"Engoliu a cerveja sem gosto e olhou em volta, o rosto lambuzado pela gordura viscosa do pernil, a camisa salpicada de farofa, os olhos meio baços, uma azia que parecia vir de olhar os rostos à sua volta. Tios, primos, ex-maridos de tias, sobrinhos de primos, pais, irmãos, avós... Essa gente, muitas vezes tão diferente e distante de nós, mas a quem nos sentimos ligados por estranhos laços de ácido desoxirribonucléico e filetes untuosos de porra. Enjoado, ele olha em volta e pensa que até poderia amar sua família, se a visitasse em outra época do ano. Impossível amá-los num período grotesco como este, quando saem vestindo os mais terríveis sorrisos e se lançam desesperados em busca da felicidade, obrigatória nesta época. Impossível amá-los assim, vendo como se enchem de comida, dão gargalhadas furiosas e evitam os assuntos errados, encenando um trato cordial, untuoso como o pernil, tudo para obedecer à ordem de serem felizes, essa felicidade 1984, essa felicidade Admirável Mundo Novo, essa felicidade com dia e horário marcados, decretada pelos comerciais das Casas Bahia, ditada pelos especiais do Roberto Carlos e da Xuxa. Em meio ao funk do rádio no último volume, ele tenta se refugiar na infância. E se lembra de como ele e os irmãos deixaram de acreditar cedo em Papai Noel, mas tiveram vergonha de contar aos pais: era tão constrangedor ver dois adultos fazendo aquele ritual ridículo de, Ei vamos dar uma volta na praça, e a mãe que dizia, Espera, e depois voltava para fechar a porta, e a gente sabia, era tão óbvio, que ela tinha voltado para colocar embaixo da árvore os presentes que estavam trancados dentro do guarda-roupa. E quando, depois do passeio, voltávamos para casa, os pais arregalavam os olhos ao ver os presentes embaixo da árvore, e falavam, Olha o que o papainoel deixou, e nós nos esforçávamos para copiar a mesma cara de espanto e maravilha que eles faziam, para nos mostrarmos tão espantados e maravilhados como eles, porque aquele, afinal, era o dia, o dia de se sentir espantado e maravilhado. Nada mudou, ele pensa, e repara como todos continuam a executar a mesma pantomina de felicidade, numa marcação precisa e antiquada. Nada pode atrapalhar a felicidade, e a mãe com o pé machucado corre de um lado para o outro atirando pratos de pernil, leitoa e peru, é tempo de muita fome, todos devem comer até se estourar. Contempla a fome dos irmãos, os olhos esbugalhados de carência e ciúme, que se atiram sobre a mãe como moscas em esterco, retalhando a coitada em pedaços com sua fome de carinho. Untuosa como o pernil, ele sente a atmosfera carregada de ódios subentendidos e rancores encobertos, menções a cornos, filhos ilegítimos e abusos sexuais que hoje devem ser evitados a todo custo – afinal, haverá outros 364 dias do ano para falar sobre eles. Eles desfilam com imensos sorrisos pregados nos rostos, feitos para não pensar no xingamento de ontem e nem na maledicência de amanhã. Tão cansado quanto ele, o pai se refugia, longe de todos, no outro extremo da casa, diante da TV. É para lá que o filho vai, exausto de tanta fartura e alegria, sem ânimo para competir com os irmãos nas disputas sangrentas pelo amor materno. Na sala, chega a sentir algo como uma imensa ternura ao ver o pai ali, tão distante, tão diferente e indiferente, controle remoto na mão, xingando alguma porcaria da televisão, tão irremediavelmente distante de qualquer felicidade de carnes gordurosas e presentes com laços. O filho sabe, porém, que não tem, como o pai, o dom de se manter apático, ao mesmo tempo ao lado e à parte. O filho contempla uma foto de si próprio, no porta-retrato da sala, a foto do bom filho, um imenso sorriso talhado na cara, transbordando de felicidade. Ele pensa em como esta fotografia nunca irá magoar ninguém com as palavras erradas, nem se aborrecer e ofender aos demais parentes com seu tédio gigantesco. Tudo o que ele quer é sumir dali, fugir para muito longe. Deixar que o porta-retrato assuma o seu papel como filho, de um jeito muito mais apropriado".
Texto de Fausto Salvadori, autor do blog Boteco Sujo
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