sexta-feira, 13 de março de 2015

Anedonia

"Alguns pacientes psiquiátricos – fora uma certa percentagem de pessoas que ficaram tão dependentes de químicos para obter sensações de bem-estar que quando é necessário abandonar os químicos elas passam por um trauma-de-perda que cala bem fundo nos sistemas centrais da alma – essas pessoas sabem de primeira mão que há mais de um tipo da dita 'depressão'. Um tipo é coisa-pouca e às vezes é chamado de 'anedonia' ou 'melancolia simples'. É uma espécie de torpor espiritual em que você perde a capacidade de sentir prazer ou afeição por coisas anteriormente importantes. O ávido jogador de boliche larga o campeonato e fica em casa à noite encarando inerte uns cartuchos de kick-boxe. O comilão perde o apetite. O sexual descobre que sua amada Unidade de repente é só um pedaço de cartilagem sem sensações, só pendurado ali. A esposa e mãe devotada acha a ideia da família dela tão comovente, de repente, quanto um teorema de Euclides. É um tipo de xilocaína emocional, essa forma de depressão, e por mais que não seja francamente doloroso esse amortecimento é desconcertante e... enfim, deprimente. Kate Gombert sempre pensou nesse estado anedônico como uma espécie de abstração radical de todas as coisas, um ocamento das coisas que antes tinham conteúdo afetivo. Termos que os não deprimidos soltam a três por quatro e dão de barato como coisas plenas e carnudas – 'felicidade', 'joie de vivre', 'preferência', 'amor' – são despidos até virarem apenas esqueletos e reduzidos a ideias abstratas. Eles têm, por assim dizer, denotação mas não conotação. A pessoa anedônica ainda consegue falar de felicidade e sentido e tal, mas se tornou incapaz de sentir qualquer coisa nessas palavras, de entender algo nelas, de ter alguma esperança em relação a elas ou de acreditar que elas existem como qualquer outra coisa além de conceitos. Tudo se torna um contorno da coisa. Objetos viram esquemas. O mundo vira um mapa do mundo. Uma pessoa anedônica navega, mas não tem localização."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 708

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