram e em silêncio enterraram seus ressentimentos e expectativas - Como o córrego podia ser alguns centímetros mais fundo já que a atividade madeireira dos últimos 60 anos prejudicou um pouco as vertentes - Como as mulheres pilavam as bolotas, bolotas ou bolopts, até que enfim achei as nozes naturais do vale e elas tinham um gosto doce - E os homens caçavam veados - Na verdade só Deus sabe o que eles faziam porque eu não estava aqui - Mas o mesmo vale, mil anos de pó mais ou menos por cima das pegadas deles de 960 d. C. - E até onde eu vejo o mundo é velho demais para que possamos falar sobre ele com as nossas palavras tão novas - Vamos passar tão quietos pela vida (passando, passando) como o povo do século X aqui nesse vale só que com um pouco mais de barulho e algumas pontes e barragens e bombas que sequer vão durar um milhão de anos - Sendo que o mundo é apenas o que é, se movendo e passando, na verdade tudo bem a longo prazo e nada do que reclamar - Até as rochas do vale tinham ancestrais rochosos, um bilhão de bilhões de anos atrás, não deixaram nenhum uivo de queixume - Nem as abelhas, ou os primeiros ouriços do mar, ou a amêijoa, ou a pata cortada - Tudo a visão É-A-VIDA do mundo, bem diante do meu nariz enquanto eu olho, - E olhando para aquele vale na verdade eu percebo que tenho que preparar o almoço e não vai ser diferente do almoço daqueles homens antigos e ainda por cima gostoso - Tudo é a mesma coisa, a neblina diz "Nós somos neblina e voamos nos dissolvendo como coisas efêmeras", e as folhas dizem "Nós somos folhas e tremelicamos ao vento, nada mais, chegamos e partimos, crescemos e caímos" - Até os sacos de papel no lixo dizem "Nós somos sacos de papel feitos de polpa de madeira pelos homens, temos um certo orgulho de ser sacos enquanto isso for possível, mas depois voltaremos a ser polpa de madeira com nossas irmãs folhas quando chegar a época das chuvas" - Os tocos de árvore dizem "Nós somos tocos de árvores arrancadas do solo pelos homens, às vezes pelo vento, temos grandes tendões cheios de terra que bebem do solo" - Os homens dizem "Nós somos homens, arrancamos árvores, fazemos sacos de papel, achamos que temos boas ideias, fazemos o almoço, olhamos em volta, fazemos um grande esforço para perceber que tudo é a mesma coisa" - Enquanto a areia diz "Nós somos areia, nós já sabemos", e o mar diz "Nós sempre vamos e voltamos, caímos e ploch" - O grande azul vazio do céu diz "Tudo isso volta para mim, então parte outra vez, e volta outra vez, então parte outra vez, e eu não estou nem aí, de um jeito ou de outro tudo me pertence" - O céu azul acrescenta "Não me chame de eternidade, me chame de Deus se você quiser, todos vocês tagarelas estão no paraíso: a folha é o paraíso, o toco de árvore é o paraíso, o saco de papel é o paraíso, o homem é o paraíso, a areia é o paraíso, o mar é o paraíso, a neblina é o paraíso" - Você consegue imaginar que o homem com insights maravilhosos como esses pode enlouquecer em um mês? (porque você tem que admitir que os sacos de papel e as areias falantes estavam dizendo a verdade) - Mas eu lembro de ver uma massa de folhas de repente se agitar com o vento, depois flutuar depressa pelo córrego em direção ao mar, fazendo com que eu sentisse um horror inefável na mesma hora "Ah meu Deus, estamos todos sendo arrastados pro mar não importa o que a gente diga ou faça" - E um pássaro que estava num galho torto some de repente sem eu escutar nada.

Jack Kerouac, Big Sur (1962). Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 35-36.

domingo, 29 de agosto de 2010

Para sempre, até quando?

O filme Pão e tulipas conta a história de uma dona de casa que viaja de excursão com a família, mas é esquecida pelo ônibus num restaurante de beira de estrada. Então ela aproveita a oportunidade para "tirar férias" da vida que levava: pega uma carona, vai para Veneza e começa a excursionar sozinha por uma nova vida.

Ao sair do cinema, me lembrei de uma passagem do livro Ela é carioca, de Ruy Castro. Lá pelas tantas ele conta que determinada mulher havia viajado muito e frequentado todas as festas, até que casou, teve três filhos e por pouco não se aquietou. "Se ela se distraísse, acabaria sendo feliz para sempre."

Ser feliz para sempre é o final que todos nós sonhamos para nossa história pessoal. A personagem de Pão e tulipas estava sendo feliz para sempre, até que descobriu que a felicidade muda de significado várias vezes durante o percurso de uma vida. Ninguém sabe direito o que é felicidade, mas, definitivamente, não é acomodação. Acomodar-se é o mesmo que fazer uma longa viagem no piloto automático. Muito seguro, mas que aborrecimento. É preciso um pouquinho de turbulência para a gente acordar e sentir alguma coisa, nem que seja medo.

Tem muita gente que se distrai e é feliz pra sempre, sem conhecer as delícias de ser feliz por uns meses, depois infeliz por uns dias, felicíssimo por uns instantes, em outros instantes achar que ficou maluco, então ser feliz de novo em fevereiro e março, e em abril questionar tudo o que se fez, aí em agosto ser feliz porque uma ousadia deu certo, e infeliz porque durou pouco, e assim sentir-se realmente vivo porque cada dia passa a ser um único dia, e não mais um dia.

Eu não gosto de montanha-russa, o brinquedo, mas gosto de montanha-russa, a vida. Isso porque creio possuir um certo grau de responsabilidade que me permite saber até que altura posso ir e que tipo de tombo posso levar sem me machucar demasiadamente: alto demais não vou, mas ficar no chão o tempo inteiro não fico.

Viver não é seguro. Viver não é fácil. E não pode ser monótono. Mesmo fazendo escolhas aparentemente definitivas, ainda assim podemos excursionar por dentro de nós mesmos e descobrir lugares desabitados onde nunca colocamos os pés, nem mesmo em imaginação. E estando lá, rever nossas escolhas e recalcular a duração de "pra sempre". Muitas vezes o "pra sempre" não dura tanto quanto duram nossa teimosia e receio de mudar.

Martha Medeiros, Non-stop: crônicas do cotidiano. Porto Alegre, L&PM, 2007. p. 243-4

sábado, 28 de agosto de 2010

A Revolução Francesa e os livros

A Literatura de libelo do final do reinado de Luís XV tornou-se devastadoramente pertinente no final do reinado de Luís XVI. Amoldou-se aos fatos de 1787-88, fornecendo uma estrutura geral para um novo suprimento de anedotas e propos. Ajudou os contemporâneos a entenderem as coisas, apresentando-lhes uma narrativa básica que recuava no tempo, passava por Luís XVI e Luís XV e chegava a Luís XIV, Mazarin, Maria de Médicis e Henrique III. O gênero literário que se desenvolvera a partir do obscuro torneio verbal da corte renascentista produziu best-sellers e, no processo de sua evolução, cobriu mais de dois séculos de história política. Incorporou material novo e novas técnicas de retórica num conjunto de histórias, num folclore político, organizado em torno de um tema central com uma moral única: a monarquia degenerara em despotismo. Em vez de propiciar uma discussão séria dos negócios de Estado, essa literatura fechou o debate, polarizou as opiniões e isolou o governo. Atuou segundo o princípio de simplificação radical, uma tática efetiva em tempo de crise, quando a definição de posições obriga o público a tomar partido e a ver as questões como sendo absolutas: isto ou aquilo, preto ou branco, eles ou nós. Em 1787 e 1788, não importava o fato de a Bastilha estar praticamente vazia e Luís XVI não desejar nada mais do que o bem-estar de seus súditos. O regime estava condenado. Perdera o último round na longa luta para controlar a opinião pública. Perdera a legitimidade. (p. 262)

Robert Darnton, Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Bares e casamentos

Em Londres um pub está fazendo sucesso porque instalou para seus clientes uma cabine telefônica com uma sonorização peculiar: enquanto a pessoa fala no telefone, pode acessar o som de uma tranqueira no trânsito, com muito buzinaço. Ou pode acessar o som de um ambiente de escritório. Toda essa parafernália é para que quem esteja do outro lado da linha não identifique o som do bar. Assim o bebum pode dar uma desculpa esfarrapada e chegar em casa sem levar uma descompostura; afinal, estava trabalhando até tarde, o coitado, e ainda por cima ficou preso num engarrafamento depois.

Essa cabine telefônica com efeitos especiais só vem demonstrar que os bares andam muito moderninhos, mas os casamentos continuam parados no tempo, mesmo na vanguardista Inglaterra. "Só vou se você for" segue na moda. Enquanto isso a hipocrisia deita e rola.

Muitas pessoas ainda têm uma ideia convencional do casamento: encaminham-se para o altar como quem se encaminha para o supermercado em busca de um produto pronto, industrializado, com um rótulo dando as instruções de como utilizá-lo, e parece que a primeira instrução é: nenhum dos dois tem o direito de se divertir sozinho ou com os amigos, a menos que o cônjuje esteja junto. Não é de estranhar que os prazos de validade do amor andem cada vez mais curtos.

Não há paixão que resista ao grude. Não há paciência que resista à patrulha. Não há grande amor que prescinda de outras amizades. Sair sozinho para beber com os amigos deveria ser um dos dez mandamentos para uma união estável, valendo par ambos os sexos. Quem não gosta de bar pode substituir por futebol, cinema, restaurantes, shows, sinuca, saraus ou o que o Caderno de Cultura sugerir. E não perca tempo apiedando-se daquele que vai ficar em casa. Provavelmente ele vai se divertir tanto quanto. Ouvir música, ver televisão, ler livros, abrir um vinho, tomar um banho de duas horas, navegar na internet, dormir cedinho, tudo isso também é um programaço. Quem não sabe ficar sozinho não pode casar, sob pena de transformar o matrimônio num presídio a dois.

Tem muita coisa em Londres que eu gostaria de ter aqui: parques bem-cuidados, mais livrarias, mais respeito à individualidade, melhor transporte público, prédios mais charmosos. Só dispensaria o clima e esse pub pra lá de vitoriano, onde pessoas adultas são incentivadas a inventar um álibi pra justificar um atraso. Atraso é ter que mentir para que o outro não perceba que você está feliz.

Martha Medeiros, Non-stop (crônicas do cotidiano). 7 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 66-67.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Rótulos e preconceitos

"Simplificações são tentadoras neste mundo onde tudo é bem mais complexo do que parece. É quase um insulto quando encontramos uma morena burra, um português inteligente, um poeta rico, uma celebridade deprimida, um político honesto, um adolescente bem resolvido. Preferimos conviver com estereótipos porque eles facilitam a vida da gente: generaliza-se e fim. Menos uma coisa pra pensar". (p. 62-3)

Martha Medeiros, Non-stop (crônicas do cotidiano). Porto Alegre: L&PM, 2007.

domingo, 15 de agosto de 2010

Reuniões pra quê?

- Eu gostaria de falar com o Eduardo.
- Quem gostaria?
- Luiz Alfredo.
- Luiz Alfredo de onde?
- Luiz Alfredo da turma do Anchieta de 79, última fila, perto da janela, eu era aquele que sempre perdia a tampa da Bic.
- Sinto muito, seu Eduardo está em reunião.

Luiz Alfredo terá que esperar a reunião do amigo acabar, e isso levará em torno de duas horas e meia. Eduardo é o novo gerente de uma empresa que tem essa mania estranha de fazer longas reuniões para decidir coisas que poderiam ser resolvidas com uma conversa rápida no corredor ou pela internet. Mas ninguém vive sem cafezinho e retórica.

Na reunião, a terceira do dia, Eduardo está falando da importância de quebrar paradigmas e de agregar valor, e sente-se um idiota por repetir expressões que fazem seus subalternos olharem para ele como se estivessem vendo um executivo extraterrestre, um super-homem de gravata. Eduardo sabe que não está agregando valor nenhum com essa conversa pedante e que poderia resolver as coisas com menos formalismo, em linguagem de gente normal.

Mas Eduardo precisa preencher mais uma hora de reunião, pois ele também tem um superior que está checando seu perfil competitivo, que está observando as técnicas motivacionais que ele adota como gerente, que está analisando o desempenho de Eduardo em nível de chefia. Argh.

Eduardo propõe, então, O Desafio. Os subalternos entreolham-se apavorados. Eduardo apresenta gráficos, lâminas, organogramas e por pouco não coloca na roda o seu eletroencefalograma. É necessário manter todos acordados e cientes da missão da empresa: qualidade, produtividade e agilidade. A reunião ultrapassa vinte minutos do tempo previsto. Só então Eduardo retorna a ligação de Luiz Alfredo.

- Dado, até que enfim!
- Fala, Luiz Alfredo.
- Queria uma opinião sua, tenho um funcionário aqui que aumentou em 14% o faturamento da matriz, o que você acha?
- Eu promoveria na hora e adotaria o método dele nas filiais.
- Falou. Vamos bater uma bola hoje?
- Te pego às oito.
- Fechado.

Martha Medeiros, Montanha-russa (crônicas). Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 210-11

Endereço da imagem

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Falta demônio

Clarice Lispector e Fernando Sabino foram amigos íntimos e trocaram muitas cartas no início da carreira literária de ambos. Em uma dessas cartas, enviada de Berna, onde morava, Clarice escreveu para Sabino: "Falta demônio nessa cidade".

Falta demônio em toda a Suiça. Falta demônio em muitos lugares. Não falta no Brasil, e talvez seja esta a explicação para o encantamento que o país provoca em estrangeiros e nativos: é o feitiço da irreverência.

Os Beatles tinham um demônio parcimonioso quando cantavam she loves you, yeah, yeah, yeah, tornando-se mais famosos que Jesus Cristo. Só deixaram o demônio tomar conta em discos como Sargent Pepper's, Álbum Branco e Abbey Road, numa época em que Mick Jagger julgava-se o único representante de Lúcifer na terra. Há demônio no rock, em todas as bandas.

Há demônio no vinho, falta no clericot. Há demônio no jeans, falta no linho. Há demônio nas fotos em preto-e-branco.

Há demônio no cinema, não há na televisão. Há demônio em livros, não há em revistas. Há demônio em Picasso, Almodóvar, Wagner, Janis Joplin. Há demônio na chuva mais do que no sol, há demônio no humor e na ironia, nenhum demônio no pastelão.

Não há demônio em bichos e crianças. Volto atrás sobre as crianças. Em algumas há, mas somente nas muito especiais. As outras pensam que são espertas, mas são apenas mal-educadas.

Na poesia há sempre demônio. Na boa poesia, na poesia marginal, na poesia de amor. Paixão é quando o demônio está nu. Sexo com quem se ama é muito mais satânico, não precisa ser um amor pra sempre, pode ser um amor de repente, qualquer amor inferniza.

Coca-cola tem mais demônio que guaraná. A inteligência tem mais demônio que a simpatia. A vida tem mais demônio que a morte. Filosofia, psicanálise, beijo, aventura, silêncio. Um minuto de silêncio. O pensamento é o demo.

O Oriente tem. Manhattan tem. Berna não tem, como tudo que é neutro.

Martha Medeiros, Montanha-russa (crônicas). Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 44-45

Fonte da imagem: Sargent Pepper's

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Querer mesmo

O navegador Amyr Klink, ao ser perguntado por um repórter sobre o que sentia a respeito das pessoas que passam 30 anos trabalhando no mesmo escritório, sentadas a vida inteira diante da mesma escrivaninha, respondeu: "inveja". Klink admira quem consegue ser feliz numa rotina imutável e tediosa. Como ele não consegue, sai pelo mundo em busca de desafios.

Foi uma resposta provocativa. Inveja é justamente o que nós, seres confortavelmente acomodados, sentimos de Amyr Klink, quando o vemos excursionar por cenários glaciais de tirar o fôlego e fazendo da superação dos seus medos a sua rotina. Qual o segredo desse cara, afinal, para conciliar família e aventura? A gente também adoraria essa vida, mas a diferença entre ele e nós, acreditamos ingenuamente, é que ele tem patrocínio para sua falta de juízo, enquanto que nós temos juízo de sobra e dinheiro contadinho no final do mês.

Na verdade, nossa resignação é conveniente, já que realizar sonhos dá muito trabalho. A única diferença entre ser um navegador e ser um economista-que-sonha-em-ser-um-navegador é que um quis mesmo. O outro não quis tanto assim.

Para romper convenções e arriscar-se no desconhecido, é preciso querer mesmo. Querer mesmo escalar uma montanha, querer mesmo surfar uma onda assassina, querer mesmo filmar um documentário na África, querer mesmo ser correspondente de guerra, querer mesmo trabalhar na Nasa, só para citar outras aventuras supostamente inatingíveis. Querer mesmo, em vez de apenas querer, abre a cancela de qualquer fronteira, seja ela geográfica ou emocional.

Antes de alcançar os pontos mais indevassáveis da Antártida a bordo de barcos equipados com alta tecnologia, Klink remou bastante, não ficou em casa mentalizando seu sonho. Querer mesmo significa abrir mão de uma série de confortos, tomar muito chá de banco, ver inúmeras ideias darem errado antes de darem certo. E, em troca, ser chamado de doido varrido.

Querer, a gente quer muita coisa. Mas quase sempre é um querer preguiçoso, um querer que não nos impulsiona a levantar da cadeira, ainda mais quando nosso projeto tem 0,5% de chance de sucesso. É difícil conseguir o que se quer. Só se torna menos difícil quando se quer mesmo. Pena que alguns só querem mesmo é ser rico ou ser gostosa, para isso fazendo coisas muito mais insanas do que faz Amyr Klink. O que todos deveriam querer, mas querer mesmo, é fugir da mediocridade.

Martha Medeiros, Montanha-russa (crônicas). Porto Alegre: L&PM, 2009. p.166-7

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Preserve sua natureza

"Salve a Mata Atlântica, não polua mares e rios, proteja o ar que a gente respira, não deixe que ipês e plátanos sejam arrancados para dar passagem a viadutos, não pise na grama, não compre nem venda animais silvestres, mas, sobretudo, preserve sua própria natureza.

Se você não nasceu para o terno e a gravata, para o ar condicionado e para reuniões, não se torne um executivo, não ambicione ter tanto dinheiro, não pegue a trilha errada porque, lá adiante, vai dar preguiça de retornar e começar tudo de novo.

Se você não se imagina passando o resto da vida ao lado de uma única pessoa, se tem fome de liberdade, se gosta de estar em trânsito e experimentar toda forma de amor, e desconfia que sempre será assim, não importa a idade que tiver, então não case, não siga padrões de comportamento para os quais você suspeita não ter talento.

Se você sente que tem um amor enorme dentro de você e precisa dividir isso com alguém, se há em você generosidade suficiente para dedicar a maior parte do seu tempo a ensinar, brincar e criar uma pessoa, então não deixe de ter um filho, mesmo que não tenha com quem concebê-lo, mesmo que pense que já perdeu esse trem: perdeu nada, adote uma criança.

Se você não suporta mais ser governado, se não tem paciência para esperar as coisas acontecerem, se seu voto não tem adiantado grande coisa, se sua cabeça está cheia de ideias simples e praticáveis, se você tem o dom da oratória, muitos amigos, um ótimo caráter e acredita que pode mudar o que está aí, candidate-se, e apresente suas soluções.

Se você não é capaz de ficar com vários caras num único verão, se não tem pique para sair para a balada todas as noites, se sonha em encontrar um amor de verdade, alguém que a compreenda e seja um parceiro pra sempre, então não force outros relacionamentos, lute pelo seu ideal romântico, não se avexe por estar na contramão.

Não devaste nem polua você mesmo".

Martha Medeiros, Montanha-russa (crônicas). Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 110-111.

Maria João fala de sua visita a Amadeu em Coimbra

"Quando eu fui visitá-lo, ele estava vestido de maneira acintosamente desleixada. Eu lhe perguntei por que ele não usava a fita amarela da faculdade como os outros estudantes de Medicina.

"- Você sabe que eu não gosto de uniformes, nem mesmo aquele boné do liceu - disse ele.

"Quando precisei ir embora e ele me acompanhou até a estação, vimos um estudante que usava a fita azul-escura da Literatura.

"Olhei para Amadeu.

"- Não se trata da fita - disse para ele. - Trata-se da fita amarela. Você adoraria usar a fita azul.

"- Você sabe muito bem que detesto ser desmascarado. Volte logo. Por favor.


Pascal Mercier, Trem noturno para Lisboa, p. 392-3

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Solidão furiosa

"Será que tudo o que fazemos é pelo medo que temos da solidão? Será por isso que abrimos mão de todas as coisas das quais nos arrependeremos no fim da vida? Será por isso que tão raramente dizemos o que pensamos? Se não for por isso, por que é que insistimos em todos estes casamentos falidos, nas amizades hipócritas, nas tediosas festas de aniversário? O que aconteceria se rompêssemos com tudo isso, se acabássemos com a chantagem insidiosa e nos assumíssemos como somos? Se deixássemos irromper como uma fonte os nossos desejos escravizados e a raiva pela sua escravidão? Pois em que consiste a solidão temida? No silêncio das admoestações que deixam de ser feitas? Na falta da necessidade de se esgueirar, sem respirar, pelo campo minado das mentiras conjugais e das meias verdades complacentes? Na liberdade de não termos ninguém à nossa frente durante as refeições? Na densidade do tempo que se abre quando emudece o tiroteio de convites e combinações com os outros? E tudo isso não serão coisas maravilhosas? Não seria um estado paradisíaco? Por que, então, o medo? Será que, no fim das contas, é um medo que apenas existe porque não refletimos sobre o seu objeto? Um medo que nos foi impingido, sem refletir, por pais, professores e padres? E por que estamos assim tão seguros de que os outros não nos invejariam se vissem como cresceu a nossa liberdade? E que logo tentariam procurar a nossa companhia?"

Pascal Mercier, Trem noturno para Lisboa. p. 347-8

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Recordando uma leitura que me marcou muito

"Nunca existira um homem com tão profunda e apaixonada necessidade de independência como ele. Em sua juventude, quando ainda era pobre e tinha dificuldades em ganhar a vida, preferia passar fome e andar malvestido a sacrificar uma parcela de sua independência. Nunca se vendera por dinheiro ou vida fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que aos olhos do mundo representava vantagens e regalias, a fim de salvaguardar sua liberdade. Nenhuma idéia lhe era mais odiosa e terrível do que a de exercer um cargo, submeter-se a horários, obedecer a ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de audiência, eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel. Sabia subtrair-se a todas essas coisas, à custa de grandes sacrifícios, e nisso residiam sua força e virtude, nisso era inflexível e incorruptível, nisso seu caráter era firme e retilíneo. Só que a essa virtude estavam intimamente ligados seu sofrimento e seu destino".

"Se examinarmos agora a alma do Lobo da Estepe, veremos que ele é distinto do burguês por causa do alto desenvolvimento de sua individualidade, pois toda individualização superior se orienta para o egotismo e propende portanto ao aniquilamento. Vemos que tem em si um forte impulso tanto para o santo quanto para o libertino; portanto, não pode tomar o impulso necessário para atingir o espaço livre e selvagem, por debilidade ou inércia, e permanece desterrado na difícil e maternal constelação da burguesia. Esta é sua situação no espaço do mundo e sua sujeição. A maior parte dos intelectuais e dos artistas pertence a esse tipo. Só os mais fortes entre eles ultrapassam a atmosfera da terra da burguesia e logram entrar no espaço cósmico; todos os demais se resignam ou selam pactos, pertencem a ela, reforçam-na e glorificam-na, pois em última instância têm de professar sua crença para viver. A vida desse infinito número de pessoas não atinge o trágico, mas apenas um infortúnio considerável e uma desventura, em cujo inferno seus talentos engendram e frutificam. Os poucos que se libertaram buscam sua recompensa no absoluto e sucumbem no esplendor".

"Quando se falava com ele e, o que não era habitual, ele se deixava ir além dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares, então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele, uma vez que havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade".

Fala o Lobo da Estepe: "Ao mesmo tempo pensava comigo: assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade; assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantêm conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E têm razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até me burlo dos homens nestas páginas, não será por isso que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do eterno jogo!"

Hermann Hesse, O Lobo da Estepe (Der Steppenwolf, 1927)

sábado, 31 de julho de 2010

Natal em família

"Engoliu a cerveja sem gosto e olhou em volta, o rosto lambuzado pela gordura viscosa do pernil, a camisa salpicada de farofa, os olhos meio baços, uma azia que parecia vir de olhar os rostos à sua volta. Tios, primos, ex-maridos de tias, sobrinhos de primos, pais, irmãos, avós... Essa gente, muitas vezes tão diferente e distante de nós, mas a quem nos sentimos ligados por estranhos laços de ácido desoxirribonucléico e filetes untuosos de porra. Enjoado, ele olha em volta e pensa que até poderia amar sua família, se a visitasse em outra época do ano. Impossível amá-los num período grotesco como este, quando saem vestindo os mais terríveis sorrisos e se lançam desesperados em busca da felicidade, obrigatória nesta época. Impossível amá-los assim, vendo como se enchem de comida, dão gargalhadas furiosas e evitam os assuntos errados, encenando um trato cordial, untuoso como o pernil, tudo para obedecer à ordem de serem felizes, essa felicidade 1984, essa felicidade Admirável Mundo Novo, essa felicidade com dia e horário marcados, decretada pelos comerciais das Casas Bahia, ditada pelos especiais do Roberto Carlos e da Xuxa. Em meio ao funk do rádio no último volume, ele tenta se refugiar na infância. E se lembra de como ele e os irmãos deixaram de acreditar cedo em Papai Noel, mas tiveram vergonha de contar aos pais: era tão constrangedor ver dois adultos fazendo aquele ritual ridículo de, Ei vamos dar uma volta na praça, e a mãe que dizia, Espera, e depois voltava para fechar a porta, e a gente sabia, era tão óbvio, que ela tinha voltado para colocar embaixo da árvore os presentes que estavam trancados dentro do guarda-roupa. E quando, depois do passeio, voltávamos para casa, os pais arregalavam os olhos ao ver os presentes embaixo da árvore, e falavam, Olha o que o papainoel deixou, e nós nos esforçávamos para copiar a mesma cara de espanto e maravilha que eles faziam, para nos mostrarmos tão espantados e maravilhados como eles, porque aquele, afinal, era o dia, o dia de se sentir espantado e maravilhado. Nada mudou, ele pensa, e repara como todos continuam a executar a mesma pantomina de felicidade, numa marcação precisa e antiquada. Nada pode atrapalhar a felicidade, e a mãe com o pé machucado corre de um lado para o outro atirando pratos de pernil, leitoa e peru, é tempo de muita fome, todos devem comer até se estourar. Contempla a fome dos irmãos, os olhos esbugalhados de carência e ciúme, que se atiram sobre a mãe como moscas em esterco, retalhando a coitada em pedaços com sua fome de carinho. Untuosa como o pernil, ele sente a atmosfera carregada de ódios subentendidos e rancores encobertos, menções a cornos, filhos ilegítimos e abusos sexuais que hoje devem ser evitados a todo custo – afinal, haverá outros 364 dias do ano para falar sobre eles. Eles desfilam com imensos sorrisos pregados nos rostos, feitos para não pensar no xingamento de ontem e nem na maledicência de amanhã. Tão cansado quanto ele, o pai se refugia, longe de todos, no outro extremo da casa, diante da TV. É para lá que o filho vai, exausto de tanta fartura e alegria, sem ânimo para competir com os irmãos nas disputas sangrentas pelo amor materno. Na sala, chega a sentir algo como uma imensa ternura ao ver o pai ali, tão distante, tão diferente e indiferente, controle remoto na mão, xingando alguma porcaria da televisão, tão irremediavelmente distante de qualquer felicidade de carnes gordurosas e presentes com laços. O filho sabe, porém, que não tem, como o pai, o dom de se manter apático, ao mesmo tempo ao lado e à parte. O filho contempla uma foto de si próprio, no porta-retrato da sala, a foto do bom filho, um imenso sorriso talhado na cara, transbordando de felicidade. Ele pensa em como esta fotografia nunca irá magoar ninguém com as palavras erradas, nem se aborrecer e ofender aos demais parentes com seu tédio gigantesco. Tudo o que ele quer é sumir dali, fugir para muito longe. Deixar que o porta-retrato assuma o seu papel como filho, de um jeito muito mais apropriado".

Texto de Fausto Salvadori, autor do blog Boteco Sujo

domingo, 25 de julho de 2010

L'âme du vin

Un soir, l'âme du vin chantait dans les bouteilles :
" Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité,
Sous ma prison de verre et mes cires vermeilles,
Un chant plein de lumière et de fraternité !

Je sais combien il faut, sur la colline en flamme,
De peine, de sueur et de soleil cuisant
Pour engendrer ma vie et pour me donner l'âme ;
Mais je ne serai point ingrat ni malfaisant,

Car j'éprouve une joie immense quand je tombe
Dans le gosier d'un homme usé par ses travaux,
Et sa chaude poitrine est une douce tombe
Où je me plais bien mieux que dans mes froids caveaux.

Entends-tu retentir les refrains des dimanches
Et l'espoir qui gazouille en mon sein palpitant ?
Les coudes sur la table et retroussant tes manches,
Tu me glorifieras et tu seras content ;

J'allumerai les yeux de ta femme ravie ;
A ton fils je rendrai sa force et ses couleurs
Et serai pour ce frêle athlète de la vie
L'huile qui raffermit les muscles des lutteurs.

En toi je tomberai, végétale ambroisie,
Grain précieux jeté par l'éternel Semeur,
Pour que de notre amour naisse la poésie
Qui jaillira vers Dieu comme une rare fleur ! "

Charles Baudelaire (1821-1867)

Dedico esta postagem ao meu primo Giovânio, amante do bom vinho

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Trem noturno para Lisboa

Estimado senhor diretor, caro colega Kägi,

O senhor deve ter sido informado de que ontem abandonei a sala de aula sem qualquer explicação e não voltei mais, e o senhor também já deve saber que, de lá para cá, não fui mais encontrado. Estou bem, nada aconteceu comigo. No entanto, ao longo do dia de ontem passei por uma experiência que modificou muita coisa. Ela é por demais pessoal e também ainda muito pouco clara para que eu a possa colocar no papel agora. Preciso simplesmente pedir-lhe que aceite o meu ato abrupto e sem explicação. Imagino que me conhece o suficiente para saber que nada disso aconteceu por leviandade, falta de responsabilidade ou indiferença. Estou partindo para uma longa viagem e ainda está em aberto quando voltarei e de que forma. Não espero que guarde o meu emprego para mim. A maior parte da minha vida foi intimamente entrelaçada com este liceu, e estou certo de que sentirei falta dele. Mas agora algo me impele a partir, e é bem possível que esse movimento seja definitivo. O senhor e eu somos ambos admiradores de Marco Aurélio, e o senhor haverá de se lembrar deste trecho de seus Pensamentos: "Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles, porém, que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são necessariamente infelizes."

Agradeço a confiança que sempre me dispensou e a boa colaboração que nos uniu. Tenho certeza de que encontrará as palavras adequadas quando se dirigir aos alunos, palavras que os fará saber o quanto gostei de trabalhar com eles. Antes de partir, ontem, observei-os e pensei: Quanto tempo eles ainda têm pela frente!


Na esperança de sua compreensão e os melhores votos para o senhor e o seu trabalho sou

Raimund Gregorius

Pascal Mercier, Trem noturno para Lisboa. 6a ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 36-37

Profundezas incertas

Haveria um mistério sob a superfície da atividade humana? Ou seriam as pessoas exatamente como se revelam através de suas ações explícitas?

Pode parecer estranho, mas dentro de mim a resposta se alterna conforme a luz que recai sobre a cidade e o Tejo. Na luz mágica de um dia luminoso de agosto, que produz sombras nítidas e de contornos claros, a ideia de uma profundeza humana oculta me parece absurda e como um fantasma curioso, algo terno, semelhante a uma miragem que aparece quando olho longamente para as ondas que surgem naquela mesma luz. Mas se, ao contrário, a cidade e o rio, num dia triste de janeiro, são envolvidos por uma cúpula de luz sem sombra e tediosamente cinzenta, não conheço certeza maior do que esta: a de que qualquer ação humana não passa de manifestação altamente imperfeita, até mesmo ridícula e indefesa, de uma vida interior oculta de profundezas nunca imaginadas. Uma vida que quer chegar à superfície sem jamais conseguir alcançá-la.

A esta estranha e inquietante incerteza do meu julgamento soma-se ainda mais uma experiência que, desde que a conheci, tem mergulhado a minha vida em uma insegurança perturbadora: é que nessa questão, além da qual não pode existir nada mais importante para nós humanos, eu hesito tanto quanto quando se trata de me analisar a mim mesmo. Quando, por exemplo, estou sentado no meu café preferido, ao sol, escutando as risadas sonoras das senhoras que passam, parece que todo o meu mundo interior está repleto até o canto mais remoto e que eu o conheço todo por ele se esgotar nessas sensações agradáveis. Mas no momento em que uma camada de nuvens prosaica e desmistificadora encobre o sol, tenho subitamente a certeza de que existem em mim profundezas ocultas e baixios dos quais podem irromper coisas nunca imaginadas e que podem me levar de arrastão. Então, procuro pagar logo e vou buscar uma diversão na esperança de que o sol volte logo, restaurando os direitos à superficialidade tranquilizadora.

Amadeu Inácio de Almeida Prado, Um ourives das palavras. Lisboa, 1975

[Ainda não sei se este livro realmente existiu, ou se é apenas fruto da imaginação de Pascal Mercier, autor do livro Trem noturno para Lisboa].

O triunfo da ética protestante

Após a derrota dos radicais, em 1660, e a liquidação definitiva do antigo regime em 1688, os dirigentes da Inglaterra organizaram um império comercial de extrema eficácia e um sistema de dominação de classes que se revelou extraordinariamente resistente à passagem do tempo. A ética protestante impôs-se, pelo menos, às ideias e sentimentos que puderam encontrar expressão impressa. A sociedade produziu grandes cientistas, grandes romances. Inventou o romance. Newton e Locke ditaram normas ao mundo intelectual. Esta foi uma civilização poderosa, que para a maior parte das pessoas representou um progresso face ao que antes existia. Porém que certeza podemos ter, em última análise, de que esse mundo era o melhor dentre os possíveis - um mundo em que poetas enlouqueceram, em que Locke tinha medo da música e da poesia, e Newton tinha ideias secretas e irracionais que não se atrevia a tornar públicas?

(...)

A ética protestante dominou tanto as atitudes morais das classes médias, a filosofia mecanicista dominou tão completamente o pensamento científico, que nem foi preciso renovar a lei de censura ao expirar ela em 1695 - não devido a um possível triunfo dos princípios libertários dos radicais, mas simplesmente porque a censura já não era necessária. Iguais a Newton nesse ponto, os formadores de opinião dessa sociedade se autocensuravam. Nada era impresso que pudesse assustar os proprietários. O que assim passava ao mundo subterrâneo e clandestino só podemos suspeitar. Alguns poucos poetas tinham ideias românticas que destoavam desse mundo; mas não era preciso levá-los demasiado a sério. A autocensura implicava a satisfação consigo mesmo.


Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 366-367.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O mundo de ponta-cabeça

Dizer que uma coisa está de ponta-cabeça, ou posta de pernas para o ar, afinal de contas é uma descrição bastante relativa. A idéia de que esta é a posição errada só vale na medida em que a olhamos de cima para baixo. Marx disse que encontrou Hegel de ponta-cabeça e o colocou na posição correta; mas certamente não era assim que Hegel via a sua própria posição. Marx pensava que a Prússia de seu tempo era um mundo de pernas para o ar. A idéia de que o debaixo possa ir ter em cima, de que o último possa ser o primeiro e o primeiro, último, de que a "comunidade... denominada Cristo ou o amor universal" possa banir "a propriedade, cujo nome é diabo ou cobiça", e de que "as servidões internas da mente" (a cobiça, o orgulho, a hipocrisia, os medos, o desespero e a doença mental) possam ser "causadas, todas, pelas servidões externas que uma espécie de gente impõe a outra" - essas idéias não são necessariamente opostas à ordem: simplesmente contemplam uma ordem diferente. Podemos estar muito condicionados pela via ascendente que o mundo tomou nesses últimos trezentos anos, a ponto de não conseguirmos ser justos com os homens do século XVII que anteviram as possibilidades do avesso, das pernas para o ar, da reviravolta do mundo. Mas pelo menos devemos tentar entendê-los (p. 367).

Christopher Hill, O mundo de ponta-cabeça: Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução e apresentação de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Os fuzilamentos da Moncloa

Uma das obras mais visitadas no Museu do Prado, em Madri, é um quadro do pintor Francisco de Goya chamado Os fuzilamentos da Moncloa [pintado em 1814]. Retrata uma cena assustadora ocorrida na noite de 3 de maio de 1808 em Montana Del Príncipe Pio, nos arredores da capital espanhola. Do lado direito do quadro, sobre um fundo de tom escuro e pesado, uma fileira de soldados aponta seus fuzis para um grupo de pessoas ajoelhadas à esquerda. No centro, uma lanterna no chão projeta uma luz fantasmagórica sobre um homem que, de camisa branca e calça bege, ergue os braços em direção aos atiradores. Pede clemência? Tenta explicar alguma coisa? Faz um último ato de protesto? Ninguém nunca saberá. O instante congelado pelas tintas de Goya é de puro medo e desespero. Aos pés do homem de camisa branca estão empilhados três ou quatro cadáveres cobertos de sangue. Ao seu lado, outras pessoas esperam pelo tiro fatal. Algumas cobrem os olhos. Outras pendem a cabeça, num gesto de resignação.

O quadro de Goya é um trágico testemunho dos acontecimentos que abalaram a Península Ibérica no ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. Na véspera daquelas execuções em massa, os espanhóis se rebelaram contra a invasão das tropas francesas e a deposição do rei Carlos IV. A repressão foi violenta e implacável. Entre a tarde do dia 2 e a noite do dia 3, centenas de rebeldes foram fuzilados nos subúrbios de Madri. Começava ali um dos confrontos mais sangrentos das guerras napoleônicas - e que teriam consequências profundas para os dois lados em disputa. (p. 242-243).

Laurentino Gomes, 1808. 3. ed. São Paulo: Planeta, 2009. p. 242-3.

O Brasil e os livros

"O Brasil não é lugar de literatura. (...) Na verdade, a sua total ausência é marcada pela proibição geral de livros e a falta dos mais elementares meios pelos quais seus habitantes possam tomar conhecimento do mundo e do que se passa nele. Os habitantes estão mergulhados em grande ignorância e sua consequência natural: o orgulho". James Henderson, 1821

James Henderson, A History of the Brazil - comprising its geography, commerce, colonization, aboriginal inhabitants. London: Longman, 1821. p. 76.

1808

"Imagine que, num dia qualquer, os brasileiros acordassem com a notícia de que o presidente da República havia fugido para a Austrália, sob a proteção de aviões da Força Aérea dos Estados Unidos. Com ele, teriam partido, sem aviso prévio, todos os ministros, os integrantes dos tribunais superiores de Justiça, os deputados e senadores e alguns dos maiores líderes empresariais. E mais: a esta altura, tropas da Argentina já estariam marchando sobre Uberlândia, no Triângulo Mineiro, a caminho de Brasília. Abandonado pelo governo e todos os seus dirigentes, o Brasil estaria à mercê dos invasores, dispostos a saquear toda e qualquer propriedade que encontrassem pela frente e assumir o controle do país por tempo indeterminado.

Provavelmente, a primeira sensação dos brasileiros diante de uma notícia tão inesperada seria de desamparo e traição. Depois, de medo e revolta.

E foi assim que os portugueses reagiram na manhã de 29 de novembro de 1807, quando circulou a informação de que a rainha, o príncipe regente e toda a corte estavam fugindo para o Brasil sob a proteção da Marinha britânica. Nunca algo semelhante tinha acontecido na história de qualquer país europeu. Em tempos de guerra, reis e rainhas haviam sido destronados ou obrigados a se refugiar em territórios alheios, mas nenhum deles tinha ido tão longe a ponto de cruzar um oceano para viver e reinar do outro lado do mundo. Embora os europeus dominassem colônias imensas em diversos continentes, até aquele momento nenhum rei havia colocado os pés em seus territórios ultramarinos para uma simples visita - muito menos para ali morar e governar. Era, portanto, um acontecimento sem precedentes tanto para os portugueses, que se achavam na condição de órfãos de sua monarquia da noite para o dia, como para os brasileiros, habituados até então a ser tratados como uma simples colônia extrativista de Portugal.

No caso dos portugueses, além da surpresa da notícia, havia um fator que agravava a sensação de abandono. Duzentos anos atrás, a noção de Estado, governo e identidade nacional era bem diferente do que se tem hoje. Ainda não existia em Portugal a ideia de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido - o princípio fundamental da democracia. No Brasil de hoje, se, por uma circunstância inesperada, todos os governantes fugissem do país, o povo ainda teria a prerrogativa de se reunir e eleger um novo presidente, deputados e senadores, de modo a recompor imediatamente o Estado e seu governo. As próprias empresas, depois de um período de incerteza pela ausência de seus donos ou dirigentes, poderiam se reorganizar e continuar funcionando. Em Portugal de 1807 não era assim. Sem o rei, o país ficava à míngua e sem rumo. Dele dependiam toda a atividade econômica, a sobrevivência das pessoas, o governo, a independência nacional e a própria razão de ser do Estado português". (p. 31-32).

Laurentino Gomes, 1808. 3. ed. São Paulo: editora Planeta, 2009, p. 31-32.

domingo, 27 de junho de 2010

A man saw a ball of gold in the sky

A man saw a ball of gold in the sky;
He climbed for it,
And eventually he achieved it --
It was clay.

Now this is the strange part:
When the man went to the earth
And looked again,
Lo, there was the ball of gold.
Now this is the strange part:
It was a ball of gold.
Aye, by the heavens, it was a ball of gold.

Stephen Crane (1871-1900)

Clay = barro

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um Sopro de Destruição

"As consequências sociais, econômicas e políticas da devastação das florestas, erosão e esgotamento dos solos, degradação do clima, extinção das espécies animais e vegetais. Pauta do dia? Sim - desde 1786.

Muito antes do que se costuma imaginar, já se discutia no Brasil, de forma consistente e criativa, a destruição do meio ambiente. Analisando cerca de 150 textos de época, produzidos por mais de 50 autores, este livro reconstitui pela primeira vez, de maneira lúcida e abrangente, um capítulo fascinante e praticamente esquecido na história do pensamento social brasileiro: a crítica ambiental nos séculos XVIII e XIX.

Nomes como José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Baltasar da Silva Lisboa e Francisco Freire Alemão, entre vários outros, dedicaram-se ao debate ambiental. E - ainda mais espantoso - muitos perceberam que a superação das práticas devastadoras, a partir de um esforço consciente de modernização tecnológica, passava necessariamente pela implementação de reformas socioeconômicas profundas, que rompessem com o legado do colonialismo: o tripé escravidão-latifúndio-monocultura.

Destruir matos virgens, ... e sem causa, como até agora se tem praticado no Brasil, é extravagância insofrível, crime horrendo e grande insulto feito à natureza. Que defesa produziremos no Tribunal da Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?

A pergunta que José Bonifácio se fez em 1821 vale ainda hoje. Um sopro de destruição nos permite identificar a origem de inúmeros problemas que persistem no país, funcionando como um alerta para a profundidade e urgência da questão ambiental no Brasil". (Orelha do livro).

José Augusto Pádua, Um Sopro de Destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (1786-1888). 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.