sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Morto de minh'alma



"Minhas tardes, minhas manhãs, as eleitas entre todas, as que conservei como cartas de amor, pertencem aos mortos. Eu as deposito sobre as suas pálpebras como um ramo de angélicas. Morrem em mim as tardes, as manhãs, quando eles morrem. (...) Teço também uma coroa de afeições para os seus lábios; ponho em suas mãos meus carinhos vividos; coloco a seus pés os caminhos que percorri, atribulações e alegrias do espaço, mais impenetráveis talvez do que os dias perdidos. Olho depois os meus pés imóveis, já desanimados de caminhar.

Desfeito de minhas riquezas, já do tamanho de um defunto, lívido e abandonado como o próprio morto, posso descansar um pouco e conversar com ele. (...)

Morto, morto de minh'alma, boa noite. Vou recomeçar os trabalhos abjetos e os dias ruins. Muito mentirei mas não mentirei a ti. Estarei contigo, de surpresa, nos meus inexpugnáveis silêncios, na sombra de meus espelhos, em meus retratos velhos, em meus cabarés vazios. Prometo usar sempre tua morte em minha lapela, como um distintivo, o teu sinal, o meu sinal."

Paulo Mendes Campos. Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 129-130

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