Sofre-se muito e cada vez mais,
também porque as vigílias são mais longas.
Ainda que durmas, deves-te levantar e cuidar da vida,
sujeitar-te à pouca destreza de um corpo
que não aprende as sutilezas da alma
e a todo instante perturba-te o repouso.
Precisas comer, limpar-te, mostrar-te apresentável
a quem chama na porta, salvar-te com compostura
do teu destino metabólico,
dormir na própria cruz sem sobressaltos,
como um bebê brincando com suas fezes.
Ó meu Deus, dizer o que eu disse
e não ter dúvidas de que escrevi um poema
é saber na carne: verdadeiramente
dar-Vos graças é meu dever e salvação."
Adélia Prado (1935-). A criatura. In: Miserere. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 51
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