segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Big Sur

Ao meio-dia o sol enfim sempre aparece, forte, batendo na varanda alta onde estou sentado com livros e café e à tarde eu pensei nos antigos índios que devem ter habitado esse cânion por milhares de anos, em como no século X esse vale devia ter o mesmo aspecto, só com árvores diferentes: esses índios antigos simplesmente os ancestrais dos índios mais recentes digamos de 1860 - Como todos morreram e em silêncio enterraram seus ressentimentos e expectativas - Como o córrego podia ser alguns centímetros mais fundo já que a atividade madeireira dos últimos 60 anos prejudicou um pouco as vertentes - Como as mulheres pilavam as bolotas, bolotas ou bolopts, até que enfim achei as nozes naturais do vale e elas tinham um gosto doce - E os homens caçavam veados - Na verdade só Deus sabe o que eles faziam porque eu não estava aqui - Mas o mesmo vale, mil anos de pó mais ou menos por cima das pegadas deles de 960 d. C. - E até onde eu vejo o mundo é velho demais para que possamos falar sobre ele com as nossas palavras tão novas - Vamos passar tão quietos pela vida (passando, passando) como o povo do século X aqui nesse vale só que com um pouco mais de barulho e algumas pontes e barragens e bombas que sequer vão durar um milhão de anos - Sendo que o mundo é apenas o que é, se movendo e passando, na verdade tudo bem a longo prazo e nada do que reclamar - Até as rochas do vale tinham ancestrais rochosos, um bilhão de bilhões de anos atrás, não deixaram nenhum uivo de queixume - Nem as abelhas, ou os primeiros ouriços do mar, ou a amêijoa, ou a pata cortada - Tudo a visão É-A-VIDA do mundo, bem diante do meu nariz enquanto eu olho, - E olhando para aquele vale na verdade eu percebo que tenho que preparar o almoço e não vai ser diferente do almoço daqueles homens antigos e ainda por cima gostoso - Tudo é a mesma coisa, a neblina diz "Nós somos neblina e voamos nos dissolvendo como coisas efêmeras", e as folhas dizem "Nós somos folhas e tremelicamos ao vento, nada mais, chegamos e partimos, crescemos e caímos" - Até os sacos de papel no lixo dizem "Nós somos sacos de papel feitos de polpa de madeira pelos homens, temos um certo orgulho de ser sacos enquanto isso for possível, mas depois voltaremos a ser polpa de madeira com nossas irmãs folhas quando chegar a época das chuvas" - Os tocos de árvore dizem "Nós somos tocos de árvores arrancadas do solo pelos homens, às vezes pelo vento, temos grandes tendões cheios de terra que bebem do solo" - Os homens dizem "Nós somos homens, arrancamos árvores, fazemos sacos de papel, achamos que temos boas ideias, fazemos o almoço, olhamos em volta, fazemos um grande esforço para perceber que tudo é a mesma coisa" - Enquanto a areia diz "Nós somos areia, nós já sabemos", e o mar diz "Nós sempre vamos e voltamos, caímos e ploch" - O grande azul vazio do céu diz "Tudo isso volta para mim, então parte outra vez, e volta outra vez, então parte outra vez, e eu não estou nem aí, de um jeito ou de outro tudo me pertence" - O céu azul acrescenta "Não me chame de eternidade, me chame de Deus se você quiser, todos vocês tagarelas estão no paraíso: a folha é o paraíso, o toco de árvore é o paraíso, o saco de papel é o paraíso, o homem é o paraíso, a areia é o paraíso, o mar é o paraíso, a neblina é o paraíso" - Você consegue imaginar que o homem com insights maravilhosos como esses pode enlouquecer em um mês? (porque você tem que admitir que os sacos de papel e as areias falantes estavam dizendo a verdade) - Mas eu lembro de ver uma massa de folhas de repente se agitar com o vento, depois flutuar depressa pelo córrego em direção ao mar, fazendo com que eu sentisse um horror inefável na mesma hora "Ah meu Deus, estamos todos sendo arrastados pro mar não importa o que a gente diga ou faça" - E um pássaro que estava num galho torto some de repente sem eu escutar nada.

Jack Kerouac, Big Sur (1962). Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 35-36.

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