sexta-feira, 20 de março de 2015

A loucura do vício



"(...) o negócio é que ele tinha mulher e uma filhinha em casa no Conjunto Habitacional de Perry Hill em Mattapan, e outro bebê por chegar. Ele tinha dado um jeito de não perder o seu empreguinho ancilar de assistente de rebitador nas Arquibancadas Universal logo ali na esquina em Enfield porque o vício dele em cocaína tipo crank não era coisa de todo dia; ele fumava tipo aos montes, mas basicamente só no fim de semana. Mas fumava que nem um psicopata endiabrado que quisesse detonar toda a conta bancária. Era que nem se amarrar num míssil da Raytheon e aí você só para quando o míssil parar, Jim. Ele diz que a mulher dele quebrava um galho de faxineira, mas quando ela trabalhava eles tinham que pôr a menininha numa creche que praticamente comia o salário dela. Então o ordenado dele era tipo a grana toda que eles tinham e esses surtos de fim de semana com o cachimbo de vidro lhes causavam tudo quanto era Insegurança Financeira, que ele pronuncia errado. O que o leva ao seu último surto, o Fundo, que, previsivelmente, ocorreu no dia de receber o salário. O cheque dele simplesmente 'tinha' que ir para compras e aluguel. Eles estavam dois meses atrasados, e não tinha porra nenhuma para comer na casa. Numa pausa para um cigarrinho na Arquibancadas Universal ele tinha cautelosamente comprado só uma dose, só dez paus, pra um consolinho de domingo à noite depois de um fim de semana de abstinência, compras e de tempo passado com a esposa grávida e a filhinha. A esposa e a filhinha iriam encontrá-lo depois do trabalho bem no ponto de ônibus do Brighton Best Savings, bem embaixo do relogião, para 'ajudar' ele a depositar o salário ali mesmo. Ele tinha deixado a esposa combinar o encontro no banco porque sabia de um modo autoenojado mesmo naqueles dias que havia esse risco de incidentes que envolviam o salário graças a surtos de consumo em que ele tinha mergulhado no passado, e a Insegurança Financeira deles agora já era sei lá uma palavra que seja pior que 'fodida', e ele sabia bem pra 'caralho' que não podia ferrar com tudo dessa vez.

Ele diz que era assim que ele pensava nisso quando pensava sozinho: ferrar com as coisas. 

Ele nem chegou ao ônibus depois de bater cartão, ele disse. Dois outros Chagados da rebitagem tinham três doses cada um, doses essas que eles ficaram 'sacudindo' na cara dele. (...) Em resumo foi a loucura de sempre de dinheiro no bolso e nenhuma defesa contra as pulsões, e a ideia da mulher dele com a menininha deles com aquele gorrinho e aquelas luvinhas de crochê paradas embaixo do relogião no gélido crepúsculo de março não foi nem empurrada de lado mas como que encolheu até virar um retrato tamanho-camafeu no centro da parte dele que ele e os Chagados estavam aplicadíssimos em matar com o cachimbo."

David Foster Wallace (1962-2008). Graça infinita (1996). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 724

Nenhum comentário: