quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

micro

"Fazer pactos com o nada
renegociar o vazio
palavrear carências
aliar-se ao pouquíssimo"

Ajo (poeta espanhola). In: modo de usar & co (blog)

Na biblioteca


"Na biblioteca de paredes altas e mofadas do prédio quase centenário da faculdade, Pedro tentava ler os livros e os capítulos pedidos pelos professores. Mas sua atenção morria sem fôlego no amontoado de palavras estranhas, alheias. Adormecia nas marteladas sem ritmo de frases cada vez mais distantes. Os títulos e subtítulos começaram a soar estridentes, hostis, como uns latidos. Seus olhos se desviavam espontaneamente para as imensas árvores de mais de cem anos no parque em frente, emolduradas pelas janelas muito altas. Ele se demorava ali à toa num torpor, observando a folhagem densa, a profusão dos galhos, a leve transformação das cores e das sombras à medida que o sol baixava."

Rubens Figueiredo (1956-).
Passageiro do fim do dia (2010). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 44

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Bibliotecas e cemitérios


“Havia dois lugares em todo o Universo onde ela estava certa de não ser incomodada: as bibliotecas e os cemitérios. O silêncio dos mortos e dos livros não tinha nada de embaraçoso. (...) Ela sabia que era aceita e amada nesses lugares sem nenhuma condição. Pode-se confiar nos mortos e nos livros. Anos antes, quando, na escola, lhe pediam para escrever na sua ficha de apresentação o que ela queria fazer mais tarde, ela pensava nos cemitérios e nas bibliotecas. Ou ela seria morta, ou escreveria.”

[« Il y avait deux lieux dans tout l’Univers où elle était sûre de ne pas être dérangée : les bibliothèques et les cimetières. Le silence des morts et des livres n’a rien d’embarrassant. (...) Elle savait que, sans condition, elle était acceptée et aimée dans ces lieux. On peut faire confiance aux morts et aux livres. Des années plus tôt, quand, à l’école, on lui demandait de noter sur sa fiche de présentation ce qu’elle voudrait faire plus tard, elle pensait aux cimetières et aux bibliothèques. Soit elle serait morte, soit elle écrirait. »]


Martin Page (1975-). On s’habitue aux fins du monde (2005). Paris : J’ai lu, p. 123

domingo, 21 de dezembro de 2014

Não me interessa ter razão


"Não me interessa ter razão, não tenho apetência para esse tipo de poder, de marcar uma posição, dar um murro na mesa. Se entro numa discussão é à maneira chinesa, simplesmente para sugerir que pode haver outra maneira de olhar para as coisas."

"...se nos colocarmos no território de ganhar, vamos suscitar no outro apetites enormes numa vida onde se perdeu quase sempre, e as pessoas agarram-se a esses pequenos triunfos. Se conseguirmos retirar o assunto do território da disput
a é mais fácil convencer as pessoas de que há outros modos de olhar. Dou-me bem com esta forma de fazer guerras. O provérbio chinês 'o general que ganhou a guerra sem fazer nenhuma batalha' é um lema da minha vida."

Mia Couto, em entrevista à RA - Rede Angolana

A arte de parar


"Não se deve confundir ficar sem fazer nada com uma falta total de atividade. Não fazer nada é de fato fazer algo muito importante. É permitir que a vida aconteça – a sua vida. Não fazer nada é algo muito profundo."

David Kundtz.
A essencial arte de parar, p. 23

domingo, 14 de dezembro de 2014

A arte e a ciência de não fazer nada


"Colocar a cabeça constantemente num estado de vigilância é muito perigoso a longo prazo. Só como exemplo, uma recente revisão sistemática de todos os estudos clínicos sobre horas de trabalho e doença cardíaca coronária mostrou que as pessoas que trabalham mais horas têm 40% de risco extra de doença do coração. Isso é quase tão grave quanto fumar. Acho que quando realmente podemos ficar ociosos sem culpa ou vergonha, nosso cérebro pode processar toda a energia emocional – e a princípio isso pode parecer estranho, mas é certamente benéfico para nossa saúde física e mental a longo prazo." (p. 47)
"Acredito que coisas como a desigualdade de riquezas e o tipo de economia de privilégios que temos impedem as pessoas de realmente descobrirem o que gostam de fazer – ou não fazer, conforme o caso." (p. 48)
"Não estou certo sobre o que deveria vir antes: a luta por melhores salários ou por menos trabalho. Isso porque incrementar marginalmente seu salário parece sempre levar a muito mais trabalho em proporção à remuneração, já que as empresas precisam a todo momento maximizar os lucros..." (p. 49)

Entrevista com Andrew Smart, sobre seu livro "Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing". OR Books. In: Revista
Vida Simples, jun. 2014

Ação e reação


"...toda ação executada deixa uma semente na área mental da mesma natureza da ação cometida. Portanto, tal semente irá amadurecer gerando um efeito similar à ação realizada. Ou seja, se trapacearmos alguém para nos beneficiar momentaneamente, estaremos criando causas para sermos trapaceados. Já se formos generosos, criamos causas para recebermos generosidade."
"Buda ensina que é um autoengano considerar que é possível se beneficiar prejudicando alguém."

Kelsang Mudita. O budismo e a disciplina moral (entrevista). In: Revista Vida Simples, jun. 2014, p. 191

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Um momento


"Um momento.
E devagar, shhhh...
Que o gato não desperte.
Que os pardais na laranjeira
não se espantem.
Ferve a água, fecho o livro,
maio voltou à janela.
Alguém quer uma xícara de chá?
Algum de vocês deseja
uma xícara de chá?
Na segunda prateleira,
à esquerda, há duas latas
uma vermelha e outra branca.
150 milhões de km
percorreu este raio de sol
que transluz o vidro
e as cortinas
e se fixa na madeira do chão.
Dentro do raio, na não-gravidade,
a poeira cinza enlouquecida
formigando.
A branca não, a vermelha."
Daniel García Helder (1961-), poeta argentino. Intranscendência. In: modo de usar & co (blog)

A vida virou uma carreira

"A vida virou uma carreira. As pessoas estão focadas o tempo todo no seu sucesso profissional. É preciso ganhar o máximo de dinheiro, ter uma família, casa grande – tudo junto. Consumismo, individualismo, carreirismo. A vida contemporânea, apesar dos avanços materiais, é mais pobre."
"As pessoas gastam tempo nenhum em reflexão. Raramente se vê pessoas sozinhas andando sem estar com fones de ouvido, telefones. Vejo isso da janela do meu escritório no campus. Conto quantos estão sozinhos sem falar ao telefone. O número é muito pequeno."
"Minha filha trabalhou numa empresa de desenvolvimento de programas de computador. Muitos de seus colegas têm em torno de 20 anos e ganham muito dinheiro. Perguntei a ela o que eles fazem com tanto dinheiro. Ela me disse: apenas compram brinquedos. Mas brinquedos grandes: carros, barcos, sem falar nas traquitanas tecnológicas. Trabalham muito; não têm tempo para viajar. São apenas crianças grandes com a chance de fazer o que quiserem. E o que eles fazem é comprar objetos. É uma vida superficial."
Barry Stroud, filósofo, professor da Universidade da Califórnia - Berkeley

apocalipse zumbi


"Hey sweetheart, não vá
a piquenique em cemitério:
não vá
bebericar no cemitério:
não vá cheirar pó no cemitério:
não faça a gótica
esta noite.
Porque as coisas
andam meio esquisitas; porque foi encontrado
um braço
e o resto desse corpo é um mistério;
porque foi encontrada
a orelha
de outro mistério
e os dentes só o diabo sabe que sorriso;
porque as coisas estão ficando hardcore:
hey, honey, escute
essa cançãozinha idiota: não vá
dançar no cemitério:
não vá dançar
no cemitério: não vá
dançar no cemitério: fique comigo
esta noite."

Luis Felipe Fabre (1974-), poeta mexicano. Notas em torno do apocalipse zumbi. In: modo de usar & co (blog)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

estranhas névoas me afastaram de mim


"Quer que eu lhe fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E sabe por quê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora, que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido."

Mia Couto. Contos do nascer da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 111

Não podemos escapar de quem somos


"Não podemos escolher o que queremos e o que não queremos, e essa é a dura e solitária verdade. Às vezes queremos o que queremos mesmo sabendo que isso vai nos matar. Não podemos escapar de quem somos. (Uma coisa tenho que admitir sobre meu pai: pelo menos ele tentou querer a coisa sensata – minha mãe, a pasta executiva, eu – antes de enlouquecer de vez e fugir disso.)"

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 718

Glória perversa

"Kitsey tem razão? Se seu eu mais profundo está cantando e te atraindo direto para a fogueira, o melhor é se afastar? Tapar os ouvidos com cera? Ignorar toda a glória perversa que seu coração está gritando pra você? Pôr-se no rumo que vai te levar devidamente à norma, expediente razoável e checkups médicos regulares, relacionamentos estáveis e progressão fixa na carreira, 'New York Times' e brunch no domingo, tudo com a promessa de ser de alguma forma uma pessoa melhor?"

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 710

arte


"Porque, entre realidade, de um lado, e o ponto onde a mente toca a realidade, de outro, há uma zona intermediária, uma borda de arco-íris onde a beleza ganha vida, onde duas superfícies muito diferentes se misturam e se confundem para suprir o que a vida não oferece; e esse é o espaço onde toda arte existe, e toda mágica."

Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 718

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Olhando fotos de Anne Sexton


"Na primeira foto, Anne Sexton olha o mar.
Sabemos que é uma praia em Virgínia,
Carolina do Norte, e que é o ano
de 48, um dia
de sua lua de mel.
...........................Tem os olhos
semifechados, enquanto ouve o rumor
das ondas, o vento que desfaz
e volta a erguer as dunas,
a água que se move com lentidão,
que traça
linhas,
curvas,
esferas.
A água que se move como a mão
de alguém que escreve a palavra oceano.
Na segunda imagem
— agora já estamos em mil novecentos e
setenta e quatro —, fuma um cigarro
perto de uma janela — por alguma razão
creio que do outro lado do vidro há um bosque —
e observa as figuras
formadas pela fumaça: peixes,
um iceberg,
.................uma sereia,
....................................um anjo
gravemente ferido na neve.
Nesta foto
tem um aspecto estranho,
parecido ao de alguém que corre para um vulcão
ou ao de alguém que acaba de largar uma faca.
Poucos
dias
depois
Anne Sexton vai se matar
nesta mesma casa;
vai deixar
seus anéis
sobre uma mesa, na cozinha,
e em seguida
entrará na garagem
com um copo
de vodka
na mão,
ligará o motor
do carro — um Cougar vermelho — e o rádio
— você imagina o que ela pôde ter ouvido? James Taylor?
Grateful Dead? Pink Floyd?—
E aguardará a morte.
Fecho o livro
Você me olha.
Sei o que está pensando:
— A vida é muito difícil.
Uma mulher é um relógio de areia."
Benjamín Prado (1961-), poeta espanhol. Olhando fotos de Anne Sexton (1928 - 1974). In: modo de usar & co (blog)

Nunca esqueça que você não é um deles


"...fiquei agarrando taças de champanhe dos garçons que às vezes passavam por perto, de vez em quando um canapé, minúsculos quiches, blinis em miniatura com caviar, estranhos indo e vindo, preso e assentindo educadamente em meio à multidão de bem-nascidos, ricos e poderosos...
('Nunca esqueça que você não é um deles', meu colega viciado do departamento de contabilidade tinha sussurrado no meu ouvido quando me viu socializando entre clientes importantes num leilão de arte impressionista e moderna.)
...paralisando e me virando para sorrir com grupos aleatórios quando o fotógrafo passava, detido em fragmentos de conversas extremamente tediosas à minha volta sobre jogos de golfe, política, esportes das crianças, escolas das crianças, terceira, quarta e quinta casa em Hyères, Hyannis, Paris, Londres, Jackson Hole e Júpiter (...).
Teria ficado feliz em sair daquela sala e continuar andando durante dias e meses até chegar a alguma praia do México, talvez alguma costa isolada onde poderia vagar sozinho e usar as mesmas roupas até se desintegrarem e ser o gringo doido com óculos de armação de tartaruga que vivia de consertar cadeiras e mesas."
Donna Tartt (1963-). O pintassilgo (2013). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 590; 594

A Walk


"My eyes already touch the sunny hill.
going far ahead of the road I have begun.
So we are grasped by what we cannot grasp;
it has inner light, even from a distance –
and charges us, even if we do not reach it,
into something else, which, hardly sensing it,
we already are; a gesture waves us on
answering our own wave...
but what we feel is the wind in our faces."
Rainer Maria Rilke (1875-1926). A Walk. In: poemhunter.com