"...nesse começo de insônia, aquele ritual da leitura, toda noite, à
sua cabeceira, quando ele era pequeno – hora certa e gestos imutáveis –,
tinha um pouco de prece. Aquele súbito armistício depois da barulhada
do dia, aqueles reencontros fora de todas as contingências, o momento de
recolhido silêncio antes das primeiras palavras do conto, nossa voz
enfim igual a ela mesma, a liturgia dos episódios... Sim, a história
lida cada noite preenchia a mais bela das funções da prece,
a mais desinteressada, a menos especulativa e que não diz respeito
senão aos homens: o perdão das ofensas. [...] Sem saber, descobríamos
uma das funções essenciais do conto e, mais amplamente, da arte em
geral, que é impor uma trégua ao combate entre os homens.
O amor ganhava pele nova.
Era gratuito.
Gratuito. Era bem assim que ele entendia. Um presente. Um momento fora
dos momentos. Apesar de tudo. A história noturna o liberava do peso do
dia. Largávamos as amarras. Ele ia com o vento, imensamente leve, e o
vento era a nossa voz.
Como preço dessa viagem, não se exigia
nada dele, nem um tostão, não se pedia a menor compensação. E não era
nem mesmo uma recompensa. (Ah! as recompensas – como era preciso se
mostrar digno de ter sido recompensado!). Aqui, tudo se passava no país
da gratuidade.
A gratuidade, que é a única moeda da arte."
Daniel Pennac (1944-). Como um romance (1992). Porto Alegre: L± Rio de Janeiro: Rocco, 2008, p.31-32
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