sexta-feira, 31 de julho de 2015

Morini

"E que dizer sobre Morini? Sua posição na cadeira de rodas expressava um certo grau de abandono, como se a contemplação da chuva noturna e da vizinhança adormecida satisfizesse a todas as suas expectativas. Às vezes apoiava os dois braços na cadeira, outras vezes apoiava a cabeça numa mão e o cotovelo no braço da cadeira. Suas pernas inermes, como as pernas de um adolescente agônico, estavam enfiadas num jeans talvez largo demais. Vestia uma camisa branca, com os botões do colarinho desabotoados, e no pulso esquerdo trazia um relógio cuja pulseira era larga para ele, mas não tão grande que pudesse cair. Não calçava sapatos, mas chinelos, de tecido preto e reluzente como a noite. Toda a roupa era cômoda, para andar em casa, e pela atitude de Morini quase se podia afirmar que no dia seguinte não tinha intenção de ir trabalhar ou que pensava chegar tarde ao trabalho. 

A chuva, do outro lado da janela, tal como dizia em seu e-mail, caía obliquamente e a lassidão de Morini, sua quietude e abandono tinham algo de mortalmente camponês, submetido de corpo e alma à insônia, sem uma queixa."

Roberto Bolaño (1953-2003). 2666. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 129

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