terça-feira, 3 de março de 2015

Uma cama que range


"Meu pai girou no eixo dos joelhos, impulsionou o corpo, saiu do colchão, pôs a mão na lombar e se endireitou, continuando a olhar para o colchão.

'Essa porra dessa cama do caralho que sua mãe achou que tinha que manter e trazer com a gente pra cá pelo entre aspas valor sentimental começou a ranger', meu pai disse. O fato dele dizer 'sua mãe' indicava que ele estava se dirigindo a mim. Ele estendeu a mão para pedir o copo de suco de tomate sem precisar me olhar. Ele encarava sombriamente a cama. 'A gente está ficando louco com essa merda.'

Minha mãe equilibrou o cigarro no cinzeiro estreito, largou o cinzeiro no parapeito da janela, se curvou sobre o pé da cama, comprimiu o ponto que meu pai tinha isolado, que rangeu de novo. 

'E de noite esse único pontinho que nós isolamos e identificamos parece que se espalha e se metastatiza até a porra da cama inteira ficar entupida de rangidos.' Ele bebeu um pouco de seu suco de tomate. 'Áreas que tagarelam e rangem', meu pai disse, 'até nós dois acharmos que estamos sendo comidos por ratos.' Ele passou a mão pela linha do queixo. 'Hordas fervilhantes de ratos de rapina ruidosos rangentes e tagarelantes', ele disse, quase tremendo de irritação."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 504

Nenhum comentário: