sexta-feira, 23 de julho de 2010

Trem noturno para Lisboa

Estimado senhor diretor, caro colega Kägi,

O senhor deve ter sido informado de que ontem abandonei a sala de aula sem qualquer explicação e não voltei mais, e o senhor também já deve saber que, de lá para cá, não fui mais encontrado. Estou bem, nada aconteceu comigo. No entanto, ao longo do dia de ontem passei por uma experiência que modificou muita coisa. Ela é por demais pessoal e também ainda muito pouco clara para que eu a possa colocar no papel agora. Preciso simplesmente pedir-lhe que aceite o meu ato abrupto e sem explicação. Imagino que me conhece o suficiente para saber que nada disso aconteceu por leviandade, falta de responsabilidade ou indiferença. Estou partindo para uma longa viagem e ainda está em aberto quando voltarei e de que forma. Não espero que guarde o meu emprego para mim. A maior parte da minha vida foi intimamente entrelaçada com este liceu, e estou certo de que sentirei falta dele. Mas agora algo me impele a partir, e é bem possível que esse movimento seja definitivo. O senhor e eu somos ambos admiradores de Marco Aurélio, e o senhor haverá de se lembrar deste trecho de seus Pensamentos: "Força-te, força-te à vontade e violenta-te, alma minha; mais tarde, porém, já não terás tempo para te assumires e respeitares. Porque de uma vida apenas, uma única, dispõe o homem. E se para ti esta já quase se esgotou, nela não soubeste ter por ti respeito, tendo agido como se a tua felicidade fosse a dos outros... Aqueles, porém, que não atendem com atenção os impulsos da própria alma são necessariamente infelizes."

Agradeço a confiança que sempre me dispensou e a boa colaboração que nos uniu. Tenho certeza de que encontrará as palavras adequadas quando se dirigir aos alunos, palavras que os fará saber o quanto gostei de trabalhar com eles. Antes de partir, ontem, observei-os e pensei: Quanto tempo eles ainda têm pela frente!


Na esperança de sua compreensão e os melhores votos para o senhor e o seu trabalho sou

Raimund Gregorius

Pascal Mercier, Trem noturno para Lisboa. 6a ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p. 36-37

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