sábado, 26 de março de 2016

Cozinhas


"...sujeito que mora sozinho [...]. Muitas vezes o aspecto da cozinha reflete o estado do espírito. Os sujeitos confusos, inseguros e maleáveis são pensadores. A cozinha deles se assemelha às ideias que têm: cheias de lixo, metal encardido, impurezas, mas eles sabem disso e até acham graça. Às vezes, com violenta erupção de fogo, desafiam as divindades eternas e surgem com o fulgor intenso que volta e meia chamamos de criação [...]. Mas quem mantém a cozinha sempre limpa é anormal. Cuidado com ele. O estado de sua cozinha equivale às ideias que tem: tudo em ordem, arrumado; permitiu que a vida o condicionasse rapidamente a um firme e resistente complexo de raciocínio defensivo e tranquilizador. É só se prestar atenção no que diz durante dez minutos pra se ter certeza de que tudo o que dirá pelo resto da vida será intrinsecamente inexpressivo e sempre sem graça. É um monolito. Existem mais criaturas desse tipo do que de qualquer outro. Portanto, quem estiver a fim de encontrar um homem vivo precisa, antes de mais nada, dar uma olhada na cozinha do cara – economiza tempo e dinheiro."

Charles Bukowski (1920-1994). Fabulário geral do delírio cotidiano - Parte II. Porto Alegre: L&PM, 2015, p. 124-5

Hacia la nada

"Nuestra cultura era penosa, no tenía ligazón alguna con la trascendencia, ni siquiera con los dioses que decía adorar. Nuestra cultura se basaba en conquistarlo todo, hasta el universo. Pura actividad sin fin. Una carrera enloquecida hacia la nada."

Enrique Vila-Matas (1948-). Exploradores del abismo. Barcelona: Anagrama, 2007, p. 185

Horizontalidade

"Eu fiquei deitado no meu pequeno sarcófago de espaço. A horizontalidade se derramava à minha volta. Eu era a carne do sanduíche da sala. Eu me senti desperto para uma dimensão básica que tinha negligenciado durante anos de movimento ereto, de estar de pé, correr, parar, saltar, de caminhar infinitamente ereto de um lado da quadra para o outro. Eu tinha me concebido durante anos como algo basicamente vertical, estranho caule aforquilhado com matéria e sangue. Agora eu me sentia mais denso; mais solidamente composto, agora que era horizontal. Impossível alguma coisa me derrubar."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 920

quinta-feira, 24 de março de 2016

Campo e cidade

"O poeta [William Wordsworth] acusava as cidades de fomentarem uma família de emoções contrárias à vida: angústia quanto à nossa posição na hierarquia social, inveja do sucesso alheio, orgulho e desejo de brilhar aos olhos de estranhos. Os cidadãos urbanos não tinham perspectiva, afirmava o autor; eram joguetes do que se comentava nas ruas e nas salas de jantar. Por mais que fossem abastados, tinham um desejo incessante por coisas novas que não lhes faziam falta e das quais não dependia a felicidade."

Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 136

Água Viva (1973), de Clarice Lispector


papo furado

"Não existe ninguém vitorioso na vida, é pura cascata, papo furado. Não há santos nem gênios, tudo não passa de conversa mole pra boi dormir, conto da carochinha, só pro jogo continuar. Cada homem se esforça pra sobreviver e ter sorte, se puder, o resto não dá pra engolir.”

Charles Bukowski (1920-1994). Crônica de um amor louco

Paisagens sublimes (II)

"A humilhação é um risco constante no mundo dos homens. Não é raro que nossa vontade seja desafiada e nossos desejos, frustrados. Paisagens sublimes, portanto, não nos confrontam com nossa inadequação. [...] As paisagens sublimes repetem, em termos solenes, uma lição que a vida cotidiana nos ensina cruelmente: o Universo é mais poderoso do que nós; somos frágeis e transitórios; não temos alternativa senão aceitar limitações à nossa vontade e precisamos nos dobrar a necessidades maiores do que nós mesmos."

Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 167

Paisagens sublimes

"As paisagens sublimes, através de sua grandeza e força, desempenham um papel simbólico em nos fazer aceitar, sem amargor nem queixas, os obstáculos que não conseguimos superar e os acontecimentos que não entendemos. Como bem sabia o Antigo Testamento, pode ser proveitoso armazenar dados relativos à pequenez da humanidade junto aos elementos da natureza que fisicamente a superam – as montanhas, o cinturão da terra, os desertos.

Se o mundo é injusto ou está além de nosso entendimento, os lugares sublimes sugerem que não surpreende que as coisas sejam assim. Somos joguetes das forças que criaram os oceanos e moldaram as montanhas. Lugares sublimes nos levam gentilmente a reconhecer as limitações que, de outra forma, poderiam nos causar ansiedade ou raiva no curso comum dos acontecimentos. Não é apenas a natureza que nos desafia. A vida humana não é menos devastadora, mas são os vastos espaços naturais que talvez nos ofereçam o melhor e mais respeitoso lembrete de tudo o que nos transcende. Se passarmos algum tempo com eles, talvez nos ajudem a aceitar com mais elegância os grandes e inconcebíveis acontecimentos que molestam nossa vida e nos retornarão, inevitavelmente, ao pó."

Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 175

Prazer em viajar

"...o prazer que extraímos das viagens talvez dependa mais do estado de espírito em que viajamos do que do destino. Se pudéssemos aplicar o estado de espírito de quem viaja aos nossos lugares, constataríamos que esses lugares não são menos interessantes do que os desfiladeiros em montanhas altas e as florestas cheias de borboletas da América do Sul vista por Humboldt."

Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 238

Muito com pouco

"Quando observamos como certas pessoas sabem conduzir suas experiências – suas experiências insignificantes e cotidianas – de tal maneira que se transformam em solo arável, dando frutos três vezes por ano, ao passo que outras – e quantas não são! – são empurradas por ondas avassaladoras do destino, as mais diversas correntes do tempo e das nações, e ainda assim continuam no topo, balançando como uma rolha, somos tentados a dividir a humanidade entre uma minoria (realmente mínima) daqueles que sabem fazer muito com pouco e uma maioria que sabe fazer pouco com muito."

Friedrich Nietzsche (1844-1900). Citado por Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 245

domingo, 20 de março de 2016

Lei do retorno


Não seja grosseiro e arrogante com o próximo, não humilhe ninguém, pois isso cria uma energia negativa que volta para você um dia, tenha certeza disso, volta mesmo, mais cedo ou mais tarde. Plante coisas boas, gentilezas, compreensão, carinho... Ouça o próximo, seja generoso, que isso volta também, para você, para seus filhos, para a sua vida... Antes de falar e agir por impulso, coloque-se no lugar do outro. Isso se chama compaixão. Tenha compaixão. Tenha paciência. Não se coloque acima de ninguém. Trate o próximo como você quer ser tratado.

De mim para mim e para quem mais quiser e/ou precisar

Nota de suicídio

"[...] Eu tenho uma deusa como esposa que transpira ambição e empatia e uma filha que me lembra demais como eu costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando cada pessoa que ela encontra porque todos são bons e ninguém lhe fará mal nenhum. E isso me apavora ao ponto de eu mal conseguir funcionar. Eu não posso suportar a ideia de Frances se tornar o triste, autodestrutivo e mórbido roqueiro que eu me tornei.

Eu tive muito, muito mesmo, e eu sou grato por isso, mas desde os sete anos passei a ter ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece tão fácil para as pessoas que têm empatia se darem bem. Apenas porque eu amo e sinto demais por todas as pessoas, eu acho.

Obrigado do fundo do meu ardente e nauseado estômago por suas cartas e preocupação nestes últimos anos. Eu sou um bebê errático e triste! Eu não tenho mais paixão, e por isso, lembre-se, é melhor queimar de vez do que se apagar aos poucos.

Paz, amor, empatia.

Kurt Cobain

Frances e Courtney, eu estarei em seus altares.
Por favor, siga em frente, Courtney, pela Frances.
Pela vida dela, que será muito mais feliz sem mim.
EU AMO VOCÊS, EU AMO VOCÊS!"

Trecho final da carta de despedida que Kurt Cobain escreveu pouco antes de cometer suicídio no dia 5 de abril de 1994, aos 27 anos

Sertão é isto:




Sertão é o imprevisível. A morte na tocaia, indiferente, mansa, só esperando. Apeia-se aqui e ali, nas beiras dos rios, nos bambuzais, nas matas, nos ranchos de pousada. Come-se paçoca de carne, pequi, torresmo. Bebe-se cachaça. O destino é seguir sempre, buscando: o de comer, o de beber... viver... Vida solta indomada, e a gente no lombo dela, sem arreio, sem peias. No pelo.

“Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados”, diz Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas. Meu sertão é minha alma: meus rios, pastos e montanhas, minha verdade: vastidão desolada e rica onde sou eu mesmo, sem cabresto: cavalo solto, livre, pronto para morrer, satisfeito. Meu sertão... Ele também me rodeia dos lados, sai de dentro de mim e me protege, que nem escudo, das certezas desse mundão aí fora. É guerra encarniçada, difícil.

Meu sertão me salva do previsível da vida, dos modelos de razão, que fecham a gente em grades, que nem prisão. Porque no sertão, como diz Riobaldo, “o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!”. É o que eu penso.

Que me julguem, pois. Que me humilhem. Não me importo. Aí fora tudo é parcial. Ninguém vê total, puro. Vê só o que quer, o que pode. Não tem verdade.

Dentro de mim: verdade minha. Só. Sou o que sou, desamarrado, livre. Sei meu valor.

Que me espezinhem, pois. Que me torrem a paciência. Não me importo. Sou bicho do mato. Sou.

Riobaldo falou: “Sertão: é dentro da gente”. É isso.

Flávio Marcus da Silva (1975-)

Nós não passamos nas ferrovias


"A própria nação, com todas as suas ditas melhorias internas, que, aliás, são todas externas e superficiais, é uma instituição simplesmente tão pesada e hipertrofiada, tão entulhada de coisas e tropeçando na armadilha de seus bens, tão estragada pelo luxo e pelo esbanjamento, por falta de cálculo e de um objetivo digno, quanto os milhões de lares que existem na Terra; e o único remédio para isso, em ambos os casos, é uma economia rigorosa, uma simplicidade de vida inflexível e mais do que espartana, e a elevação de propósitos. Ela vive rápido demais. Os homens pensam que é essencial que a Nação tenha comércio, exporte gelo, fale por telégrafo, ande a 50 quilômetros por hora, sem qualquer hesitação [...]; já se devemos viver como símios ou como homens, é uma questão um pouco mais incerta. Pois, se não trazemos dormentes, se não forjamos trilhos, dedicando dias e noites a esse trabalho, mas ficamos consertando nossas vidas para melhorá-las, quem construirá as ferrovias? E se as ferrovias não forem construídas, como chegaremos ao céu em tempo? Mas, se ficarmos em casa e cuidarmos de nossos afazeres, quem vai querer ferrovias? Nós não passamos nas ferrovias; elas é que passam sobre nós."

Henry David Thoreau (1817-1862). Walden (1854). Porto Alegre: L&PM, 2014, p. 96-7

Livros de papel

“E ela está falando de livros. Do seu livro, o recém-lançado Words Onscreen: The Fate of Reading in a Digital World, e dos livros em geral, em papel ou não. As conclusões, que ela apurou de vários estudos realizados nos últimos anos em diversos países, são consistentes e fascinantes: os livros de papel, que deveriam ter morrido com a explosão digital, estão mais vivos do que nunca. A razão, Naomi diz, que todas pesquisas concluem é simples: para a aquisição rápida de informação, preferimos as telas de computadores, tablets, smartphones; para a leitura profunda, aquela que, nas palavras dela, ‘mudam vidas, que é o que os bons livros devem fazer’, optamos pelos livros.

Não pensem que essas são conclusões extraídas de pesquisas com gente de meia idade, da geração anterior à era digital. Muito pelo contrário: a pesquisa mais recente e mais vasta, que Naomi usou como coração da sua obra, envolveu adolescentes e jovens entre 17 e 26 anos. E não deixou a menor dúvida. O livro, segundo eles, oferece imersão, experiência individual, ‘sem interrupções’, diz um dos pesquisados, ‘sem barulhinhos na tela’, ‘obrigando a pensar’.

A entrevistadora pergunta a Naomi se isso não vai mudar no futuro, com a permanência das obras digitais e gerações com cérebros diferenciados, programados para as tarefas múltiplas e simultâneas. Ela diz que não. Mudanças substanciais na ‘fiação’ do cérebro humano demoram milênios, acrescenta. Estamos operando com a mesma fiação dos clássicos gregos — compreendemos a narrativa e a linguagem do mesmo modo, e é essa experiência, íntima e pessoal, que o livro traz.”

Ana Maria Bahiana, para o blog da Companhia das Letras, 19 de março de 2015. Jornada pelo coração da galáxia de Gutemberg: uma fábula. 

A utilidade do inútil

"Não é verdade - nem mesmo em tempos de crise - que só é útil o que produz lucro ou tem uma finalidade prática. Existem saberes considerados 'inúteis' que são indispensáveis para o crescimento da humanidade. Útil, portanto, é tudo aquilo que nos ajuda a termos uma vida mais plena e um mundo melhor."

Sobre o livro A Utilidade do Inútil, de Nuccio Ordine

Luta pelo prazer

"– Numa sociedade toda organizada em torno da luta pelo poder, quando a vida social se transforma em luta pelo prazer... já pensou, querido? Veja se me entende: para que a vida seja luta pelo poder, é preciso que todo mundo faça isso, porque assim os mais poderosos sempre ganham, com dinheiro, violência, armas, etc., entende? Agora, se um grupo grande, como a juventude, por exemplo, não vai nessa, quando descobre que não há prazer algum no trabalho, na guerra, na burocracia, na submissão, no uso da força bruta, nas armas, no dinheiro, no consumo... É uma ousadia imensa, imperdoável! Mas é essa a nossa guerra... a juventude e o prazer são as nossas armas! Faltavam os coiotes... os mutantes..."

Roberto Freire (1927-2008). Coiote (1986). Rio de Janeiro: Guanabara, p. 395

essa questão do deslocamento

"A vida é um hospital em que cada paciente está obcecado com a ideia de mudar de cama. Este quer sofrer em frente ao radiador, e aquele imagina que melhoraria se estivesse junto à janela. [...]

Sempre me parece que estarei bem onde não estou, e essa questão sobre o deslocamento ocupa perenemente minha alma."

Charles Baudelaire (1821-1867). Citado por Alain de Botton. A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 40

Arranca-me daqui!

"As nuvens passam tranquilamente. Abaixo de nós, estão inimigos e colegas, os lugares de nosso terror e de nossa dor; todos eles infinitesimais, meros rabiscos na terra. Podemos conhecer suficientemente a perspectiva dessa velha lição, mas ela raras vezes parece tão verdadeira quanto no momento em que estamos sentados junto à janela fria de um avião, quando a aeronave se torna mestre de uma profunda filosofia – e discípula fiel da exortação de Baudelaire:

'Carruagem, leva-me contigo! Navio, arranca-me daqui!
Leva-me para longe, muito longe. Aqui, a lama é feita de nossas lágrimas!'"

Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 40

Um olhar para baixo

"Aprendo mais com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata – cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão –
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem:
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas."

Manoel de Barros (1916-2014). Poesia Completa. São Paulo: LeYa, 2013, p. 335

Viajar

"Não é necessariamente em casa que melhor encontramos nosso verdadeiro eu. A mobília insiste que não podemos mudar porque ela não muda; o ambiente doméstico nos mantém amarrados à pessoa que somos na vida comum, mas que talvez não sejamos essencialmente."

Alain de Botton (1969-). A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012, p. 62

Os "sem noção" das redes sociais

"Os historiadores do futuro terão que se debruçar também sobre aquela categoria dos "sem noção". Categoria antropológica das mais curiosas, reúne indivíduos que ouviram o galo cantar, mas não sabem exatamente onde. Trazem sempre um arsenal de chavões, frases feitas, palavras de ordem, extraídos do lugar comum propagado pela mídia. Quando questionados, costumam assumir uma postura ofensiva, como se as verdades mais universais tivessem sido feridas. Retrucam com o mesmo repertório de sempre, como se a repetição pudesse conferir o estatuto de verdade às próprias opiniões. O mais divertido é ver o susto que tomam quando percebem a fragilidade dessas opiniões, quando confrontados com dados irrefutáveis... Abandonam o debate como crianças emburradas que, quando perdem o jogo, atiram o tabuleiro no chão. Fica evidente que, para os "sem noção", o ato de pensar, raciocinar e refletir é ainda extremamente inusual e, por isso, doloroso. Em razão disso, preferem terceirizar, abdicando do exercício daquilo que, desde Sócrates e Platão, é o que nos constitui como seres humanos. O resultado é o mal banal de que fala Hannah Arendt: esse fungo viscoso e rasteiro que se prolifera insidiosamente pelas redes sociais..."

Adriana Romeiro

quinta-feira, 17 de março de 2016

Olhos imperfeitos

"...não temos uma ideia clara de nós mesmos; nosso reflexo no espelho reflete apenas o que desejamos ver, ou o que suportamos ver [...] Tampouco podemos confiar nos outros para nos ver. Porque eles também só veem o que desejam ver, com os seus olhos imperfeitos."

Joyce Carol Oates (1938-). Levo você até lá (2002). São Paulo: Globo, 2004, p. 281

No oeste

"As imensas distâncias silenciosas do oeste. Onde a morte das pessoas não tem importância. A morte de espécies inteiras não tem importância. A única realidade é o Tempo: o drama natural da terra é o Tempo. Na civilização, essa verdade tão simples é obscurecida. No oeste, não se pode escapar disso. Todas as coisas estão mudando, afundando, sofrendo erosão. Na minha vida, um simples dia (uma simples hora!, quando eu estive doente de amor por Vernor Matheius) era percebido como algo profundo. No oeste, um simples dia não era nada. Um ano, uma vida inteira – nada. O piscar de um olho. Tampouco havia qualquer coisa a dizer da beleza terrivelmente selvagem das formações de rochas avermelhadas pelas quais passei dirigindo, e assim eu nada diria sobre elas. A morte do meu pai não faria sombra ali. Tudo ali era tragado numa superexposição de luz."

Joyce Carol Oates (1938-). Levo você até lá (2002). São Paulo: Globo, 2004, p. 310

Visões de Outsider



Rui segue seu caminho pelo rio da vida. Na superfície, sozinho, respira serenamente o ar puro da manhã e observa os balões vermelhos brilhantes dos homens que se arrastam no fundo e se entorpecem de felicidadezinhas e presunçõezinhas, produzindo bolhas, cheios de certezas. Rui não tem certeza de nada. Só quer se manter à tona, ver e sentir claramente, sem turvações. De dentro, os homens olham para cima e o observam através da água. A imagem que percebem é a de um louco, um ser vago e monstruoso, que a maioria ignora, mas que um ou outro ataca quando pode, com mordidas e arranhões. Rui não se importa. Segue seu caminho, observando os balões e as bolhas, ouvindo o burburinho das diversões efêmeras, dos negócios e empreendimentos, das vitórias e derrotas. Não está nem aí. Seu projeto é não ter projeto. Quer a vida viva, que não é boa nem ruim. Não busca a felicidade, não quer chegar a lugar nenhum, nem conquistar nada. Quer ser. Por isso segue assim, indiferente aos balões e às bolhas. Às vezes cruza com outros de sua espécie – seres estranhos, à tona como ele – e do fundo de si lhe vem uma paz que é quase uma certeza, uma luz que ele não entende – e nem quer entender. Trocam impressões, dicas de livros e filmes, quase todos marginais: visões de outsider... E seguem seus caminhos. 

Às vezes Rui mergulha no rio, para ver de perto o que se passa no fundo, os afazeres e conexões dos que são felizes e querem chegar a algum lugar, possuir alguma coisa, e buscam e conquistam; mistura-se com eles, planeja, faz, negocia, corre atrás e, feliz da vida, alcança o que, sem querer, quer. Porque é assim. É a água turva incontestável, poderosa, sempre molhada. Ela é o que é: real, verdadeira, única matéria de vida possível – quem pensa diferente é louco. E ainda por cima dá aos homens balões vermelhos e brilhantes, que eles fazem subir e descer, subir e descer... – distraçõezinhas que os tornam felizes e lhes dão a impressão de serem importantes...

Felizes e importantes...

Quando mergulha e se mistura ao imenso cardume, Rui vê dinheiro em tudo – “Isso aqui dá dinheiro”, diz para si, inebriado de água turva, segurando firme seu balão; mas chega uma hora que se assusta com o que diz. E com o susto acorda, solta o balão e volta para a superfície, ofegante, como se no fundo não pudesse respirar. Ao chegar, enche de novo os pulmões com o ar puro do dia ou da noite, sozinho, sozinho... E ainda cheio de susto, percebe que está de terno e gravata, todo engomado, no estilo padrão que tem que ser. Nunca conseguiu entender... Por que usam isso lá embaixo? Para quê? E arranca a vestimenta que o aprisiona e sufoca, sente o ar fresco selvagem em seu peito nu, respira melhor, sente a vida melhor... E não é feliz nem triste. É.

Flávio Marcus da Silva (1975-)

Coiote

"Fomos para o jardim e paramos sob uma árvore frondosa e florida de onde dava para ver Coiote, através dos vidros da estufa. Rosário me explicou que só pessoas muito especiais, dotadas de talentos e sensibilidade diferentes das demais é que enlouquecem, é que se tornam esquizofrênicas na juventude. Estudando as relações familiares doentias que, segundo os antipsiquiatras, produzem a esquizofrenia, ela estava chegando à seguinte conclusão: essas pessoas especiais, quando têm seus talentos e sensibilidade impedidos de se exercitar, por causa dos diversos tipos de repressão familiar, sobretudo pelas chantagens afetivas típicas nas relações entre pais e filhos, acabam por se alienar, desistem de viver suas vidas, tornam-se esquizofrênicas.

E Rosário tentava libertá-los morando com eles, procurando criar para esses jovens outro tipo de família, protegendo-os das repressões. Estava observando que, quando conseguia essa liberação, os clientes revelavam e expressavam talentos geniais para algumas coisas e, sempre, uma quase total impossibilidade de aceitar a vida burguesa; não apresentavam o menor pragmatismo (escolha de profissão, perseverança, hábitos sociais higiênicos, disciplina, método) e sofriam tremenda dificuldade para o relacionamento afetivo e sexual.

Porém, não se podia mais classificá-los como loucos. A personalidade deles não estava mais dividida, fragmentada. Viviam o real como todo mundo. Apenas não se adaptavam à vida social convencional. Não eram mais doentes e, sim, problemas. E a doutora Rosário afirmava serem eles problemas políticos e éticos, não médicos, o que quer dizer, patológicos. Mas, para completar a tese, precisava encontrar um esquizofrênico sadio.

– Quando eu o vi, senti que Coiote era uma dessas pessoas especiais, que nascera diferente dos outros. Vinha dele, mesmo dormindo, uma energia muito livre, forte, algo que eu só percebia, às vezes, nos meus clientes ao fim do tratamento e, assim mesmo, numa intensidade e quantidade bem menores. O que me causa espanto e muito encanto, claro, é que Coiote revela nitidamente nunca ter sido vitimado pela repressão. A energia que vinha dele parecia pura e direta... louca, mas terrivelmente fascinante e perturbadora. Teoricamente, eu sabia que era possível existirem pessoas assim... esquizofrênicas em estado puro, entende?"

Roberto Freire (1927-2008). Coiote (1986). 4ª ed., Rio de Janeiro: Guanabara, pp. 135-137

quarta-feira, 9 de março de 2016

Ser invisible



"Con la visión de la nieve le entran a Andréi Petróvich Petrescov deseos de evasión que le vienen de muy lejos, de la infancia, de los días en que deseaba ser invisible. Son sueños muy precisos de invisibilidad que le acompañan desde que tiene memoria, son anhelos de ser invisible y moverse entre otros seres que también resulten ser etéreos.

El ideal: un sueño preciso, piensa Andréi Petróvich Petrescov. Y acto seguido se pregunta a sí mismo: ¿Y qué mejor ideal que la invisibilidad, que es mi sueño más preciso? Ahora bien, ¿cómo hacerse invisible teniendo seis hijos, una fiscalía, una presidencia de fiestas, una salud quebradiza, un imponente caserón en el centro de la ciudad?"

Enrique Vila-Matas (1948-). Exploradores del abismo. Barcelona: Anagrama, 2007, p. 127

Fora daqui

"Mientras avanza por el largo pasillo del ala occidental del caserón, siente su soledad con más intensidad pero también con más placer que nunca. Lo del placer es absolutamente nuevo para él y le parece que está estrechamente ligado al dolor de avanzar a solas por el pasillo familiar. Mientras sigue caminando por ese corredor se adentra con tanta profundidad en el análisis de ese placer novedoso que acaba teniendo la sensación de entrar en tierra desconocida, en el espacio donde se encuentran los límites de su capacidad de pensar. Es como si hubiera llegado al sitio donde ya no puede ir más allá pensando. Siente un breve vértigo, como si estuviera andando ya por el corredor que conduce al espacio vacío que hay fuera de toda familia humana, empezando por la suya propia."

Enrique Vila-Matas (1948-). Exploradores del abismo. Barcelona: Anagrama, 2007, p. 130

domingo, 6 de março de 2016

Vernor Matheius

“O HOMEM DORMINDO. Não com o rosto de alguém em repouso, mas atormentado, angustiado. Sua testa vincada, sua boca torcida numa careta. Os globos oculares movendo-se por baixo das pálpebras fechadas. Um estremecimento de sua lustrosa pele escura como uma ondulação na superfície da água. ‘Se eu pudesse achar que ele é feio, sem atrativos. Se eu pudesse vê-lo como não-o-amando’. Eu era uma criança aproximando da chama as pontas dos dedos, pedindo a dor, desafiando a dor, não acreditando na dor. Tentando imaginar a minha vida sem Vernor Matheius no seu centro. Minha vida sem amá-lo.

Um buraco no coração através do qual o frio árido do universo poderia passar, assobiando.

Estranho para mim, que observava Vernor Matheius enquanto ele dormia, nas raras ocasiões em que tinha o privilégio de vê-lo dormir, que houvesse outros, caucasianos, uma categoria de indivíduos à qual teoricamente eu pertencia, que podia observar Vernor Matheius na sua insondável complexidade e pensar simplesmente ‘negro’. E rejeitá-lo, porque ‘negro’. Que loucura!

Cheguei a acreditar que a vida sem questionamentos, a vida que é conduzida sem uma contínua inquirição, e sem dúvidas quanto a todas as discriminações herdadas, os preconceitos, era loucura. Em nossas vidas civilizadas estamos rodeados pela loucura, enquanto nos acreditamos iluminados.”

Joyce Carol Oates (1938-). Levo você até lá (2002). São Paulo: Globo, 2004, p. 206-7

A mosca na garrafa

"Mostrar à mosca como escapar de dentro da garrafa era a esperança da vida de Ludwig Wittgenstein, mas a verdade é que o ser humano não quer escapar da garrafa; estamos sempre encantados, subjugados pelo interior da garrafa; suas paredes de vidro nos acariciam e nos consolam; suas paredes de vidro são o perímetro de nossa experiência e da nossa aspiração; a garrafa é a nossa pele, nossa alma; estamos acostumados às distorções visuais do vidro; não desejaríamos ver claramente, sem a barreira do vidro; não poderíamos respirar um ar mais fresco; não poderíamos sobreviver fora da garrafa."

Joyce Carol Oates (1938-). Levo você até lá (2002). São Paulo: Globo, 2004, p. 215