quinta-feira, 17 de março de 2016

Coiote

"Fomos para o jardim e paramos sob uma árvore frondosa e florida de onde dava para ver Coiote, através dos vidros da estufa. Rosário me explicou que só pessoas muito especiais, dotadas de talentos e sensibilidade diferentes das demais é que enlouquecem, é que se tornam esquizofrênicas na juventude. Estudando as relações familiares doentias que, segundo os antipsiquiatras, produzem a esquizofrenia, ela estava chegando à seguinte conclusão: essas pessoas especiais, quando têm seus talentos e sensibilidade impedidos de se exercitar, por causa dos diversos tipos de repressão familiar, sobretudo pelas chantagens afetivas típicas nas relações entre pais e filhos, acabam por se alienar, desistem de viver suas vidas, tornam-se esquizofrênicas.

E Rosário tentava libertá-los morando com eles, procurando criar para esses jovens outro tipo de família, protegendo-os das repressões. Estava observando que, quando conseguia essa liberação, os clientes revelavam e expressavam talentos geniais para algumas coisas e, sempre, uma quase total impossibilidade de aceitar a vida burguesa; não apresentavam o menor pragmatismo (escolha de profissão, perseverança, hábitos sociais higiênicos, disciplina, método) e sofriam tremenda dificuldade para o relacionamento afetivo e sexual.

Porém, não se podia mais classificá-los como loucos. A personalidade deles não estava mais dividida, fragmentada. Viviam o real como todo mundo. Apenas não se adaptavam à vida social convencional. Não eram mais doentes e, sim, problemas. E a doutora Rosário afirmava serem eles problemas políticos e éticos, não médicos, o que quer dizer, patológicos. Mas, para completar a tese, precisava encontrar um esquizofrênico sadio.

– Quando eu o vi, senti que Coiote era uma dessas pessoas especiais, que nascera diferente dos outros. Vinha dele, mesmo dormindo, uma energia muito livre, forte, algo que eu só percebia, às vezes, nos meus clientes ao fim do tratamento e, assim mesmo, numa intensidade e quantidade bem menores. O que me causa espanto e muito encanto, claro, é que Coiote revela nitidamente nunca ter sido vitimado pela repressão. A energia que vinha dele parecia pura e direta... louca, mas terrivelmente fascinante e perturbadora. Teoricamente, eu sabia que era possível existirem pessoas assim... esquizofrênicas em estado puro, entende?"

Roberto Freire (1927-2008). Coiote (1986). 4ª ed., Rio de Janeiro: Guanabara, pp. 135-137

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