Rui segue seu caminho pelo rio da vida. Na superfície, sozinho,
respira serenamente o ar puro da manhã e observa os balões vermelhos
brilhantes dos homens que se arrastam no fundo e se entorpecem de
felicidadezinhas e presunçõezinhas, produzindo bolhas, cheios de
certezas. Rui não tem certeza de nada. Só quer se manter à tona, ver e
sentir claramente, sem turvações. De dentro, os homens olham para cima e
o observam através da água. A imagem que percebem é a
de um louco, um ser vago e monstruoso, que a maioria ignora, mas que um
ou outro ataca quando pode, com mordidas e arranhões. Rui não se
importa. Segue seu caminho, observando os balões e as bolhas, ouvindo o
burburinho das diversões efêmeras, dos negócios e empreendimentos, das
vitórias e derrotas. Não está nem aí. Seu projeto é não ter projeto.
Quer a vida viva, que não é boa nem ruim. Não busca a felicidade, não
quer chegar a lugar nenhum, nem conquistar nada. Quer ser. Por isso
segue assim, indiferente aos balões e às bolhas. Às vezes cruza com
outros de sua espécie – seres estranhos, à tona como ele – e do fundo de
si lhe vem uma paz que é quase uma certeza, uma luz que ele não entende
– e nem quer entender. Trocam impressões, dicas de livros e filmes,
quase todos marginais: visões de outsider... E seguem seus caminhos.
Às vezes Rui mergulha no rio, para ver de perto o que se passa no
fundo, os afazeres e conexões dos que são felizes e querem chegar a
algum lugar, possuir alguma coisa, e buscam e conquistam; mistura-se com
eles, planeja, faz, negocia, corre atrás e, feliz da vida, alcança o
que, sem querer, quer. Porque é assim. É a água turva incontestável,
poderosa, sempre molhada. Ela é o que é: real, verdadeira, única matéria
de vida possível – quem pensa diferente é louco. E ainda por cima dá
aos homens balões vermelhos e brilhantes, que eles fazem subir e descer,
subir e descer... – distraçõezinhas que os tornam felizes e lhes dão a
impressão de serem importantes...
Felizes e importantes...
Quando mergulha e se mistura ao imenso cardume, Rui vê dinheiro em tudo
– “Isso aqui dá dinheiro”, diz para si, inebriado de água turva,
segurando firme seu balão; mas chega uma hora que se assusta com o que
diz. E com o susto acorda, solta o balão e volta para a superfície,
ofegante, como se no fundo não pudesse respirar. Ao chegar, enche de
novo os pulmões com o ar puro do dia ou da noite, sozinho, sozinho... E
ainda cheio de susto, percebe que está de terno e gravata, todo
engomado, no estilo padrão que tem que ser. Nunca conseguiu entender...
Por que usam isso lá embaixo? Para quê? E arranca a vestimenta que o
aprisiona e sufoca, sente o ar fresco selvagem em seu peito nu, respira
melhor, sente a vida melhor... E não é feliz nem triste. É.
Flávio Marcus da Silva (1975-)