Clarice Lispector e Fernando Sabino foram amigos íntimos e trocaram muitas cartas no início da carreira literária de ambos. Em uma dessas cartas, enviada de Berna, onde morava, Clarice escreveu para Sabino: "Falta demônio nessa cidade".
Falta demônio em toda a Suiça. Falta demônio em muitos lugares. Não falta no Brasil, e talvez seja esta a explicação para o encantamento que o país provoca em estrangeiros e nativos: é o feitiço da irreverência.
Os Beatles tinham um demônio parcimonioso quando cantavam she loves you, yeah, yeah, yeah, tornando-se mais famosos que Jesus Cristo. Só deixaram o demônio tomar conta em discos como Sargent Pepper's, Álbum Branco e Abbey Road, numa época em que Mick Jagger julgava-se o único representante de Lúcifer na terra. Há demônio no rock, em todas as bandas.
Há demônio no vinho, falta no clericot. Há demônio no jeans, falta no linho. Há demônio nas fotos em preto-e-branco.
Há demônio no cinema, não há na televisão. Há demônio em livros, não há em revistas. Há demônio em Picasso, Almodóvar, Wagner, Janis Joplin. Há demônio na chuva mais do que no sol, há demônio no humor e na ironia, nenhum demônio no pastelão.
Não há demônio em bichos e crianças. Volto atrás sobre as crianças. Em algumas há, mas somente nas muito especiais. As outras pensam que são espertas, mas são apenas mal-educadas.
Na poesia há sempre demônio. Na boa poesia, na poesia marginal, na poesia de amor. Paixão é quando o demônio está nu. Sexo com quem se ama é muito mais satânico, não precisa ser um amor pra sempre, pode ser um amor de repente, qualquer amor inferniza.
Coca-cola tem mais demônio que guaraná. A inteligência tem mais demônio que a simpatia. A vida tem mais demônio que a morte. Filosofia, psicanálise, beijo, aventura, silêncio. Um minuto de silêncio. O pensamento é o demo.
O Oriente tem. Manhattan tem. Berna não tem, como tudo que é neutro.
Martha Medeiros, Montanha-russa (crônicas). Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 44-45
Fonte da imagem: Sargent Pepper's
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