quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Ritual da leitura


"...nesse começo de insônia, aquele ritual da leitura, toda noite, à sua cabeceira, quando ele era pequeno – hora certa e gestos imutáveis –, tinha um pouco de prece. Aquele súbito armistício depois da barulhada do dia, aqueles reencontros fora de todas as contingências, o momento de recolhido silêncio antes das primeiras palavras do conto, nossa voz enfim igual a ela mesma, a liturgia dos episódios... Sim, a história lida cada noite preenchia a mais bela das funções da prece, a mais desinteressada, a menos especulativa e que não diz respeito senão aos homens: o perdão das ofensas. [...] Sem saber, descobríamos uma das funções essenciais do conto e, mais amplamente, da arte em geral, que é impor uma trégua ao combate entre os homens.

O amor ganhava pele nova.

Era gratuito.

Gratuito. Era bem assim que ele entendia. Um presente. Um momento fora dos momentos. Apesar de tudo. A história noturna o liberava do peso do dia. Largávamos as amarras. Ele ia com o vento, imensamente leve, e o vento era a nossa voz.

Como preço dessa viagem, não se exigia nada dele, nem um tostão, não se pedia a menor compensação. E não era nem mesmo uma recompensa. (Ah! as recompensas – como era preciso se mostrar digno de ter sido recompensado!). Aqui, tudo se passava no país da gratuidade.
A gratuidade, que é a única moeda da arte."

Daniel Pennac (1944-). Como um romance (1992). Porto Alegre: L± Rio de Janeiro: Rocco, 2008, p.31-32

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